Conhecimento e pós-colonialismo na literatura global dos escritores guineenses fidjus dibideras no mundo

Bideras ao sol

Quando o sol do meio-dia comece
Sob o escuro da noite e da madrugada
Alal la, kusifidjus
De bandé a pindjiguiti 
Nasibida, dinoti, ditardi, didia, caíram lhe todo sol
O sol da esperança

*

Guiné no tempo

Há tempos
Perde tempo
Ninguém teve tempo 
Pequeno que fosse
Para erguer seu belo tempo
O tempo dedicado aos seus filhos

A ti, Guiné 
Chegou seu tempo

Bideras clamam, da cabeça aos pés (Teixeira, 2018, inédito).

Qualquer obra literária faz parte de uma trajetória do vivido, de experiências e ambivalências sociais, culturais e políticos aos quais a própria obra e o poeta estão intimamente inseridos e historicamente relacionados. Para falar da produção literária de fidjus dibideras1, em prosa ou em verso, de reconhecido valor estético e conceitual da diáspora guineense no Brasil - é preciso registrar a presença de movimentos literários e organizações da cultura guineense, assinalando a atuação política de intelectuais e artistas que desde a segunda metade do século XX trazem ao público, numa literatura ainda em construção e variada, a afirmação dos valores culturais do povo guineense ao lado de críticas de cunho político social.

A década de 1900 inaugura o início da história da literatura guineense. É a data em que Marcelino Marques de Barros, escritor e precursor da literatura guineense (que adquiriu os padrões da língua, da religião e da cultura portuguesa), inicia, no contexto do sistema colonial português, as suas reflexões literárias, esboçadas pelo autor no livro “A literatura dos Negros”, de 1900. Nessa obra manifesta a contestação à imagem “extrovertida” que a política assimilacionista e colonialista nos legou da dita “Guiné Portuguesa”, isolada, exótica e inexistente como fato histórico, antes da presença dos europeus. Essa visão lusocêntrica estabeleceu fronteiras entre “civilizados” e “indígenas” e tentou ocultar as dinâmicas internas da sociedade guineense, anteriores a essa chegada. 
As contribuições literárias do guineense Marcelino Marques de Barros marcaram profundamente as mudanças e o desenvolvimento posteriores que a literatura guineense passou a ganhar.

Não obstante, apesar do forte conteúdo crítico literário de Marcelino, no contexto em que sua literatura tomou corpo, apenas 1% da população da atual Guiné-Bissau podia vangloriar-se de possuir alguma educação elementar e só 0,3% tinham alcançado a situação de assimilado e podiam esperar ir um pouco mais além. Havia apenas uma escola secundária oficial, mas cerca de 60% dos seus alunos eram europeus. Não existia qualquer educação superior. Até 1960, apenas 11 africanos da Guiné colonial haviam atingido uma licenciatura – e todos como “portugueses assimilados” em Portugal, por oposição à população “indígena”, os grupos étnicos. Apoiada pelas missões católicas, a educação colonial, quer dos “civilizados”, quer dos “gentios”, tinha como objetivo expandir um reservatório de colaboradores nacionais capazes, com um mínimo de educação e conhecimento, manter intactos os interesses colonialistas na atual Guiné-Bissau.

A hierarquização étnico-racial era muito mais visível entre a população indígena guineense, grupos étnicos, quando comparado aos “privilégios” educacionais dos grupos “civilizados”. Nessa política de dominação, algumas etnias, ao serem submetidas aos interesses colonialistas, foram escolarizadas para facilitar certas tarefas administrativas, enquanto outras excluídas ou renunciaram à escolarização colonial dos seus membros e, por consequência, viam a etnia escolarizada como estando a serviço dos interesses coloniais.

Estado em movimento, fotografia de Marta LançaEstado em movimento, fotografia de Marta Lança

Nos Boletins Oficiais, fonte da historiografia colonial e editado entre os anos de 1870 e 1974, as resistências locais dos grupos étnicos (ou gentios) eram vistas como ausência de colonização e de evangelização dos indígenas. 

Só em 1951, meio século depois, surge o primeiro poema registrado, na atual Guiné-Bissau, do escritor e político revolucionário guineense, de autoria de Vasco Cabral (1926-2005). Esse movimento inaugurado por Vasco Cabral (meio-irmão de Luís Cabral por parte materna) ganhou força posteriormente, nos anos 1970, a partir da contribuição de jovens “poetas revolucionários” que esboçaram, numa coletânea de textos engajados, os seus sentimentos de “rebeldia” literária, social e política contra o regime colonial como forma de acudir os ideias do movimento nacional contra o colonialismo, bem como dos males por ele acarretado, colocando, em seu lugar, uma nova literatura que visasse reforçar e enaltecer à identidade nacional de uma “nação forjada na luta” para a formação de um “homem novo”, com plena consciência da ideologia do movimento revolucionário.

