Fidjus dibideras rumo à kambansa: reflexões sobre luta, literatura e cultura

Introdução

Na última década, vivenciamos, na Guiné-Bissau e nas suas diferentes diásporas, mudanças estruturais — socioculturais, socioeducacionais e sociopolíticas – que se refletem na produção de um conhecimento crítico, autônomo, e que pode ser concebido, particularmente, na literatura produzida tanto no âmbito local, quanto no contexto diaspórico. Esse conhecimento encontra-se em diálogo incessante com a literatura-mundo e, em diversas perspectivas e sentidos, nos textos literários. 

Nesse processo societal guineense de mudança, a presença dos fidjus dibideras (filhos de mães vendedeiras), urbanos e rurais, assume um papel importante, uma vez que podemos, aqui, encarar o seu contexto como uma forma inovadora fundamental, que suscita um novo olhar analítico, produzindo um conhecimento crítico à sociedade guineense, no qual as diferentes diásporas também se encontram. 

Para compreender os sentidos que atribuímos a nós mesmos quando utilizamos a expressão fidjus dibideras em sua emergência distinta, relacional e complementar na sociedade guineense, é necessário situar, inicialmente, o desenvolvimento do conceito de bidera. Pois, tal conceito tem sido, frequentemente, questionado, deturpado ou não devidamente entendido, ou entendido a partir de outros significados distintos do nosso. Em seguida, é necessário apresentar as transformações que ocorreram na sociedade e nas diásporas guineenses, e que geraram as necessárias condições para a emergência e a afirmação conceitual e cívica intelectual dos fidjus dibideras.

Conceito de bidera

 Identificamos, no decorrer da formação societal e literária guineense, cinco momentos distintos, diferentes e complementares, para a significação da expressão bidera: (a) o período anterior e posterior à colonização; (b) o momento após-independência; (c) o período de desencantamento com os ideias da unidade e luta de libertação nacional entre a Guiné e Cabo Verde (dirigido por Amílcar Cabral); (d) o período da liberalização do mercado nacional guineense ao capital externo; (e) e o período atual, em que acrescentamos um novo sentido ao conceito de bidera com designação fidjus dibideras

Neste sentido, a nova designação ganha peso e visibilidade no mundo literário, cívico, artístico e acadêmico no campo de produção de um conhecimento de Guiné Bissau no mundo, apontando assim as suas características e especificidades que requerem um olhar multidimensional e relacional distinto na atualidade sociocultural e socioliterário guineense.

Uma das primeiras conceptualizações sobre bidera, em conformidade aos escritos de Antonio Carreira (1983), é entendida como um conjunto de grupos urbanos e rurais de mulheres de condição social de origem popular, que exercem função social nos mercados públicos. Nos finais do século XVIII e princípios do século XIX, na ‘Guiné Portuguesa’, a função social dessas mulheres carregava os aspectos históricos e socioeconômicos, marcando um longo período de sociabilidade local, interétnica, multicultural, anterior e posterior à colonização portuguesa em África.

 

O investigador guineense, do INEP, Samba Tenem Camará (2011), em sua dissertação de mestrado intitulada “Lumo – estatuto, funcionamento e organização dos mercados periódicos da Guiné-Bissau” (ISCTE-IUL), descreveu, de forma sintética, empírica e atual, o funcionamento e a organização dos mercados de Lumo à luz da dinâmica comercial e cultural do mercado de Mafanco, Região Leste, em Gabu, em que as mulheres, em sua maioria, buscam a sobrevivência cotidiana, e também a construção de laços de sociabilidade individual e coletiva ‘à guineense’. 

Esse trabalho ilustra a emergência de feiras Lumos no comércio popular guineense, com a subjacente a ideia de bideras (gentes que buscam extrair nos mercados populares a sobrevivência coletiva da vida doméstica). 

