Introdução do livro "Funaná, raça, masculinidade"
O presente livro propõe uma etnografia e história do funaná, uma prática de música e dança que emergiu na ilha de Santiago, Cabo Verde, no período pós-escravatura de final do século XIX, ligada às práticas expressivas de tocadores de gaita (um acordeão diatónico de botões), fero (uma barra de ferro friccionada e percutida com uma faca) e cantores, assim como de audiências participativas. Ao situar esta prática expressiva numa trajetória colonial e pós-colonial o livro procura questionar de que modo a prática cultural e a raça enquanto formação discursiva se entrelaçaram em contextos coloniais, como esse entrelaçamento foi questionado na pós-colonialidade, e que legados desse processo de racialização persistem no presente.
A dominação dos regimes coloniais não se exerceu apenas nos planos político e económico, mas igualmente no da prática cultural. Os regimes coloniais foram “projetos culturais de legitimação,”[1] assentando numa socialização das populações relativamente à “superioridade moral e cultural”[2] de se ser branco e europeu. Os estatutos sociais ligavam a cor de pele, os bens materiais e a educação aos hábitos culturais concebidos como signos de valor civilizacional e de grau de respeitabilidade. As práticas culturais adquiriam tanto mais valor quanto se aproximavam do aparato cultural do colonizador e da imaginação de uma cultura europeia. Estas noções de valor cultural assentavam em regimes de conhecimento e de representação mais alargados, compreendidos pelo discurso europeu da raça. No interior deste sistema de classificação da diferença, os europeus representavam a civilização, a razão, a cultura e o refinamento, e os africanos indexavam a natureza, a barbárie, a inocência, a não civilização— constituíam a figura do “dissemelhante,” da “diferença” e do “vazio.”[3] No caso de Cabo Verde, uma economia de plantação e plataforma de tráfico de escravos no Atlântico onde a população branca foi historicamente minoritária e a população mestiça, na longa duração, veio a ocupar posições intersticiais na estrutura social, esta economia de sentido ramificou-se através do tecido social e foi crítica para a demarcação das fronteiras de classe e raça entre diferentes grupos sociais.
Desse modo, a descolonização como concebida pela luta anticolonial procurou quer o alcance da soberania política, quer a transformação do domínio da representação e o “restauro”[4] da subjetividade. Este processo compreendeu uma “reavaliação cultural” levada a cabo pelas políticas culturais dos novos estados nação soberanos[5] ou desencadeada, como defendo relativamente ao funaná, pelos próprios produtores culturais como músicos, artistas e intelectuais. O livro procura dar conta desta transformação histórica entre os momentos colonial e pós-colonial, indagando como estes regimes de representação atuaram sobre as práticas da cultura expressiva[6] em Cabo Verde; como foram criticamente refletidos na pós-colonialidade; que legados persistem deste processo, concretamente na anterior metrópole Portugal; e de que modo as diferentes formações raciais e projetos de racialização foram historicamente experimentados por músicos e públicos de gaita, fero e funaná.
Como argumento transversal ao livro, defendo que, no caso do funaná, raça, classe e marginalidade social são experimentadas através de um conjunto de práticas e significados que podem ser associados à performatividade da masculinidade cabo-verdiana santiaguense. Dito de outro modo, o funaná e as práticas de gaita, fero e voz fornecem meios expressivos através dos quais a população masculina com quem trabalhei etnograficamente articula uma identidade de género, de classe social e de raça distintiva nas ilhas e na diáspora. Esta intersecção, cristalizada na categoria de identidade badiu, é experimentada por rapazes e homens cujas trajetórias de vida interligam as localidades do interior de Santiago onde se situam as suas origens familiares, os bairros de autoconstrução da cidade da Praia onde vivem enquanto classe trabalhadora em vários setores precários e informais da economia urbana— quando não aguardam simplesmente meios para migrar—, e as localizações da diáspora da Área Metropolitana de Lisboa onde vivem como migrantes laborais. O funaná opera uma mediação expressiva e simbólica desta fenomenologia. Procuro a este título alargar etnograficamente um argumento avançado por Paul Gilroy ao comentar alguns estilos do hip-hop afro-americano, o de que o género— em concreto a masculinidade— “é a modalidade na qual a raça é vivida.” [7] Ao longo do livro defendo que esta formação de identidade envolve um posicionamento numa história cultural e memória social particulares, uma inscrição em tropos, narrativas e categorias culturais associados à performance, às figuras masculinas de tocadores e públicos (como aquela de “ser bandido” que desenvolverei no terceiro capítulo), assim como, de um modo alargado, atos corporais e comportamentos expressivos, nomeadamente o uso da voz na performance. Uma vez que se trata de uma intersecção de género, raça e classe social, esta performatividade não reitera apenas convenções dominantes disponíveis no repertório da masculinidade como experimentada entre cabo-verdianos, mas produz uma masculinidade que contrasta com outros modelos de identidade masculina crioula, imaginados como mais hibridizados e mais próximos de se ser branco.[8]