É com base nessa literatura, politicamente engajada, de mobilização vanguardista nacional-popular que, nos anos 1960-1970, girou grande parte da produção literária guineense, no período pós independência. Nessas obras, os “poetas da revolução” voltaram à “origem” para o interior daquilo que se convencionou chamar de guineendade, um movimento nacional de expressão cultural da identidade guineense com maior incidência entre os grupos falantes do kriol, como a segunda língua falada do país, depois das línguas étnicas, língua de comunicação especialmente entre os mais jovens dos grandes centros urbanos da atual Guiné-Bissau: Cacheu, Bissau, Bafata e Bolama.

Do ponto de vista analítico podemos considerar que um dos pontos significativos evidenciado em poemas na literatura de fidjus dibideras é a ressignificação das duas línguas: o kriol, a língua local, de comunicação interétnica — de unidade nacional — que serviu de base para a luta de libertação nacional, e o português, a língua oficial, herdada da pedagogia colonial assimilacionista, invasora, considerada língua oficial própria do país, que, no contexto colonial, fora propagada/imposta em nome do processo civilizador perpetuado pelos missionários na África, sobretudo, no âmbito conjuntural guineense.

Não obstante as apropriações de duas línguas, no contexto pós colonial, novos sentidos linguísticos foram articulados, novos significados culturais e étnicos foram incorporados e redefinidos, dando vez e voz a formas de enunciação poéticas, por vezes associadas, no âmbito estilístico de poemas, com sentimentos de desencantamento derivado do quadro atual sociopolítico do país, ao mesmo tempo em que incitam o renascimento da Mãe Guiné, “Firkidja”, que representa símbolo de uma mulher “prisioneira na sua própria casa”, mas também de uma mulher djakanka, corajosa, guerreira, menina que cresceu e virou mulher entre dois grande polões, entre vários polos, determinada a seguir seus desejos e suas liberdades. Mulher que, “mesmo sem braço”, aprendeu a voar sozinha, do rio Corubal até as florestas de Kassaka; aprendeu a ser mulher firkidja carregando a criatividade com ordidja (turbante de resistência da mulher guineense, africana e negra).

O contexto em que estes poemas tomam corpo é sociologicamente e esteticamente relevante, marcado pelo descaso com a coisa pública: de “candidatos sem caneta”, “sem folha”, “desnorteados”, “desconhecedores da língua e da cultura de tabanka” (aldeia). Nesse bojo crítico social, o caminho proposto é o “sonho”, a “crítica” e “autocrítica” (isto é, o questionamento) da razão de ser e de sentir poético sob as luzes do brilho híbrido dos olhos das Mães Bideiras, a essência, que combina a alegria e a tristeza, os sabores e os dessabores, a luta e a conquista, o sagrado e o romântico, da Mama, do chão e da nação.

A literatura poética de fidjus di bideras encontra em kriol e em português um jeito singular de expressar as suas experiências vividas, liberdades, dignidades, trajetórias, angústias, ambivalências, decepções, geradoras de traições e tensões, de forma particular e distinta. Aqui, a herança étnica e a subjetividade poética são trazidas para o interior da língua do colonizador-invasor para uma análise poético criadora da liberdade e da loucura, pois, enquanto poeta [da loucura], “já pensei em coisas pensáveis, mas não reveláveis. Já pensei em abraçar a [imagem da] negra nua [simbolizado em frente da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira - NILAB] e andar pelado pela rua, experimentar a verdadeira liberdade de externar o meu eu que o mundo nunca conheceu”. Este modo de conceber a loucura e a liberdade traz implicações não só para a compreensão daquilo que é “exorcizado” [celebração do poeta] como, também, a evidência da dificuldade de integração sociocultural que lhe impediria o exercício pleno da liberdade decorrente da natureza aprisionada e ambígua do eu lírico presentes em diversas poesias em Nos porões das palavras: Primeiro tcholona de tambur.

