Do artista enquanto ferramenta reacionária
Meti a poeta na jaula!
como macaca brava de circo
rosnava assustadoramente
faminta e incontornável
poetas devem ser sublimes
não feias, vulgares, mondrongas
poeta é tênue, intocável
não disforme
Vez por outra escapava
pra me encher de culpa pelo poema
que não paga as contas do mercado
a comunista me viu acabrunhada
Reclamou:
— Você é poeta. O demônio tem medo
da poesia!
Taí a função da poeta primata
Esperei, esperei, esperei. Precisava escrever este texto, mas esperei. Fui muitas vezes provocada, muitas vezes ele quase me veio. Mas ignorei, titubeei, deixei-o gestar no corpo, uma gestação infinda e conturbada, porque sabia que sim, ia doer. Em mim, para escrevê-lo, em um possível companheiro que, por ventura, o leia e sinta-se atingido pela mensagem que proponho.
Em 2019 publiquei este poema no livro Pés Pequenos pra Tanto Corpo (Urutau), este acima que nos serve aqui como epígrafe. Já o havia escrito há algum tempo, muito motivada por um sentimento um tanto sem formulação nesta altura, ou por uma impressão intuitiva voraz (ainda não sei bem) de deslegitimação, ou talvez de não pertencimento a um certo molde pré-concebido sobre o que é e o que não é ser um escritor, escritora, em meu caso.
A referida macaca era mesmo eu, esta que vos escreve, ou que tenta. Brava, feroz, atormentada e barulhenta, cuja presença irrita, incomoda, provoca ruídos. Mas que ousadia, ela, uma macaca fêmea de espécie invulgar, de território inóspito, atrevendo-se a ser. E era, mas não sabia, apenas queria, desejava, como primata que sou, instintiva: escrevia. E era enjaulada, eu, a macaca, e seus gritos, suas palavras tão aleatórias, seus desejos primitivos, sua ousadia. Assim sentia-me, portanto. Enjaulada. Mas este poema foi escrito muito antes de ser publicado. E foi um ponto de partida importante para muitas reflexões que viriam a seguir.
O que é um escritor? Quem pode ou não ser um escritor?
São perguntas que me acompanharam ao longo dos últimos dez anos, e que deram origem a uma série de projetos autorais e coletivos em que participei, realizei, investiguei. Antes de tudo, deixo-vos claro. No princípio, tudo o que havia era apenas sentimento, um sentimento profundo de desenquadramento muito pouco consciente no que tange tanto aos processos produtivos da literatura quanto a orientação histórica do devir autor-escritor. Era apenas sentir. Era mulher, e nascida no nordeste do Brasil, e estes eram pontos-chave. Mas não era apenas isso, ainda que isso já fosse muito. Tudo, tudo parecia dizer: você não pode fazer isto, ao menos não assim, desse jeito que está fazendo.
Eram significados semióticos que me alertavam que, em caso de ser inevitável isto de ser artista, seria preciso mudar, ser assimilada, enquadrada em um devir. A macaca já era fêmea, de território inóspito. Não seria permitido que fosse ainda incontornável, barulhenta. Era preciso adequar-se. Ser silenciosa, discreta, enigmática, misteriosa. E não, eu não era a Clarice Lispector.
Certo dia, em meio a pesquisas literárias aleatórias, li uma entrevista ótima com a Heloísa Buarque de Holanda, e numa dada altura ela contava que certa vez a Clarice a repreendeu, e a aconselhou a sorrir menos: “não levam a sério mulheres que sorriem”, teria dito. Elas eram amigas. E, de facto, é difícil encontrar fotos, imagens e vídeos onde Clarice esteja a sorrir. Para além de seu texto imprescindível, esplendoroso, Clarice criou, em certa parte, uma persona. Uma persona para ser levada a sério. E estas duas coisas juntas foi o que proporcionou que ela furasse a bolha e se convertesse numa autora consagrada pelo Cânone.
Mas neste texto não proponho debater o cânone. E nem os problemas de gênero. Isto já faço em meu trabalho de investigação. Aqui, minha sugestão é entendermos o que é exatamente este molde pré-concebido, qual o devir-escritor (a)? E responder as tais perguntas que anuncio mais acima, em itálico. Uma resposta mais resumida dir-nos-ia que escritor é quem escreve, e que artista é quem faz arte. Seria bom se assim fosse, entretanto não é bem assim de facto.
Observando, durante estes anos, o comportamento de colegas, companheiros e companheiras do meio literário, percebo que dificilmente algum consegue fugir do famigerado Mito do Génio. Isto ocorre porque o mito resume o ser artista numa caixa de uma criatividade ímpar, nata e inalcançável. O génio é aquilo que poucos são, tem uma iluminação metafísica inexplicável, é diferente de todos porque veio de fábrica dotado do seu talento incontestável, um lobo solitário e incompreendido com a missão de produzir e deixar para sociedade o legado da sua genialidade impressionante cujo conteúdo será capaz, sozinho, de modificar paradigmas. E em uma sociedade cujos valores individuais são historicamente enaltecidos, é compreensível, todos desejam ser especiais.
