José Gil nos 50 anos do 25 de Abril
1. Começo por apresentar, de modo esquemático, a obra de José Gil no contexto da filosofia portuguesa pós-25 de Abril. Ela organiza-se em três grandes linhas:
1) uma linha estética, ou ontológico-estética, onde se destaca uma densa e singular investigação sobre o corpo, ou o que José Gil chama o “inconsciente do corpo”, e que se desdobra principalmente nos domínios da dança contemporânea, com Movimento Total: o Corpo e a Dança (2001), e da arte contemporânea (Malevitch, Duchamp, Beuys), onde se desenvolve um pensamento sobre A arte como linguagem (o título de um dos seus livros, que resulta da sua última “aula”, em 2010).
2) uma linha literária (os clássicos gregos, Shakespeare, Artaud, Pessoa), com várias obras dedicadas exclusivamente a Fernando Pessoa, ao seu “sensacionismo abstracto”, ou Metafísica das Sensações (que é o título dado ao seu livro inicial sobre Pessoa), e cuja análise desdobra uma leitura sistemática da sua produção heteronímica, desde o Fausto de Pessoa (sim, existe um Fausto de origem portuguesa, que não vende a alma, mas perde-a tragicamente no pensamento) até Alberto Caeiro, o mestre dos heterónimos, para quem, como diz Ricardo Reis (Odes de Ricardo Reis, p.167), “A Natureza é só uma superfície”, ou seja, que enquadra o “sensacionismo abstracto” na produção heteronímica (e que é uma extraordinária aventura, uma espécie de epopeia, que vai desde o “abismo” de Fausto, do “heterónimo falhado”, que não “devém- outro”, à “superfície” de Caeiro, ao “guardador de rebanhos”, o “mestre” dos heterónimos).
3) uma linha propriamente filosófica, que aparece muito recentemente, em 2018, com Caos e Ritmo, e que extrai o essencial das linhas anteriores, a estética e a literária, que é o problema geral da criação na sua relação intrínseca com o caos, não só do que é o caos (e que não é um abismo indiferenciado, supondo diferenciações internas, uma espécie de nervura própria), mas principalmente de como se cria a partir dele, na sua imanência, onde o “ritmo” aparece como conversão das forças do caos em forças de criação (sendo nos termos desta passagem que se expressa a diferença, que se fabrica, no pensamento e na vida, o singular).
2. É importante realçar que estas três linhas encontram ressonâncias profundíssimas, ecos transversais, no interior da obra filosófica de Gilles Deleuze. Ou melhor, é possível ler a obra de José Gil em conjunto com a de Deleuze, por ela contextualizar e responder a questões deixadas em aberto na sua filosofia, em particular sobre o corpo. Especificamente, o que, para Gil, precisaria de ser trabalhado, esclarecido, na filosofia de Deleuze, é a relação do “corpo vivido”, ou do “corpo empírico”, “orgânico”, com o “corpo intensivo”, o que Antonin Artaud nomeou em 1947, pouco antes da sua morte, “sem órgãos”, e do qual Deleuze e Guattari fazem um “conceito”. Como diz José Gil em Trajectos Filosóficos (que aparece imediatamente a seguir a Caos e Ritmo, em 2019): “É dificilmente aceitável que Deleuze, com a sua extraordinária descoberta do corpo sem órgãos, não tenha desenvolvido um pensamento consciente do corpo orgânico” (p.168).
Em todo caso, se a obra de José Gil, evidentemente, não se reduz a um estatuto complementar em relação à de Deleuze, é por desdobrar uma filosofia singular, que se afirma por direito próprio.
Aliás, se utilizarmos a terminologia que José Gil emprega num dos seus títulos, talvez a obra onde mais claramente define a sua posição no campo da estética (A Imagem-Nua: Estética e Metafenomenologia), podemos dizer que a sua obra inaugura uma área de investigação nova em filosofia, o campo, justamente, da metafenomenologia. Pensar em termos metafenomenológicos é traçar uma linha que acompanha a fenomenologia até ao seu limite (em especial, com Merleau-Ponty, o seu pensamento sobre o corpo, tal como aparece em Fenomenologia da Percepção e o inacabado projecto de O Visível e o Invisível), para, a partir deste limite, esta linha se abrir para a direcção da filosofia da diferença (tal como desenvolvida por Deleuze, ou seja, nos termos de uma teoria da imanência, e de uma ideia positiva do corpo sem órgãos, ao contrário de Jacques Derrida, onde esta ideia aparece negativamente (em “La parole soufflée”, L’écriture et la différance, 1967), e a diferença concebida como “desconstrução”, e não como construção a partir do “em si” da diferença, isto é, do caos).
