A menina burra e a caixa invisível

Na triste história da menina burra a menina não contente em ser burra, também não era bonita como era suposto, nem prendada e nem obediente, era distraída e não tinha muitos modos, não era serena e vivia elétrica como se tivesse com abelhas nas cuecas. Na triste história da menina burra, a menina sentia e sentia muito, e só sentia que não estava certo não ser, ainda que burra, e se era burra portanto, que tinha então o direito a sê-lo. A menina burra passou então muitos anos sendo burra, apontada como burra, chamada de burra, convencida do fardo da sua burrice. A menina burra então ia à escola e ficava olhando para frente, mas saia de lá tão burra quanto entrou. Fizeram tudo o possível para driblar a burrice sem tamanho da menina, até mesmo contratar um inteligente que passava com ela todas as artes transmitindo-lhe a sabedoria, nada resultava, todas as tardes era mais um dia para constatar como era burra a menina. 

Mas ainda que burra, era curiosa e desobediente, já ouvira as indicações que alertavam para ter cuidado com a luz, e um dia caminhava calmamente quando o tal feixe de luz tão malfalado atravessou bem na sua frente e automaticamente jogou seu pescoço para cima, como um reflexo. Ela olhou e viu uma fresta, e nesta fresta meteu a cara, e então reparou que estava dentro de uma caixa, e que fora dela havia coisas e cores estranhas as quais ela não sabia o nome porque era burra. Ela atravessou essa fresta e já do lado de fora, pôs os olhinhos para espreitar na direção contrária. 

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Neste momento a luz da fresta encadeou sua vista com uma claridade que nunca tinha visto antes, e a menina burra não deixou de ser burra, mas foi a primeira vez que aprendeu; aprendeu que clarear a vista ajudava a aprender porque foi a clareza que lhe fez aprender que estava na caixa. E na claridade decidiu ficar, e ficando que foi, a menina burra agora já menos burra foi aprendendo e criando os nomes das coisas e cores estranhas que estavam fora da caixa. Olhou-se no espelho, e viu que a luz realçava seus olhos e seu cabelo, e até podia ser menos feia; e que distraída que era, estava agora muito concentrada em todas as novidades tão novas e possíveis do lado de fora da caixa. 

Até que um dia a menina menos feia que antes, menos distraída que antes e menos burra que antes lembrou da fresta, e da caixa onde costumava ser a mais feia, a mais distraída, a mais desobediente, a mais burra. Caminhou de volta até lá e, curiosa que sempre foi, meteu o rosto para ver como andava a caixa do lado de dentro. Estava tudo escuro, ela esperou os olhos se acomodarem à falta de luz e ficou a ver passar um a um os sábios de dentro da caixa que ela conhecia bem porque todos já tinham tentado fazer com que deixasse de ser burra. Observando, reparou como os sábios eram bons em repetir o manual da caixa, como essa sabedoria só resultava dentro dela, mas como nenhum deles sabia sequer que estava em uma caixa, nem que havia algo fora da caixa, e menos ainda nomear todas as coisas e cores estranhas que existiam e que, agora, a menina, que fora burra quase toda a vida, conhecera justamente por causa da sua desobediência.

Na triste história da menina burra, a história não acaba assim tão triste, e a menina não acaba assim tão burra. Ela aprendeu a aprender, aprendeu que era a escuridão da caixa a impedia de enxergar conhecimentos e sabedorias, e finalmente foi aos registos e mudou seu nome para “a menina cujo cérebro só aprendia na luz”.

por Manuella Bezerra de Melo
Vou lá visitar | 11 Abril 2025 | crónica, menina