Essas dinâmicas societais, presentes em tempos mais remotos, se consolidaram após a independência. E, posteriormente, essas dinâmicas societais se articularam nos campos da literatura vanguardista e da música revolucionária para processo de reconstrução nacional (de uma nação forjada na arma da teoria de luta de libertação), concluída com a proclamação da independência nacional entre 1973 e 1974. 

A presença de jovens fidjus dibideras, oriundos de famílias camponesas rurais ou das zonas urbanas mais populares, constituíram-se, em termos sociológicos, contingente populacional à causa da independência do movimento de libertação. Posteriormente, houve um desencantamento dos jovens guineenses pelas promessas não cumpridas e por crises de representatividade da Terra Mãe, conforme explicitado por escritores como Bidera-Pátria. A Mãe Guiné era simbolizada pelo seu corpo maltratado, em textos noticiosos, poéticos, cantigas de mandjuandades, artefatos, adivinhas e pinturas. 

O ambiente literário, da época, fez emergir um conjunto de linguagens e textos marcados pelo desejo de reforçar o discurso da unidade e luta entre a Guiné e Cabo Verde. Na independência binacional (de desenvolvimento voltado ao progresso), esse discurso foi assumido principalmente, mas não exclusivamente, pela geração literária chamada “meninos de pindjiguite”, no contexto pós-revolução política. 

Os textos literários foram produzidos, majoritariamente, por estudantes e ex-estudantes que tiveram acesso ao ensino no, então, Liceu Nacional Honório Pereira Barreto, em um contexto marcado pela herança negativa do colonialismo. Essa geração literária dividia-se entre “civilizados”, urbanizados na sua maioria, que gozavam de um estatuto “especial” e serviram durante muito tempo de intermediários entre portugueses e guineenses; e “indígenas”, grupos éticos, que resistiam ao domínio colonial e se encontravam além do alcance jurídico e administrativo das autoridades locais. 

A literatura serviu de base para uma expressão libertária dos jovens que foram confrontados com decepções com os “novos donos do poder”, em que a língua portuguesa e krioula, acrescidas de línguas das sociedades étnicas guineense, serviram de veículo comunicativo para o tchon, com a Terra Mãe-Pátria-Bidera. A figura de Amílcar Cabral, Sol Maior, Lantindan, e de combatentes guineenses-caboverdianos, eram sonantes e dominavam no repertório literário, pelo papel que assumiram no processo de independência. 

Após a independência, anos 1980, as atividades destinadas às bideras (público feminino) sofreram alterações, principalmente com a construção de cooperativas agrícolas como forma de tentar romper com o legado negativo do modo de produção, consumo, distribuição e comercialização capitalista do regime colonial, considerado nocivo. Havendo, a partir de então, a melhoria do modo de produção “cooperativista” para o aumento dos ganhos dos produtores rurais e o controle sobre as atividades produtivas de consumo interno. 

Tal política serviu de base para o projeto inicial de industrialização do primeiro governo guineense-caboverdiano pós-independência de Luís Cabral (meio-irmão de Amílcar Cabral pela parte paterna), mas que não teve continuidade na promoção de mudanças estruturais com o fim do apoio dos países do “socialismo real”, decorrente da crise econômica global, e que trouxe implicações profundas, que culminaram no golpe de estado de 1980, que solapou a política de “unidade” entre a Guiné-Bissau e Cabo Verde. O golpe foi liderando pelo general guineense João Bernardo Vieira, combatente do movimento de libertação. 

Paralelo ao discurso cooperativo, especialmente para os pequenos produtores em que se salientou o papel da agricultura, do trabalho produtivo, do armazém do povo, da revolução, da formação militante, do homem novo, da unidade, houve uma forte centralização do partido único oficioso e a negação da liberdade e dos direitos básicos, como parte da política de Estado sob a direção do partido único.

O desejo de reconstrução nacional, prometido pelo Estado pós-colonial revolucionário, e que marcou uma geração de jovens escritores guineenses em combatentes dos anos 1950 e 1960, agrupados em torno da “juventude cabralista” do partido da Zona Zero, não teve os resultados esperados, seja pelo discurso da nova classe dirigente ou em termos da prática política governativa. 