3. Como sair do caos? Fazer algo começar, nascer, deste abismo, além do “corpo vivido”, ou do “vivido fenomenológico”?
Parece-me ser este o principal problema de José Gil, e que aparece tratado de modo sistemático em Caos e Ritmo (2018). Ele apostará, já o dissemos, no “ritmo” (entendido como uma espécie de “instância abstracta”). Porquê? Antes de mais, nas suas palavras, porque “só o ritmo reúne o poder de um tradutor universal do abstracto e a capacidade de apanhar as mínimas nuances singulares do concreto. O ritmo pulsa o tempo e traduz qualquer textura (sensível ou inteligível) em temporalidade e, inversamente, qualquer ordem temporal em matéria sensível” (Trajectos, p.80-1). Mas, mais profundamente, porque existe, no ritmo, o que Deleuze definiu (no seu livro sobre o pintor Francis Bacon, Lógica da Sensação, cap.6) como uma “unidade rítmica dos sentidos”, ela mesmo além do organismo. Esta unidade, diz Deleuze, só pode ser descoberta “ultrapassando o organismo”, extrapolando a fenomenologia precisamente por ela se limitar ao corpo empírico.
E a que se refere esta “unidade”? Para José Gil, ela supõe a concepção de um “inconsciente do corpo”, que continua o corpo empírico, pondo-o em devir. Nas suas palavras:
“O vivido fenomenológico do empírico prolonga-se sempre num inconsciente microscópico, móvel, informe e efervescente. É esta linha de fuga que se deve buscar e soltar. Apreende-se o inconsciente do corpo, que continua o corpo empírico. Este está sempre para além de si próprio… É propriamente um corpo ‘empírico-transcendental’ (para empregar a terminologia deleuziana), em que o transcendental trabalha o empírico para o desestratificar e fazer devir… O devir está lá, latente, enterrado, aprisionado. Basta libertá-lo para fazer do corpo simplesmente empírico um corpo-em-devir” (Trajectos Filosóficos, p.172).
A obra de José Gil orienta-se no seu todo na direcção desta “libertação”. Se ela tem como “objecto” principal o “inconsciente do corpo”, é por este inconsciente se referir ao caos, ou seja, à maneira em que o corpo empírico é desestruturado, enquanto sujeito a todo o tipo de “movimentos aberrantes” (David Lapoujade utiliza esta expressão no título do seu livro sobre Deleuze) que produzem quebras sensório-motoras, e que chegam mesmo a comprometer uma espécie de “sensibilidade primária que somos” (a expressão é de Deleuze, em Différance et répétition, p.99) resultante das múltiplas sínteses passivas constitutivas do organismo (e que se referem a um “sentimento de si” mais profundo do que uma “consciência de si”). Mas também, por este inconsciente incluir a génese do ritmo, a construção da tal “unidade rítmica dos sentidos”. É esta unidade que está na origem dos devires, do “corpo-em-devir”.
Caos, ritmo, devir, ou a continuidade “inconsciente”, “metafenomenológica”, do corpo empírico.
4. Regressando a Portugal, não seria preciso muito para se sentir a raio de vitalidade que uma obra destas introduz no panorama do pensamento português, especialmente no meio das artes, sendo ali acolhida praticamente de imediato, ao contrário do da filosofia, onde parece inclusive estar hoje (talvez exagere) já esquecida…
Do ponto de vista filosófico, a obra de José Gil funciona como uma espécie de janela que se abre, em Portugal, para o que de talvez mais vital aconteceu no pensamento filosófico europeu contemporâneo, e que, a meu ver, é o ímpeto de abri-lo para além do marxismo (especialmente, o dialéctico, de raiz hegeliana), da psicanálise (de um “freudismo”), da fenomenologia (em particular a “hermenêutica” de Martin Heidegger, e de como estrangula a ontologia da diferença, limitando-a à diferença entre “ser e ente”), sem falar do estruturalismo ou até, mais tarde (veio a confirmar-se), da desconstrução (e não é isso o Maio de 68? Filosoficamente falando?). Em Portugal, este “além”, este “Maio”, aparece, com José Gil, na forma de uma metafenomenologia, de um pensamento filosófico singular sobre o corpo. Aparece como uma janela às promessas mais radicais do Maio de 68, ou seja, ao que nesta Revolução “não aconteceu” (a frase é de Deleuze e Guattari), ou que talvez só hoje, nas primeiras décadas do século XXI, comece realmente a acontecer…
5. Mas será uma coincidência - ocorre-me perguntar - que surja este projecto filosófico em Portugal, o de uma metafenomenologia? Que se dedique tanta atenção ao corpo, de como “pô- lo em devir”, num país como Portugal, que se submeteu a 48 anos de salazarismo, à brutal repressão dos corpos, do seu desejo, da sua vitalidade, que este regime implementou? Especialmente no que se refere aos corpos das mulheres? E, também, dos homossexuais?