Que lugar a música e dança ocuparam na demarcação das fronteiras da diferença da sociedade colonial cabo-verdiana? Qual a relação dessas fronteiras com regimes coloniais de trabalho e com o processo de racialização da mão de obra camponesa da ilha de Santiago? Como foram essas fronteiras política e socialmente interrogadas e negociadas na pós-colonialidade do país? De que modos participa o funaná no projeto de uma crioulidade oficial defendida pelas elites culturais e políticas do arquipélago? Porque na Área Metropolitana de Lisboa, o território da anterior metrópole, a performance do funaná persiste confinada a localizações marginais— aquelas da presente etnografia—, replicando a sua marginalidade no período colonial? Deve-se esta continuidade à “durabilidade”[9] de estruturas de poder e formas de racialização daqueles que produzem e partilham esta prática cultural? Estas são as principais questões que conduzem o livro e a que conto responder ao longo dos seus diferentes capítulos.
Raça e cultura expressiva
Por raça entendo um conjunto de categorias, conceitos e enunciados cambiantes que projetam para seres humanos algum tipo de característica essencial com base no reconhecimento da diferença física, concretamente de fenótipo.[10] Se a atribuição de características humanas por referência à biologia é nuclear e transversal às construções da raça, a seleção de traços físicos particulares para propósitos de significação racial é sempre necessariamente um processo histórico e social.
A raça é um dos principais conceitos que organizam a classificação da diferença nas sociedades humanas.[11]Enquanto componente central dos regimes de conhecimento criados pela expansão colonial europeia foi historicamente uma noção instrumental para a submissão e exploração de povos não europeus, especialmente africanos e populações que ao longo da modernidade se formaram a partir das suas diásporas. No âmbito da expansão colonial iniciada no século XV constituiu uma “ficção útil” justificando a violência, a subjugação e a transformação da “pessoa humana numa coisa, num objeto ou em mercadoria.”[12] Dada a sua íntima relação com a disponibilização de uma mão de obra de baixo custo que produz os bens que permitem a acumulação do capital, a raça é indissociável da classe social e do trabalho. Os historiadores da raça discutem comumente qual das noções surgiu primeiro originando a outra.[13] O modo como raça e classe se articulam, contudo, deve ser apurado de acordo com a sua especificidade histórica.[14]
Possivelmente originado a partir de uma palavra da língua árabe que designava a ligação biológica e cultural a um líder,[15] o termo raça é frequentemente associado à presença árabe na Península Ibérica e, de um modo global, no mediterrâneo. As nações ibéricas participaram decisivamente na disseminação do termo desde o final da idade média, num primeiro momento contribuindo para a fixação dos seus sentidos aristocráticos, associados a noções de “pureza de sangue,”[16] e posteriormente mobilizando-os em relações de subjugação de Outros negros, mercadorizados e escravizados no âmbito do tráfico negreiro e da constituição de sociedades de plantação no Atlântico e no Brasil, de que Cabo Verde foi uma das experiências inaugurais. Dada a sua participação no comércio triangular e o seu continuado envolvimento com o tráfico de escravos, a expansão colonial portuguesa é crítica para o estabelecimento de uma genealogia da raça, mesmo que os portugueses tenham sido eles próprios racializados por atores de outros impérios coloniais europeus.[17]
Apesar de constituir um facto cultural e histórico e não biológico, e de qualquer tentativa para ancorar o conceito cientificamente se revelar frágil e incoerente, a operação da raça de associar corpos particulares a propriedades e atributos produtores de estigmas de alteridade é geradora da realidade concreta do racismo, um conjunto de manifestações de carácter persistente e multiforme nas suas aparições históricas. Uma das propriedades da raça é a sua “mobilidade polivalente,”[18] o seu caráter “móvel, inconstante e caprichoso”[19] que permite que adquira diferentes formas sob condições históricas específicas, como aquela que assume no contexto da Europa contemporânea, numa época de inversão de movimentos populacionais entre antigos territórios coloniais e metrópoles, “cujo tema dominante não é a hereditariedade biológica, mas a irredutibilidade das diferenças culturais.”[20]