Foi neste contexto que houve um aumento de grupos de mulheres bideras e homens bideros, denominada na produção literária em kriolo por Mãe Guiné, Poilão, Firkidja, que impactou vozes e versos de intelectuais e artistas guineenses que expressavam as suas emoções individuais e anseios nacionais que serviram de bases sociológicas e mentais para a formatação de uma geração marcada pelos acontecimentos de sua época. 

O Estado pós-colonial em África (e guineense, em particular) teve os seus primeiros passos em um momento marcado pelas políticas macroeconômicas liberais, acompanhadas de Ajustamentos Estruturais impostos ao Estado pelo “Consenso de Washington” de 1989, pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), pelo Banco Mundial (BM) e de gerenciamento econômico internacional segundo o “Sistema Bretton Woods”, gerando mudanças globais significativas, no campo socioeconômico e político.

Nos anos de 1980 a 1990, com o redirecionamento do eixo de desenvolvimento econômico para os processos de liberalização em África, foram promovidas reformas que frustraram as expectativas, criadas em volta da independência na manutenção da autonomia e soberania. Para fazer face ao alto nível de desemprego, por exemplo, o Estado, confrontado com a nova realidade, induziu, à época, à informalização do mercado, mantida na atualidade pela marginalização econômica das mulheres bideras e agricultores.. 

Ensino superior na Guiné-Bissau

Os estudos mostraram que a emergência de ensino superior na Guiné-Bissau foi tardia, tendo seu momento decisivo com o surgimento da Faculdade de Medicina, criada em 1986. Todavia, como normalmente acontece em outros lugares, a Faculdade de Medicina não dispunha de recursos humanos suficientes, razão pela qual contava com a cooperação técnica e o apoio financeiro e educacional da República Popular da China, Cuba, Rússia, Holanda e da própria Organização Mundial de Saúde, como coordenador dos esforços dos estados nacionais em termos da saúde global. 

A tal política de apoio ao sistema nacional de saúde guineense não teve continuidade sistemática, sobretudo devido as crises dos anos 1980. Com o fim dos recursos técnicos e humanos vindo do antigo bloco soviético, o país precisou iniciar o seu projeto de construção de faculdades e escolas técnicas. 

Em 1985, o antigo Destacamento Vanguarda Tchico Té, criado no regime de partido único oficioso, foi transformado em Escola Normal Superior de Formação de Professores de ensino básico e secundário, em algumas regiões do país. Foi criada, na capital político-administrativo, a Faculdade de Direito de Bissau (em 1990) com o objetivo de reforçar as capacidades do sistema jurídico e reforçar o acesso da população à justiça. As duas instituições de ensino superior, desde suas fundações, contaram com a cooperação portuguesa, centrado no ensino, acessória técnica e formação de professores para o mercado de trabalho do funcionalismo público e privado do país. 

As chances de fidjus dibideras entrarem numa instituição de ensino superior aumentou, mas continuavam insuficientes os cursos superiores existentes no país, tanto nas instituições públicas, quanto nos estabelecimentos privados de ensino superior. 

Só em 1999, treze anos após a fundação da Faculdade de Medicina, surgiu, em Bissau, a primeira instituição pública universitária – Universidade Amílcar Cabral (UAC), assim denominada em homenagem ao líder fundador da nacionalidade guineense e caboverdiana. Em seu projeto inicial a UAC ministraria cursos superiores, politécnicos e profissionalizantes, podendo expandir para graus de bacharelado e doutorado. Assim, todas as instituições de ensino superior do país ficariam sob a tutela do Estado guineense que, em termos constitucionais, deve assegurar à criança e ao adolescente o acesso à formação básica, técnica e superior. 

Se até 1999 o acesso ao ensino superior era monopólio de instituições estatais, com o surgimento da Universidade Colinas de Boé (UCB) em 2013 ocorreu abertura do mercado do ensino superior para setor privado de ensino superior na Guiné-Bissau. A UCB surgiu em homenagem ao local no qual se proclamou a independência unilateral da República da Guiné-Bissau. 