É evidente que o projecto metafenomenológico de José Gil vai muito além de Portugal, ocupando um lugar próprio, e por direito próprio, no panorama do pensamento filosófico europeu contemporâneo em geral, especialmente na área da estética. Mas não deixa de ser menos evidente que a metafenomenologia se prolonga, na sua obra, num pensamento político, eu diria micropolítico, ou político-clínico, sobre Portugal.
Por micropolítico quero dizer a investigação de diferentes modos de produção da subjectividade, modos estes pensados e avaliados a partir de um uso político do material clínico da psiquiatria e da psicanálise, para além também da filosofia (entendida a partir da metafenomenologia e de uma filosofia da diferença). Trata-se, portanto, de um pensamento político-clínico que entra na textura do quotidiano, nos “microfascismos” do dia-a-dia, para determinar como o desejo opera micropoliticamente, inclusive (ou especialmente) quando se vira contra si próprio, e deseja a própria repressão social (a sujeição de si mesmo e dos outros, a “servidão voluntária”) - o que nos introduz, em termos gerais, ao vasto campo de investigação do que Judith Butler, por exemplo, definiu nos termos da “vida psíquica do poder” (The Psychic Life of Power, 1997).
O ponto alto desta análise micropolítica aparece em 2004, num livro cujo título diz tudo, Portugal, Hoje: O Medo de Existir (2004). Trata-se de um livro que deu a José Gil a visibilidade do grande público em Portugal, até por ter sido (sem surpresa) violentamente criticado, acabando mesmo por ser relativizado (e ouvi isto de outros filósofos, na época) como uma espécie de “desabafo”.
Em todo caso, é evidente que o livro de José Gil é muito mais do que um desabafo. Aliás, se o relacionarmos a outro livro que escreveu sobre Portugal, desta vez sobre Salazar e a análise da sua “retórica”, em Salazar: A Retórica da Invisibilidade (e que aparece anos antes, em 1995), percebe-se a continuidade entre um texto e o outro, ou seja, a consistência do pensamento micropolítico de José Gil sobre Portugal. Vale a pena analisar esta continuidade, até por ser nos seus termos que chegamos ao pensamento de José Gil sobre o Portugal democrático, de Abril.
6. O ponto essencial é este: para José Gil, e isto micropoliticamente, o Portugal de Abril se mantém tal como Salazar o desejou, um “país da não-inscrição”.
No que se refere à continuidade deste trauma, tudo começa logo no 25 de Abril, com a não- inscrição do antigo regime, do seu “passado negro”, no actual regime democrático. Nas palavras de José Gil:
“O 25 de Abril recusou-se a inscrever no real os 48 anos de autoritarismo salazarista. Não houve julgamentos de Pides, nem de responsáveis do antigo regime. Pelo contrário, um imenso perdão recobriu com um véu a realidade repressiva, castradora, humilhante de onde provínhamos. Como se a exaltação afirmativa da ‘Revolução’ pudesse varrer, de uma penada, esse passado negro. Assim se obliterou das consciências e da vida a guerra colonial, as vexações, os crimes, a cultura do medo e da pequenez medíocre que o salazarismo engendrou. Mas não se constrói um ‘branco’ (psíquico ou histórico), não se elimina o real e as forças que o produzem, sem que reapareçam aqui e ali, os mesmos ou outros estigmas que testemunham o que se quis apagar e que insiste em permanecer.
Quando o luto não vem para inscrever no real a perda de um laço afectivo (de uma força), o morto e a morte virão assombrar os vivos sem descanso” (O Medo de Existir, p.16).