Por detrás dessa impossibilidade de exorcizar o sentido pleno da liberdade em decorrência do aprisionamento da palavra, aparentemente desalentador, esconde-se um otimismo resiliente de firkidjas da juventude. “refletindo, lendo, escrevendo” e procurando entender os clamores da Mama Guiné “sacrificando para pensar melhor” e cultivando novas kampadas de possibilidades porque sabem, modestamente, que têm potencial para fazer face aos novos desafios de transformações estruturais de sentimentos e práticas, cotidianamente, enquanto poeta e poetiza africana guineense […] tem ku pega tessu pa paga sikinhon (dar sua contribuição à terra), pa firmanta (edificar) seu torrão que se chama nação mandjuandade, de djuntamon, nos porões da palavra guineendade, porquanto, como disse um poeta, “Guiné Somos nós até depois da esperança”. Isso porque a poetiza “kirsi” (cresceu), clama por djutamon (unidade na diversidade, vice versa), sob toque de tambor anunciando novos lante-ndans, binin-ndans [valentes], pa firkidjas di no Kampada pudi dado se balur, ki etem diritu” [para que a Guiné possa usufruir de seu devido valor histórico, ao qual a sua gente tem direito, na Guiné e nas suas diásporas].

O conjunto de versos e poemas insere-se num contexto distinto de constelação de sentimentos, por exemplo, o desejo atual do pluralismo de ideias e da democratização da sociedade, para além de referências hegemónicas, de modo que a questão geracional (sobretudo a ideia da consagração social e política suprema dos mais-velhos), começa a ser questionada, ressignificada e readequada na atualidade como forma de tentar enfrentar os novos desafios, uma vez que a urgência de mudança estrutural pressupõe a ampliação de espaços e a ressignificação da ideia de luta de libertação para a inclusão de outras “comunidades imaginadas” na nova nação emergente, em particular a juventude guineense, com a participação de todos guineenses, tanto no país quanto no exterior.

Os fidjus dibideras fazem referência aos renomados líderes africanos, clamando figuras como Amílcar Cabral, Titina Silá, Carmem Pereira, Nelson Mandela, Kwame Nkrumah, reimaginando um passado “renomado” que marcou o imaginário anticolonial “glorioso” da revolução, para logo de seguida questionarem: “onde está África?” Para quando a África imaginada da musicalidade, de danças de tina, de mandjuandades literários como “fator e fato de cultura”, termo cunhado por Amílcar Cabral. A ênfase cultural de mandjuandades aproxima-se à dos grupos de axé, de candomblé, que a “Bahia cante e encante na encruzilhada de sons de tambores” que expande e encanta a humanidade e a modernidade negra, mas também aos diversos grupos distribuídos nos territórios mato-grosense. Esse viés poético levaria não só ao questionamento do colonialismo, mas também à contestação da visão dominante e essencialista da cultura com alta cultura. Neste sentido, a diversidade cultural é deveras importante, sejam expressões literárias e artísticas que caracterizam um conjunto de significados e sentimentos, características da sociedade e da cultura vivida de mandjuandade e do axé, presentes na África e no Brasil, por exemplo, dentre outras culturas específicas presentes pelo mundo a fora.

Das diversas formas de textos líricos, de pendor crítico ou estético, há aqueles que retratam as experiências pedagógicas enriquecedoras na diáspora e as contradições duma Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), atualmente com maior incidência de estudantes guineenses no exterior em graduação e pós-graduação, paradoxalmente, fora das estruturas educacionais do país de origem de estudantes guineenses, escritores, atores da literatura contemporânea. É um contexto novo, diferente da época colonial e pós-independência, em que o acesso ao ensino superior era (e ainda é) privilégio de uma elite letrada dominante e seus descendentes natos, aprofundando, deste modo, o antigo dualismo educacional entre “civilizados” e “gentios”, herdado do sistema de ensino colonial enraizados sob vários modos no contexto pós-independência até a atualidade, com a democratização em curso.

De forma sintética, os poemas celebram o amor, tanto do ponto de vista de relações efetivas com a terra, rios, florestas e famílias, quanto reveladora de “dispididas”, angústias, ambiguidades, trajetórias, tensões, conflitos, latentes e explícitos, “fofocas” etc. Nesse íntimo, articulam-se sentimentos comuns e percursos particulares ambivalentes, colocando à disposição do público leitor uma abordagem poética rica retratada com a estética de panu di pinti e letras de cantigas-ditos de mandjuandades. Preserva as especificidades identitárias e respeita a alteridade genuína das conexões África-Brasil, através da presença viva de mulheres djakankas que reinventam as suas condições de produção poética, interpelações e manifestações de suas subjetividades artísticas do ato literário do sentir, do criar, do refletir e do pensar a literatura guineense.

  • 1. Na Guiné-Bissau, atualmente os escritores Fidjus dibideras são indivíduos de origem social popular, entre setores historicamente mais excluídos no acesso aos bens sócio-culturais, na sociedade guineense. Na atualidade, são produtores e difusores da criação literária global, na Guiné e no mundo.

por Ricardino Jacinto Dumas Teixeira
A ler | 27 Julho 2019 | Guiné Bissau, Literatura