Em 2008, o governo autorizou a criação da Universidade Lusófona da Guiné (ULG), sob a administração da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologia de Lisboa e, em 2010, surgiu a Universidade Jean Piaget da Guiné Bissau com o objetivo de responder as inspirações de jovens guineenses e de satisfazer as exigências do mercado de trabalho. Trata-se, portanto, de um momento novo distinto daquele em os guineenses dependiam de instituições públicas de ensino superior na Guiné Bissau.

Só a partir desse novo contexto educacional, que formou os fidjus dibideras, criaram-se as bases intelectuais para o processo da diáspora acadêmica, no contexto da cooperação internacional de ensino superior.

Um novo momento 

As políticas de ajustes macroeconômicos patrocinados pelo BM e pelo FMI, no contexto dos anos 1990, adicionaram problemas educacionais e crises sociais comuns ao Brasil e aos países da África, historicamente não resolvidos, com realce no acesso ao sistema do ensino superior. A Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), fundada em 2008, apareceu como uma resposta do governo brasileiro para repensar seu sistema de ensino superior, até então restrito a certos grupos sociais, mas, também, como instrumento da chamada “política solidária” de cooperação internacional de ensino superior, que ganhou prioridade na década de 1990 e acentuando-se nos anos 2000, nos governos dos ex-presidentes Luís Inácio Lula da Silva (2003-2011) e Dilma Rousseff (2011-2016). 

A Unilab, dentro dos parâmetros do seu Estatuto, em vigência, se fundamentou em quatro eixos prioritários de atuação universitária, nomeadamente a solidariedade do Sul, a interiorização, a democratização e a internacionalização. Sua criação foi uma política deliberada do governo brasileiro, um ator importante da cooperação, mas não único. Houve a presença de outros agentes, sobretudo, de estudantes do continente africano no Brasil, denominado por nós de fidjus dibideras, historicamente excluídos no acesso ao ensino superior em seus países de origem. 

No Brasil, especialmente a Unilab, passou a ser o lócus de estudantes africano-guineenses, fidjus dibideras, no âmbito da chamada “cooperação Sul-Sul”. A nossa intenção visa mostrar que a expansão de ensino superior no país e nas diásporas criam novas condições de possibilidades, novos conceitos, novos sujeitos históricos, num contexto educacional marcado pela transformação social das estruturas de mentalidades, através do pensamento e de criatividade dos fidjus dibideras na produção de saberes. 

Em síntese, encontramos quatro características constitutivas em relação ao conceito de bidera, apontadas anteriormente: (a) a primeira caraterística ficou marcada pelo mundo de trabalho físico — isto é, a falta de estruturação do mercado local e nacional, o que aponta, claramente, para o modo de trabalho informal, à pobreza, à marginalização de um grupo social majoritário da sociedade guineense. Estes são elementos constitutivos presentes nos indicadores oficiais do Estado e das agências internacionais da ONU sobre o trabalho familiar e a informalização da economia em geral; (b) a segunda caraterística, por sua vez, tem a ver com a pressão social e familiar que a ausência da educação escolar exerce sobre a maioria da população feminina guineense, decorrente, mas não exclusivamente, da ocupação doméstica imposta por homens à sobrevivência familiar, assumida maioritariamente por mulheres, em diversos setores da vida societal; (c), a terceira caraterística, em sintonia com as duas primeiras, realça-se a degradação dos ideais da independência, em decorrência da desconstrução da estrutura social, inclusive, de infraestruturas e estruturas consideradas fundamentais que foram herdadas da colonização pelo novo regime; e, (d), a quarta caraterística, sob o viés da nossa perspectiva conceitual, refere-se à expansão de ensino superior na Guiné-Bissau e em suas diferentes diásporas, em que a Unilab-Brasil se destaca como locomotiva da cooperação internacional de ensino superior com África-Guiné Bissau. 