A raça e o racismo são fenómenos incisivos na formação da subjetividade. Como Frantz Fanon formulou no período final do colonialismo europeu, as suas consequências mais estruturais residem no facto do sujeito racializado só poder relacionar-se consigo próprio através da mediação alienante do olhar branco: “não apenas o homem negro precisa de ser negro; precisa de ser negro em relação ao homem branco.” [21] Este criou o homem negro através do seu “olhar, gestos e atitudes” e teceu-o através de “milhares de detalhes, anedotas, histórias.”[22]
A música e dança participaram historicamente de um modo central na formulação da linguagem e de noções da raça. Uma rede de discursos e de narrativas foi, desde o início do encontro colonial, mobilizada para olhar para, e escutar a cultura expressiva de povos não-ocidentais, confirmando propriedades e atributos raciais mais alargados, assinalando as dinâmicas e apropriações culturais do encontro colonial, assim como o desejo e a ambivalência do olhar para o Outro.[23]Se ao serem mobilizadas através do discurso da raça, a música e dança sublinharam essências produtoras da diferença, inversamente, como defenderam Ronald Radano e Phillip V. Bohlman, a raça foi fundamental para formar “ontologias da música,” moldando “conceitos básicos sobre o que a música é.” Enunciados raciais, por exemplo, produziram uma “essência metafísica da ‘música africana’” que a postulou como física, corporal, derivando de “padrões rítmicos observados no Ocidente como ‘complexos,’ e de improvisação extensiva que requer a participação de todo o corpo,”[24]entre outros aspetos. O par silenciado desta aproximação da música africana ao ritmo e ao corpo é a música europeia que, através da disseminação da tonalidade, deu “forma audível” à “civilidade,” impondo a “ordem” e a “disciplina” face ao “ruído.”[25]
A literatura sobre sociedades formadas em redor da plantação acentuou como a cultura expressiva, o som e a auralidade organizaram um quotidiano de violência, constituindo meios críticos para os proprietários de terra exercerem controlo sobre os escravos e para estes recuperarem um sentido de humanidade.[26] A experiência da cultura expressiva surge nestes estudos caracterizada através da ambivalência e da negociação inerentes às sociedades de plantação. Frequentemente temidas e proscritas dado o risco de disseminarem a desordem e desencadearem motins, a música e a dança eram toleradas por proprietários de terra e de escravos, uma vez que não só lhes proporcionavam prazer e entretenimento, como as viam como instrumentos para aumentar a produtividade— as canções de trabalho, por exemplo, coordenavam as tarefas dos campos, e as sociabilidades escravas na sua orla contribuíam para libertar tensões do quotidiano e renovar a força de trabalho. Apesar de oferecerem espaços privilegiados para a afirmação da subjetividade negra, a música e a dança produzidas por escravos, como defendeu Jérôme Camal, não escaparam à economia política do colonialismo, mas participaram do seu regime de extração.[27]
Os temas dominantes dessa reflexão são as circulações, os empréstimos e as apropriações culturais no âmbito de relações pautadas por uma profunda desigualdade. A apropriação criativa e transformação, por escravos, libertos e os seus descendentes, de práticas musicais que circulavam entre as metrópoles europeias e as periferias coloniais e se integravam nas sociabilidades de proprietários de terra e de um modo global de colonos brancos, é aproximada a ideias de “hibridez,” “tradução,” “subversão,” “destabilização,” “paródia” e “mimetismo.”[28] Estes reposicionamentos e transformações criativas participaram de um jogo duplo de subjugação e de insurgência que caracterizou as estratégias de sobrevivência de populações negras em sociedades de plantocracia e que Jérôme Camal, baseando-se na obra de Édouard Glissant, caracterizou a partir dos conceitos de “opacidade” e de “desvio.”[29]
Uma linha de argumento que corre em paralelo a estas apropriações diz respeito ao modo como a cultura expressiva participou na demarcação e negociação de fronteiras entre os diferentes grupos sociais. Enquanto domínios do corpo e da expressividade, a música e a dança eram meios significativos para performatizar as condutas adequadas a essas demarcações da diferença; não só operavam a ligação e naturalização entre condutas apropriadas e identidades estatutárias, como forneciam meios poderosos para expor a sua arbitrariedade e as suas desigualdades. No contexto cabo-verdiano, diferentes práticas expressivas forneceram critérios de avaliação de “graus de civilização,” suportando, desse modo, as distinções culturais subjacentes à produção das fronteiras da raça e da classe. A música e a dança constituíram, desse modo, importantes terrenos de disputa, de definição e de negociação das identidades culturais e políticas dos sujeitos envolvidos na produção da realidade colonial cabo-verdiana.