É esta repetição do principal trauma do salazarismo no regime democrático, o prolongamento da não-inscrição, que é analisada micropoliticamente por José Gil. Primeiro, voltando atrás, focando em como o fenómeno da não-inscrição é instituído por Salazar, através de uma brilhante análise da “retórica sem retórica” do regime do Estado Novo, no rápido mas denso ensaio Salazar: A Retórica da Invisibilidade. E, depois, em O Medo de Existir, onde José Gil considera como este trauma se repete, se prolonga, no Portugal democrático através de outra análise micropolítica, desta vez de como os portugueses são levados a desejar a sua própria não-inscrição, a fechar-se no “pequeno infinito” da sua banalidade quotidiana, repleto de “queixume”, de “ressentimento”, de “invejas”, onde o principal afecto é o “medo”, o medo de trair o “pequeno” (de sair dele), e isto por ser nele, no “pequeno”, que os portugueses encontram, tal como queria Salazar , o “infinito” que lhes é particular, o seu, e que é o da sua própria “grandeza” enquanto “nação”, do “esplendor” do “destino mítico de Portugal” (e que se reflecte, por exemplo, no dizer popular, “Mostra-te pequeno e serás grande”, ou na circularidade infantil, instantânea, com que os portugueses passam da impotência para a omnipotência, e vice-versa, do “Somos uma merda” para “Somos os maiores”). A análise de Salazar: A Retórica da Invisibilidade é desdobrada, portanto, em Portugal, Hoje: O Medo de Existir: a linha de continuidade é a do trauma do salazarismo na contemporaneidade democrática, de Abril, analisada micropoliticamente. Nas palavras de José Gil:
“O Portugal de hoje prolonga o antigo regime. A não-inscrição não data de agora, é um velho hábito que vem sobretudo da recusa imposta ao indivíduo de se inscrever. Porque inscrever implica acção, afirmação, decisão com as quais o indivíduo conquista autonomia e sentido para a sua existência. Foi o salazarismo que nos ensinou a irresponsabilidade - reduzindo-nos a crianças, crianças grandes, adultos infantilizados.
O 25 de Abril abriu um processo complexo de luta contra a não-inscrição, pelo menos num plano restrito, com os governos provisórios a tomarem medida ‘definitivas’, a criarem ‘factos’ (leis, instituições) irreversíveis’ antes de caírem, na ânsia desesperada de deixarem obra feita, indestrutível, com a qual contribuíram para a construção da nova sociedade. Simplesmente, o substrato da não-inscrição continuava vivo, e toda essa actividade frenética e delirante para inscrever a Revolução - escrevendo a História - não faziam mais do que alimentar a impossibilidade de inscrever [pela construção do ‘branco’ em relação ao regime anterior], essa sim, inscrita no mais profundo (ou à superfície inteira) dos inconscientes dos portugueses” (O Medo de Existir, p.17-8).
A este respeito, seria o caso de questionar se este trauma foi superado com os milhões de estrangeiros que, desde a Troika, e de O Medo de Existir, visitaram e visitam Portugal, com as centenas de milhares de residentes, em particular os “Vistos Gold”, ou “Gold”, simplesmente - chamemos-lhe assim - que trazem capital de pelo menos meio milhão de euros, e com a nova vaga de emigração portuguesa, desta vez qualificada e cosmopolita. Certamente, parece existir um consenso - falo, claro, principalmente dos portugueses, da sua imagem de si mesmos - que Portugal mudou, que, se já era exagerado, em 2004, atribuir o trauma da não-inscrição aos portugueses, mais exagerado será atribui-lo a eles hoje, no Portugal cosmopolita dos “tuk- tuks”. Mas será realmente assim?
Consideremos, por exemplo, o que diz Philippe Starck sobre Portugal numa entrevista ao Público (26 de Novembro, 2023), ele que é um renomado designer de interiores, um dos estrangeiros “Gold” (ou talvez “Platinum”) que nos últimos anos escolheu Portugal para viver. Ele diz que “Portugal é o último país com valores humanos”, ao contrário da França (ele é francês), que os perdeu, segundo ele, “há um, quase dois séculos” (dada a precisão deste “quase”, estará a referir-se à “Restauração Francesa”? Ou talvez ao reino de Louis-Philippe?). Mas o que daria, para Starck, esta “humanidade profunda” aos portugueses? Como ele não responde com nada de muito concreto, podemos especular: Não será precisamente o trauma instaurado pelo salazarismo no inconsciente dos portugueses? O seu “pequeno infinito”, a sua paixão pela não-inscrição, a sua fusão praticamente absoluta com a banalidade do quotidiano, com o “televiver” como simulacro de um espaço público? Não é este trauma, especificamente português, salazarista, que Starck confunde como uma “humanidade profunda”?