O tal mito não existe sem motivos. Tem sua origem enum projeto profundamente reacionário. Produz sozinho uma esfera semiótica que gera um sentido dialeticamente ideologizante, capaz de produzir ainda um significado dominante do ser artista enquanto uma força coletiva de controle social. Ou seja, serve exclusivamente para manter a ideia de que produzir arte, literatura, é para poucos, alguns eleitos, que não é algo para qualquer pessoa, serve para proliferar a falácia que habilidades artísticas não são coisas que se podem ser aprendidas, e que, sendo assim, pertence a alguns notáveis que farão precisamente o que precisa ser feito para manutenção do estado de coisas.
Num capítulo intitulado Cultura: Um conceito reacionário? presente no livro Micropolítica: cartografias do desejo (1978), Felix Guattari e Suely Rolnik explicam como a obra de Proust, por exemplo, gira em torno de explicar este funcionamento padrão. A ideia de que seria impossível autonomizar esferas artísticas porque toda produção de sentidos é comprometida pelos signos dos modos de produção dominantes1 gerando um controle da subjetivação, que serve para manter a cultura enquanto ferramenta para sujeição subjetiva diametralmente equivalente ao capital, que ocupa-se da sujeição económica.
Essa cultura de massa produz, exatamente, indivíduos; indivíduos normalizados, articulados segundo sistemas hierárquicos, sistemas de valores, sistemas de submissão – não sistemas de submissão visíveis e explícitos […] uma produção de subjetividade social, uma produção de subjetividade em todos os níveis da produção e do consumo (…) produz inclusive aquilo que acontece conosco enquanto sonhamos, quando devaneamos, quando fantasiamos, quando nos apaixonamos Em todo caso, ela pretende garantir uma função hegemónica em todos esses campos (GUATTARI; ROLNIK, 1996, p.16)
Por isso, o mito do gênio torna-se um grande guarda-chuva capaz de abrigar nossos comportamentos enquanto artistas, escritores e, muitas vezes, como investigadores, ainda que sejam os mais assumidamente progressistas, que não estão imunes a assumir para si este modo de subjetivação conservador e fascistizante, facilmente identificado na micropolítica cotidiana. Por exemplo quando a colega se assustou ao me ver em um evento que julgava “menor” do que a minha suposta importância enquanto escritora, na dificuldade e na visível falsa modéstia de outra colega em divulgar seu próprio trabalho e suas próprias vitórias profissionais fingindo costume para tudo, quando recebo “conselhos” de colegas que orientam que eu não interaja tanto nas redes sociais e que mantenha um “distanciamento” (olha a Clarice aqui bem evidente), está presente na constante celebrização da figura do autor, que ao ganhar alguma notoriedade é rodeado de lambe-botas por todos os lados, e gosta disto, está presente na autora, com algum reconhecimento, que recusa o convite da revista literária após constatar que os outros convidados não são tão célebres quanto ela se julga, ainda que bons profissionais, nas pessoas que mudam a visão que tem de você ao saber que foi jurada de um prêmio importante; entre outros exemplos.
Mas contrapondo um pouco Proust (veja bem o tamanho dessa ousadia) atrevo-me a dizer que é possível, sim, ressignificar um projeto para uma produção autônoma de sentidos deste ser artista. Esta possibilidade está no abandono do sentido do indivíduo autor, ainda que não da autoria.2 Por isto, caro colega, venho aqui dizer que não, você não é especial como pensa ser. Importante é, claro que sim. Somos todos importantes se queremos pensar em um sentido concreto de humanidade não antropocêntrica. Mas talvez o maior desafio para um escritor que ainda deseja abandonar o sentido reacionário do ofício e parar de fazer coro cultuando signos de origem fascista, é entender-se como uma pequena parte de um todo social, onde, assim como você possui um saber valoroso e importante, também outros profissionais de outras áreas o possuem. Um marceneiro tem um saber fundamental, um picheleiro é a base de muitas soluções, um agricultor tem conhecimentos que nos alimentam, e assim por diante.
Caro escritor, você não é especial, é um trabalhador precarizado sobrevivendo vulneravelmente no seio da lógica de produção capitalista, e sujeito a todos os estímulos de seus aparelhos de Estado. A importância do seu trabalho para a sociedade mora justamente em oferecer suas habilidades aprendidas e desenvolvidas para disputar esta narrativa sequestrada pela classe dominante produzindo, portanto, outros signos contra-hegemónicos; e quando você não faz isso, você esvazia o real sentido do que é ser um escritor – ou um artista – refletindo seu próprio tempo histórico. E se depois de descobrir isto sobre si próprio, ainda assim desejar ter um papel para emancipação real da humanidade, matar o génio é o primeiro e mais desafiador passo nesta direção.