Uso a noção de raça como uma das principais chaves analíticas para compreender os significados históricos do funaná de modo a denotar duas “formações raciais” que, entre os momentos colonial e pós-colonial, incidiram sobre as práticas expressivas, ou seja, dois processos socio-históricos distintos “através dos quais as categorias raciais são criadas, habitadas, transformadas e destruídas.”[30] O primeiro radica na fundação da sociedade cabo-verdiana através da escravatura e da crioulização. Abarca o modo como as práticas e sociabilidades da música e da dança foram historicamente mobilizadas na produção quotidiana das fronteiras da diferença entre os diferentes grupos sociais no arquipélago; e compreende igualmente as políticas metropolitanas ou medidas emanando da administração local e de autoridades religiosas que incidiram sobre a cultura expressiva enquanto domínio do corpo e da subjetividade de modo a regular os ritmos de trabalho e de lazer e assegurar a ordem social.
A matriz organizadora desta formação racial é um contínuo racializado crioulo, uma escala de valor com múltiplas gradações e notações entre as figuras de “África” e “Europa” através da qual se apuraram os estatutos sociais dos sujeitos e se produziram historicamente diferentes formações de identidade crioula cabo-verdiana ou de “crioulidade” que chegam à pós-colonialidade. No quadro deste sistema de representação, os significantes “África” ou “Europa” não devem ser tomados literalmente, mas traduzem invariavelmente o modo como estas entidades são imaginadas e manuseadas no quadro de uma história, de uma experiência cultural e de um sistema estatutário nas ilhas.
A segunda formação pode ser localizada em Portugal entre o final da década de 60 do século XX e o presente, quando trabalhadores cabo-verdianos e de outros territórios africanos se fixaram no país enquanto migrantes laborais, constituindo uma “reserva” de mão de obra que participou decisivamente no crescimento económico e, de um modo global, nas transformações sociais e culturais que ocorreram na sociedade portuguesa. Apesar de o seu início se situar nos últimos anos do colonialismo português, esta formação sedimenta-se ao longo de uma temporalidade pós-colonial e aponta para as diversas formas de marginalização social que emolduram a vida de migrantes laborais africanos no país, constituindo os índices mais visíveis do seu processo de racialização: a sua habitação em localizações segregadas e frequentemente compostas por alojamento precário; a circunscrição das suas sociabilidades e circulações a esses espaços; o seu afastamento das instituições sociais e formas de participação política alargadas como um prolongamento desta marginalização social e espacial; a sua obrigatoriedade de aceder a trabalho socialmente desqualificado e sub-remunerado; a elevada probabilidade de reprodução dessas posições estruturais entre os seus descendentes, entre outros aspetos que debaterei no último capítulo. O funaná toma forma a partir dessas localizações marginais na sociedade portuguesa, agregando práticas criativas, significados e valores que tornam possível habitar esses espaços e viver de acordo com essas condições estruturais. Nesses contextos, o funaná compreende “regimes de valor que não são redutíveis a mercados formais ou ao Estado,”[31] devendo antes ser enquadrados de acordo com sentimentos diaspóricos e formas de participação num universo cultural, moral e político transnacional comum.
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[1] Bernard S. Cohn e Nicholas B. Dirks, “Beyond the fringe: the nation state, colonialism, and the technologies of power,” Journal of Historical Sociology, 1, 2 (1988), 29.
[2] Deborah Thomas, Modern Blackness: Nationalism, Globalization and the Politics of Culture in Jamaica (Durham, Duke University Press, 2004), 4.
[3] Achille Mbembe, Crítica da Razão Negra (Lisboa, Antígona, 2014), 28.
[4] David Scott, Refashioning Futures: Criticism after Postcoloniality (Princeton, Princeton University Press, 1999), 11.
[5] Thomas, Modern Blackness…, 4.
