“Congoísmos”, a norte (e a sul)
A arte da produção e sedimentação de estereótipos – operada em diferentes contextos históricos, com numerosos protagonistas e interesses em jogo, envolvendo vários expedientes e instrumentos – foi sempre muito útil à imaginação (geo)política. Serviu, e serve, várias ideologias de serviço, com diversas justificações. Foi, e é, também particularmente proveitosa para outros sectores, por exemplo, os académicos e os artísticos, que amiúde, e sem hesitar, contribuem para as operações políticas e ideológicas, ao contrário de uma certa imagem de autonomia, crítica e distinção que projectam. Muitas vezes, aliás, e instrumental ou inadvertidamente, a denúncia da essencialização e do estereótipo revelam-se incapazes de ir para lá do seu reforço. A generalização responde à generalização, a superficialidade é mobilizada contra a superficialidade, ainda que de sentido contrário. A combinação insistente e regular de formas de determinismo geográfico e de essencialismo cultural, guiada por propósitos eminentemente políticos e ideológicos, é apenas um exemplo, por sinal copioso, instrumental e conveniente para vários quadrantes (1).
Num livro recente, Congoism, de Johnny Van Hove, a acumulação de discursos e imagens “normalizadores” sobre o “Congo” é evidenciada, demonstrando com precisão como tal ocorre, tomando para isso a sociedade norte-americana como observatório, num enquadramento temporal vasto (2). De facto, nos Estados Unidos da América, a genealogia de produção de leituras sobre o “Congo” é longa e diversificada, tendo origem em oitocentos. É importante não esquecer as importantes conexões económicas entre a África Central e os Estados Unidos, sobretudo no que concernia à provisão de escravos ou, mais tarde, ao comércio de minério de urânio, central ao Projecto Manhattan, com a mina de Shinkolobwe, no Katanga, a desempenhar um papel crucial neste desenvolvimento tecnológico, com o seu potencial apocalíptico (3). Ou ainda visível no activo apoio que o país concedeu ao projecto colonial de Leopoldo II, processo no qual Henry Shelton Sanford desempenhou um papel cimeiro (4). O envolvimento na eleição de Mobutu Sese Seko é outro exemplo de relações próximas, e promíscuas, com a região (5). O impacto destas ligações é ainda visível nos próprios Estados Unidos, em cidades como New Orleans, ou na história da poesia afro-americana (6). Várias comunidades e instituições – do activismo ao jornalismo, do mundo político ao científico, passando pelo artístico – contribuíram para edificar aquilo a que o autor chama de “Congoísmo”, ou seja, a produção de uma narrativa, de um “discurso” mais ou menos consistente sobre o “Congo”, fundindo cultura e geografia através de estereótipos vários. Fá-lo cruzando, contrastando e comparando diferentes vozes, argumentos e posições que para tal contribuíram, desde Henry Highland Garnet, com o seu “An Address to the Slaves of the United States of America” (1843) onde se discorre sobre o “Africano sem instrução que vagueia pelo sertão do Congo” (7), ou Booker T. Washington e o seu “Cruelty in the Congo country” (1904), até Martin Luther King, para quem “o negro americano não está num Congo” (8), passando pela contribuição do explorador Henry Morton Stanley e pelo título-descrição “heart of darkness” de Joseph Conrad. Esta expressão ganhou vida própria como cliché, sendo usada em muitos outros contextos, da África à América do Sul. Tal sucede até aos dias de hoje, em parte devido ao efeito da sua adaptação cinematográfica ao contexto da guerra norte-americana no Vietname.
O “Congo como escravo” ou o “Congo como selvagem” ou o “Congo como escuridão” ou o “Congo como recurso”, para citar apenas alguns dos topoï estabelecidos pelo autor, sucederam-se, e acumularam-se, historicamente, numa “linguagem de repetição” (e outra de “silêncio”). Decorreram de várias relações de poder e (des)conhecimento. Os “Congos” foram vários, imaginados a partir dos voláteis “marcadores materiais” do território, da nacionalidade e da soberania, da violenta dependência colonial à também violenta refrega pós-colonial, mas também a partir de múltiplas projecções saídas da imaginação literária, religiosa ou comercial e política (9). Do “Reino do Congo” à “República Democrática do Congo” (1964-1971; 1998-presente), passando pelo “Estado Independente do Congo” do Rei Leopoldo II, pelo “Congo Belga” (1908-1960), pela “República do Congo” (1960-1964) e pelo “Zaire” (1971-1998), a região constituiu um espaço de geometria territorial e política variável e de constituição sócio-cultural heterogénea (10).