É dentro desse conjunto de acontecimentos e perspectivas que o conceito de bidera é visto no interior da literatura sobre a sociedade guineense, marcada, inicialmente, pela marginalização e pobreza, e que determinou o seu sentido social e sua função no mundo do trabalho. Resta-se agora apontar, finalmente, outro significado ao conceito formulado de fidjus dibideras, em oposição relacional ao conceito de bideras.

Conceito de fidju dibidera

A situação da marginalização societal das mães bideras, Mãe Guiné, a nível do mercado local e nacional de comércio do qual dependem para sobreviver, gerou, concomitantemente, uma situação nova marcada pela luta das bideras pelo acesso à educação escolar dos fidjus dibideras, na Guiné Bissau e em suas diferentes diásporas.

O acesso à educação, infelizmente não assumido pelo Estado guineense, ou foi assumido seletivamente, e passou a fazer parte de um repertório vital de ações de kanbansa (mudança sociocultural) de fidjus dibideras. 

É um momento novo, um contexto novo, com sentido novo e novos atores, cujo significado remete para a negação do fatalismo, do assistencialismo, do camaradismo, do comodismo e do vitimismo. Nesse sentido, colocamos uma questão distintiva ao conceito de fidjus dibideras que, para a nossa definição, nos parece fundamental responder: qual é a visão que os fidjus dibideras têm do mundo? Como essa visão se articula com os problemas globais, nacionais e locais? Em que medida esse movimento geracional potencializa transformações? 

De acordo com a sua posição societal, a geração de fidjus dibideras é marcada pela busca de autonomia, busca da liberdade acadêmica e construção intelectual de um conhecimento crítico de Guiné-Bissau, em diálogo com tudo aquilo que a humanidade produziu em termos de saberes, filosofias, artes, literaturas, ciências e tecnologias. 

A presença propositiva de fidjus dibideras na Unilab teve um papel importante na busca de novas saídas. Um exemplo disso acontece no âmbito das produções literárias, grupos musicais, grupos de teatro e produção científica. Outras gerações foram marcadas por tais ideias, mas de forma menos intensa, mais residual, quando comparada com a geração de fidjus dibideras. Realça-se, aqui, um contexto marcado pelo pluralismo e pela democratização e ampliação do acesso ao ensino superior, em todos os seus aspectos e níveis. 

Os fidjus dibideras definem-se como um movimento intelectual e acadêmico com potencialidade transformadora, marcada de uma visão universalista que têm do mundo e, principalmente, de uma trajetória comum de vida e lutas renhidas, enquanto grupo, enquanto agentes potenciais de mudanças na Guiné-Bissau e nas diásporas guineenses; um grupo de novas possibilidades, companhias e solidariedades, de uma vida diferente àquela que tiveram a maioria das bideras, nossas mães. 

A marginalização a que foram submetidas as bideras no acesso aos bens socioculturais e efetivação dos direitos a ter direitos, fez dos fidjus dibideras, desde cedo, portadores potenciais de uma ética de estudo e de trabalho duro, sem complexos, de superioridade ou inferioridade, potencializando uma nova história, um recomeço efetivado através de reconhecimento crítico da cultura e da literatura.

Na atualidade, fica claro que a presença de fidjus dibideras, na Guiné Bissau e em suas diferentes diásporas em que estamos inseridos, não se restringe ao campo econômico do mundo de trabalho familiar, a economia doméstica, restrito ao setor agrícola e ao comércio informal para a sobrevivência. As suas capacidades abrangem a esfera literária, política, partidária, administrativa, estética, cívica e tecnológica, como sempre abrangeu outras gerações, mas agora de forma mais intensa, porque, se conjugado, existe um conjunto de situações novas não restritas à pobreza, ao autoritarismo oficioso, à vida de “djunta muntudo” [marginalização], “quebra carus” [sem direitos]. 

Por mais que se possa questionar, ou não se queira admitir, não se pode negar as transformações geradas pelo mundo globalizado e competitivo, mas também excludente, no qual a nossa geração está inserida como parte integrante do mundo. 