[6] Utilizo os termos “cultura expressiva” ou “práticas expressivas” para designar um conjunto de expressões culturais interligando o som, a palavra na sua relação com a voz, e o movimento corporal que participam da experiência social dos cabo-verdianos. O termos “cultura expressiva,” “práticas expressivas” ou “comportamento expressivo” emergiram na teoria antropológica como modos de interrogar a aplicação universal de noções rígidas e segmentadas como “música,” “dança,” “pintura,” “escultura,” “poesia,” “teatro,” que se considerou assentarem em formas de conceptualização e de prática primordialmente ocidentais, embora detenham uma história de disseminação e de uso em outras regiões do globo. De um modo genérico, sigo David Hicks e Margaret Gwynne na sua definição da cultura expressiva enquanto a multiplicidade de modos através dos quais diferentes populações e grupos sociais manuseiam diferentes recursos— a forma, a cor, o som, a língua, a fala, o movimento corporal— na produção de expressões investidas de valor estético e de significado cultural socialmente partilhados. Ver David Hicks e Margaret A. Gwynne, Cultural Anthropology (Nova Iorque, Harper College Publishers, 1994). Entre cabo-verdianos, termos como “música” (muzika) e “dança” (dança, balho, balha) coexistem com categorias específicas de prática cultural como as de batuko ou tabanka que apontam para a conjunção de várias dimensões de prática expressiva e reclamam definições aproximadas à sua experiência cultural.
[7] Paul Gilroy, The Black Atlantic: Modernity and Double Consciousness (Cambridge, Harvard University Press, 1993), 86. Na mesma linha, literatura sobre a masculinidade tem assinalado a necessidade de endereçar a “sobreposição entre o género e identidades étnico-raciais” em contextos particulares, uma direção explorada por análises interseccionais do género e de outras fontes de estratificação. Ver Matthew Gutmann, “Discarding manly dichotomies in Latin America,” em Changing Men and Masculinities (Durham, Duke University Press, 2003); e Mara Viveros Vigoya, “Contemporary Latin American Perspectives on Masculinity,” em Changing Men and Masculinities (Durham, Duke University Press, 2003), ed. Matthew Gutmann (Durham, Duke University Press, 2003). Sobre a interseccionalidade na história da antropologia ver Ellen Lewin, “Introduction,” em Feminist Anthropology: a Reader (Oxford: Blackwell Publishing, 2006). Ao longo do livro opto pela tradução para a língua portuguesa de todos os trechos de texto originalmente escritos ou ditos em outras línguas. Os termos em crioulo são colocados em itálico, mesmo quando se aproximam dos termos em português. Quando ambos coincidem, assinalo a sua primeira aparição no texto em itálico, e prossigo a sua utilização sem itálico e sem aspas, como é o caso de “tocador” ou de “tocatina,” dois termos coincidentes nas duas línguas.
[8] Sigo a proposta de Judith Butler de conceptualizar o género como “uma estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos dentro de uma moldura reguladora altamente rígida que congela ao longo do tempo para produzir a aparência da substância, de um tipo natural de ser.” Judith Butler, Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity (Londres e Nova Iorque: Routledge, 2007 [1990]), 45.
[9] Ann Laura Stoler, Duress: Imperial Durabilities in our Times (Durham, Duke University Press, 2016).
[10] Nesta discussão baseio-me sobretudo nas definições de Michael Omi e Howard Winant, Racial Formation in the United States: From the 1960s to the 1990s (Nova Iorque e Londres, Routledge, 1994); e de Peter Wade, Music, Race, and Nation: Música Tropical in Colombia (Chicago, Chicago University Press, 2000). O alargamento das abordagens da raça nas últimas décadas, sobretudo como um resultado concertado de novos paradigmas teóricos, de um interesse nas genealogias da raça e nos seus trajetos em histórias coloniais, mas igualmente da constatação da sua reincidência ou persistência nas sociedades contemporâneas, gerou uma diversidade de orientações empíricas e teóricas. Ver por exemplo Les Back e John Solomos, Theories of Race and Racism: A Reader (Londres, Routledge, 2000).
[11] Stuart Hall, The Fateful Triangle: Race, Ethnicity and Nation (Cambridge, Harvard University Press, 2017), 32-33.
[12] Achille Mbembe, Crítica da Razão Negra (Lisboa, Antígona, 2014), 26-27.
[13] Ver a este respeito o contraste entre as genealogias da raça defendidas por Michel Foucault e por Benedict Anderson em Ann Laura Stoler, Race and the Education of Desire (Durham, Duke University Press, 1995).