Mas essa realidade foi regularmente comprimida pelo estereótipo, pelo essencialismo, pela miopia ou conveniência, prendendo o originário do “Congo” entre a revolta e o desgoverno (mais) e a submissão e a docilidade (menos). Essa operação de compressão, de natureza polarizadora, assentou em manifestações repetidas de “Congoísmo”, decorrentes de um interesse na sociedade norte-americana em alguns aspectos similares àquelas associadas à “egiptomania” (11). De um ponto de vista histórico, com recorrência e consistência, o “Congo” (ou melhor, as várias imaginações do “Congo”) parece ter funcionado como um elemento central no processo de afirmação identitária dos intelectuais afro-americanos. Muitas vezes, o “Congo” era o continente africano inteiro, resumindo as suas propriedades, negativas, que permitiam uma comparação favorável. Através da sua invocação, por cotejo, os intelectuais afro-americanos “sabiam-se livres, não escravizados; civilizados e progredindo; não selvagens e atrasados; bonitos e desejáveis, não feitos e repulsivos; e históricos, não sem história” (12). O “Congoísmo” mudou de acordo com contextos, mas manteve a sua função primordial (13).
Os “Congos” foram vários e o “Congoísmo” revelou-se maleável na forma e conteúdo, mas estável na utilidade. Assim sendo, a invocação da sua história e da sua memória só pode ser muito cautelosa. Aspecto importante, requer ainda que se considere a sua história não-europeia, a sua natureza transnacional, transregional e transatlântica, mas também no próprio continente africano. Que não se anule diversidade de actores, instituições, “discursos” e imagens, motivações e interesses. E, claro, exige que se reconheça a sua historicidade e contingência. Ignorar tudo isto é pouco mais do que reproduzir “Congoísmos” de outra natureza, substituindo uma reificação por outra. O que sucede com frequência, mesmo nos mais insuspeitos campos.
__________________
(1) Martin W. Lewis e Karen E. Wigen, The Myth of Continents: A Critique of Metageography(Berkeley/Los Angeles: University of California, 1997); Edward Said, Orientalism (New York: Vintage, 2003 [1978]).
(2) Johnny Van Hove, Congoism. Congo Discourses in the United States from 1800 to the Present(Bielefeld: transcript Verlag, 2017).
(3) John Thornton, Africa and Africans in the Making of the Atlantic World, 1400-1800 (Cambridge: Cambridge University Press, 1992); Susan Williams, Spies in the Congo: America’s Atomic Mission in World War II (New York: Public Affairs, 2016).
(4) François Bontinck, Aux origines de l’État Indépendant du Congo. Documents tirés d’archives Américaines (Louvain/Paris: Nauwelaerts, 1966).
(5) Peter J. Schraeder, United States Foreign Policy Toward Africa: Incrementalism, Crisis and Change(Cambridge: Cambridge University Press pp. 51-113.
(6) Ira Dworkin, Congo Love Song: African American Culture and the Crisis of the Colonial State (Chapel Hill: The University of North Carolina, 2017).
(7) “Untutored African who roams in the wilds of Congo”.
(8) “The American Negro is not in a Congo”.
(9) Van Hove, Congoism, p. 47.
(10) Koen Bostoen e Inge Brinkman, eds., The Kongo Kingdom. The Origins, Dynamics and Cosmopolitan Culture of an African Polity (Cambridge: Cambridge University Press, 2018); Adam Hochschild, King Leopold’s Ghost: A Story of Greed, Terror, and Heroism in Colonial Africa (London: Houghton Mifflin, 1998); Kevin Dunn, Imagining the Congo: The International Relations of Identity (New York: Palgrave Macmillan, 2003); David Van Reybrouck, Congo, une histoire (Paris: Actes Sud, 2012).
(11) Scott Trafton, Egypt Land: Race and Nineteenth-Century American Egyptomania (Durham/London: Duke University Press, 2004).
(12) “Knew themselves to be free, not enslaved; civilized and progressing, not savage and backwards; beautiful and desirable, not ugly and repulsive; and historical, not without history”.
(13) Van Hove, Congoism, pp. 29, 303.
__________________