Não obstante a resiliência, há riscos geracionais de fidjus dibideras, de natureza diversa e extremante vicioso. Entre os principais, os que nos parece presentes, estão as armadilhas do entusiasmo, do populismo, do amiguíssimo, do consumismo, do partidarismo, de djitu ka tem, de tchonalmente (tchon), de uma sociedade controlada e manipulada ainda por garandis [os mais velhos], que se encontram atrelados ao sistema político (Estado e partidos). Pois, muitos de nós ainda cultivamos e acreditamos que quem não obedece às “regras dos mais velhos”, não obterá sucesso e reconhecimento de “homens e mulheres grandes”, que atuam como promotores de jovens na cidade de Bissau e nas zonas rurais. 

A crítica sociológica que se pode fazer a esse aspecto da sociedade guineense, controlada por essa lógica, é que nega o diálogo entre gerações, de forma aberta e relacional. Mais que isso, nega-se os meios para as transformações e inovações abertas - open innovations — de uma ideia distinta de juventude vista estrategicamente para manter os mais jovens em seu devido lugar, ou por considera-los como um grupo imaturo, cujo amadurecimento é de difícil precisão temporal. A dificuldade de comunicação e aceitação geracional induz a ‘fuga de cérebros’ – brain drain — para sociedades mais abertas e plurais, onde existe maior circulação de ideias e interpelação na esfera pública. 

Apesar dos desafios da desigualdade, que não são poucos, os fidjus dibideras primam pela qualidade, produzem a sua tecnologia, a sua literatura, cinema e arte e, por isso, procuram se comunicar com o mundo para aumentar as suas capacidades, a partir de uma visão universalista. Mas sempre com a consciência de suas trajetórias de lutas.

Sintomas atuais dessa transformação geracional e societal, ainda em construção, podem ser observados na vida cotidiana das bideras guineenses, em todos os níveis, na Guiné e em suas diásporas. Cada vez mais há fidjus dibideras e dibideros guineenses autônomos, intelectualmente participativos nas dinâmicas locais e diaspóricas de transformação social, projetando um novo ponto nodal, uma nova prática articulatória de imagem da Guiné-Bissau no mundo. 

Através de seus esforços, as bideras e bideros empregam, de modo cada vez mais acentuado, na formação dos filhos, que, hoje, assumem funções de destaque no funcionalismo público e empresas privadas, em docência em universidades, como escritores, professores e artistas.

Fidju dibidera como bolanha

Há sinais positivos, ainda que insuficientes e contingentes, mas, se conjugadas as sinergias na Guiné e em suas diferentes diásporas, poderão potencializar grandes reformações. Nós, fidjus dibideras, somos sujeitos que não se dão por vencidos em nossas lutas por direito a ter direitos para a construção de uma nova ourique [nova bolanha] em movimento. Tão variado e rico a bolanha é a voz e a presença literária de fidjus dibideras no mundo artístico e intelectual, em conciliação com a sua trajetória, cidadania, conhecimento crítico e a luta pela autônoma para atingir seus objetivos.

Somos como uma bolanha, de cujos arados cultivam e desbravam os caminhos dos sonhos, das transformações de vidas em nossas vidas, revolvendo a nossa terra com ser arados em movimento e harmonia: o arado de solidariedade, o arado do respeito à diferença, o arado do reconhecimento, o arado do pluralismo de grupos socioétnicos, sociorreligiosos, o arado da literatura-mundo a partir da Guiné-Bissau e de suas diásporas, e o arado das variantes linguísticas e literárias diversas, conectadas transnacionalmente. 

O maior desafio para uma mudança estrutural reside em criar sinergias nacionais e diaspóricas que potencializam novos conceitos, novas antologias de mudança, sem hierarquias, sem exclusões, como as bolanhas, pois os fidjus dibideras são arados de luta, sementeira, literatura e cultura. 

por Ricardino Jacinto Dumas Teixeira
A ler | 27 Junho 2020 | Guiné Bissau