[14] Stuart Hall, “Race, articulation and societies structured in dominance.” Em Sociological Theories: Race and Colonialism (Paris, UNESCO, 1980).
[15] Ronald Radano e Phillip V. Bohlman, “Introduction: music and race, their past, their presence.” Em Music and the Racial Imagination (Chicago, The University of Chicago Press, 2000).
[16] A raça integrar-se-ia numa narrativa mítica através da qual a aristocracia se representava hereditariamente como uma “raça” superior de modo a assegurar a legitimidade dos seus privilégios políticos. Ver C. R. Boxer, O Império Marítimo Português, 1415-1825 (Lisboa, Edições 70, 2011); Étienne Balibar, “Racisme de Classe’” Em Étienne Balibar e Immanuel Wallerstein, Race, Nation, Classe: les Identités Ambiguës (Paris, La Découverte, 1988); e Ann Laura Stoler, Race and the Education of Desire (Durham, Duke University Press, 1995).
[17] Boaventura Sousa Santos, “Between Prospero and Caliban: colonialism, postcolonialism, and inter-identity,” Luso-Brazilian Review, 39, 2, (2002), 9-43.
[18] Ann Laura Stoler, Race and the Education of Desire (Durham, Duke University Press, 1995).
[19] Achille Mbembe, Crítica da Razão Negra (Lisboa, Antígona, 2014), 27.
[20] Étienne Balibar, “Y a-t-il un ‘neoracisme ?’” Em Étienne Balibar e Immanuel Wallerstein, Race, Nation, Classe : les Identités Ambiguës (Paris, La Découverte, 1988), 33.
[21] Frantz Fanon, Black Skin, White Masks (Nova Iorque, Grove Press, 2008/ 1952), 90.
[22] Fanon, Black Skin…, 91.
[23] Ver relativamente ao Reino do Congo e a Angola, Linda M. Heywood e John K. Thornton, Central Africans, Atlantic Creoles, and the Foundation of the Americas, 1585-1660 (Cambridge, Cambridge University Press, 2017); e às Caraíbas, Doris Garaway, The Libertine Colony : Creolization in the Early French Caribbean (Durham, Duke University Press, 2005).
[24] Radano e Bohlman, “Introduction…,” 6
[25] Ronald Radano e Tejumola Olaniyan, “Introduction: hearing empire— imperial listening.” Em Audible Empire: Music, Global Politics, Critique(Durham, Duke University Press, 2016), 8.
[26] Jérôme Camal, Creolized Aurality: Guadeloupean Gwoka and Postcolonial Politics (Chicago, The University of Chicago Press, 2019).
[27] Camal, Creolized…
[28] Esta linha de interpretação desenvolveu-se sobretudo a partir de Homi K. Bhabha, The Location of Culture (Londres, Routledge, 1994); e Kobena Mercer, “Diaspora culture and the dialogical imagination,” em Welcome to the Jungle: New Positions in Black Cultural Studies (Londres, Routledge, 1994).
[29] “Opacidade” e “desvio” são modos de resistência com raízes na plantação definidos por Édouard Glissant no quadro da sua “poética da relação.” A “opacidade” denota a ocultação ou a criação de um tipo de visibilidade que não é passível de ser decifrado pelo poder colonial, compreendendo uma “exigência ética pelo direito de não ser entendido” (Britton 1999, em Camal 2019); e “desvio” dá conta do contornamento de obstáculos em vez de um confronto com eles, que explora os interstícios ou brechas da plantação de modo a manipular criativamente o sistema a partir de dentro. Ver Édouard Glissant, Poética da Relação (Lisboa, Sextante Editora, 2011).
[30] O conceito de “formação racial” é de Michael Omi e Howard Winant, Racial Formation in the United States: from the 1960s to the 1990s (Nova Iorque e Londres, Routledge, 1994), 55. Considerada no plano discursivo, a formação racial seria um processo englobando “projetos historicamente situados no qual os corpos humanos e as estruturas sociais são representados e organizados.” Atendendo ao domínio da estruturação social, estaria associada “à evolução da hegemonia e à maneira como a sociedade é organizada e governada” (Ibid., 55-56).
[31] Gavin Steingo, Kwaito’s Promise: Music and the Aesthetics of Freedom in South Africa (Chicago, The University of Chicago Press, 2016), 127.
Funaná, raça, masculinidade
Autor: Rui Cidra I Edição: Outro Modo, Le Monde diplomatique – edição portuguesa 2021 | Preço: 14€ (10% de desconto para assinantes)