Esquecer em português
Compreendemos uma sociedade tanto pelo que ela acalenta na sua memória coletiva, como pelo que ela esquece. É um facto: as sociedades esquecem. É um processo necessário à criação de identidades coletivas, de solidariedades políticas, de projetos de governação da sociedade, de sobrevivência e de reinício coletivo após guerras civis ou outros eventos responsáveis por ruturas. Esta noção de esquecimento como ferramenta útil e integrante da construção do social e político tem vindo a ser tratada por reconhecidos autores, desde o francês Paul Ricoeur, ao britânico Paul Connerton, ao americano David Rieff.
Recorro à definição de esquecimento (forgetting) oferecida pela reconhecida Encyclopaedia Britannica. A imagem que oferece é nítida: “Quando a memória de um acontecimento passado não é ativada durante dias ou meses, o esquecimento tende a ocorrer”. Esta definição salienta a capacidade de ação e de produção do processo de esquecer. Transpondo para o âmbito social, o que é que as memórias coletivas não ativam durante meses, anos ou séculos, acabando por “esquecer”? E o que é que o esquecimento produz? Esquecer é uma ação que não produz um espaço zero. O referente da experiência que não se ativa e eventualmente se esquece não desaparece. É essa produtividade do esquecimento que me inquieta e estimula quando trabalhamos a(s) memória(s).
Desde há alguns anos, Portugal tem vindo a ser palco de debates e discussões públicas sobre a narrativa histórica do país, um debate acicatado com o anunciado museu em Lisboa dedicado às “Descobertas”. Nesta discussão, deteto alguns esquecimentos que dialogam de forma muito evidente com as entrevistas que o projeto MEMOIRS tem vindo a recolher com descendentes de famílias que vieram de Angola e que subjazem ao meu estudo de caso. Um desses esquecimentos prende-se, precisamente, com o ensino da história. Na experiência e memória das pessoas que entrevistámos, a escola continua aesquecer a complexidade da experiência colonial portuguesa e o seu contexto europeu, em particular na fase seguinte à dos “Descobrimentos” que, depois de detalhadamente ensinados, se desvanecem e, numa história sucintamente contada e pouco interligada, terminam abruptamente com o 25 de Abril de 1974.
No debate sobre o novo museu, a narrativa sobre o contributo do país para a primeira modernidade europeia continua a impor o esquecimento sobre a violenta afirmação desse projeto, quer no processo de instalação comercial (com a inauguração, entre outras rotas, do tráfico transatlântico de pessoas escravizadas a uma escala sem precedentes), quer na imposição imperialista europeia que levou às “guerras de pacificação” em África e na Ásia, um oximoro que encerra em si a inevitável violência deste período histórico. Esquecimento que continua quando conhecemos a violência, organizada política e socialmente, da exploração económica dos recursos materiais e de pessoas dos territórios “descobertos”, e as lutas violentas pela libertação do jugo colonial já em pleno século XX. Veja-se, a título de exemplo, os textos que têm vindo a público no Jornal de Letras (entre maio e julho passados), assim como os argumentos do entusiasta painel a favor do Museu que participou no popular programa Prós e Contras de 16 de julho, também este ano, para se entender que esta violência documentada e reconhecida é conscientemente relegada para uma nota de rodapé, justificada com a forma de ação política habitual da época. Portanto, o esquecimento tem vindo a ser defendido explicitamente.
Este é um debate político, requer opções. Nenhuma narrativa historiográfica é neutra, “o que está em questão não é simplesmente o que fomos, mas sim o que somos e, sobretudo, o que queremos ser” (A. Sousa Ribeiro). Acresce que a impossibilidade de atingir a neutralidade é total quando se debate a construção de um museu, “instrumento de representação de poder” (A. Pinto Ribeiro). Portugal encontra-se, como nunca antes, num momento de debate informado e fértil, alargado a toda a comunidade portuguesa, branca e não branca, em articulação com debates semelhantes na Europa (F. Cammaert sobre Bruxelas; F. Vilar sobre França; A. Sousa Ribeiro sobre Berlim) e não só (R. Vecchi sobre Argentina, A. Tironi sobre o Chile ou M.C. Ribeiro sobre as Antilhas Francesas).
Ora, neste contexto social e político de Portugal e da Europa, devemos perguntar o que é que aquele esquecimento – resultado do ensino da história, da monumentalização dos Descobrimentos ostensiva em Lisboa e outras cidades do país, de momentos mediáticos como o referido debate – produz. Por iniciativa da Associação de Afrodescendentes - DJASS, foi aprovado o projeto de um memorial à escravatura através do processo de Orçamento Participativo de Lisboa de 2017/18. Estando o Museu das Descobertas anunciado desde o programa eleitoral do atual executivo, a iniciativa da DJASS ganha relevância pelo gesto de “dever de memória” (Levi), contrariando assim o esquecimento – de novo – das vertentes menos epopeicas dessa “viagem”. A mesma autarquia vê-se, agora, a braços com dois projetos que poderiam dialogar entre si, mas que, até ao momento, não se percebe de forma clara como tenciona integrar. Ficamos na expectativa de perceber como é que estas memórias multidirecionais (Rothberg) se articularão ou se, pelo contrário, continuarão em guerra (Stora, Blanchard) por uma perigosa história única (Chimamanda Adichie).
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Artigo produzido no âmbito do projeto de investigação MEMOIRS– Filhos de Império e Pós memórias Europeias, financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (nº648624), Programa Europeu para a Investigação e Inovação Horizonte 2020.