Pelo menos isto parece-me certo, desta vez do ponto de vista dos portugueses: que é o facto de eles rejubilarem ao verem o seu “pequeno” retratado por um tão prestigiado “Platinum”, como se olhassem infantilmente ao espelho, gozando masturbatoriamente (“inter- individualmente”) ao descobrirem a sua vidinha, a sua invisibilidade, a sua não-inscrição, retratada de modo tão “infinito”, como “profundamente humana”, e isto ao ponto de já nem se importarem da sua sociedade ser comparada à da França do século XIX. O que interessa é o “pequeno infinito”, a imagem “grande” que Starck, o estrangeiro “Platinum”, lhes mostra, ou que dá aos portugueses para se reflectirem a si mesmos, na sua “pequenez”. Quem diria? Afinal o “pequeno infinito” tem realmente a grandiosidade que Salazar atribuía aos portugueses. Sem sabê-lo conscientemente, Starck encarna o espectro de Salazar, reinscreve o “pequeno infinito”, o trauma da não-inscrição, sendo provavelmente por isso que os portugueses rejubilam ao se verem reflectidos no espelho que ele lhes mostra (do ponto de vista psicanalítico, seria como se o “estádio do espelho”, identificado por Jacques Lacan, onde a criança se identifica com uma imagem de si mesma, se prolongasse, no caso dos portugueses, indefinidamente).
Em suma, talvez seja necessária outra análise micropolítica de como o trauma da não- inscrição persiste, desta vez, no Portugal que está “nas bocas do mundo”, com os seus “tuk-tuks”, a sua “geração mais qualificada de sempre”, emigrada nos “grandes centros de decisão mundiais”, financeiros, empresariais, políticos, científicos e artísticos.
7. Por fim, o último livro de José Gil, Morte e Democracia, publicado ainda há uns poucos meses, no final de 2023. A meu ver, este livro aparece de imediato como uma extraordinária contribuição à filosofia política e ao pensamento político contemporâneo. Porquê? Ora, porque inverte a maneira clássica de se pensar a política. Isto é, se o pensamento político clássico alicerça-se na vida e nos vivos, este livro inverte esta direcção, procurando uma concepção da política e do “político” (do seu conceito) a partir de um pensamento sobre a morte, e na relação com os mortos.
Morte e Democracia apresenta-se, portanto, com uma espécie de introdução geral à “espectrologia política” (que comunica com a de Jacques Derrida, em Spectres de Marx, de 1993, mas que se estende bem para lá do “espectro do comunismo”, em contraposição ao da “metafísica”, ou seja, da espectrologia como “assombrologia”, a que viria assombrar o anúncio metafísico do “fim da história”, procurando neste “fim” linhas de fuga, de “por vir”). José Gil aposta numa abordagem mais genética, de como o espectro está na origem do político, ou seja, de como se dá a génese do próprio político (da “relação política”) a partir de um pensamento sobre a morte e os mortos. Nas suas palavras: “Interrogando o mundo dos vivos a partir da morte e dos mortos, revela-se a enorme fantasmagoria de que as construções humanas são feitas. Descobre-se a sua génese e a sua finalidade espectrais e a realidade vira-se do avesso: as ideias de ‘mundo’, ‘sociedade’, ‘vida’, ‘direito’, ‘verdade’ ou ‘liberdade’ passam por uma crítica que as transforma ou anula” (Morte e Democracia, p.17-8).
Resumo o que me parecem ser as linhas principais do livro:
7.1) Começa-se com a relação entre o pensamento e a morte, onde se afirma o que é evidente, por um lado, que a morte é nada, a “morte-nada” (uma “disjunção assimétrica”), e portanto, impensável (ou “simbolizável”, como diz Freud), mas também, que é precisamente esta impossibilidade de pensar em geral que é internalizada no pensamento, a “disjunção assimétrica” aparecendo no pensamento como “diferença” (no seu “em si”, enquanto caos).
Depois desta internalização da impossibilidade de pensar a morte, ou de uma passividade radical interna ao pensamento, passa-se
7.2) a um pensamento sobre o morto, de como se faz do morto um espectro (o problema da génese do espectro a partir do morto e do seu cadáver), o que envolve a investigação de diferentes ritos fúnebres, que incluem uma bela análise à função da múmia no Egipto, ou a leitura do Livro dos Mortos tibetano. É já nos termos desta génese do espectro que
7.3) se introduz outra génese, que lhe é interior, e que José Gil define como a “génese da relação política”. Ou seja, a génese do político, para José Gil, remete à espectralização do morto, que, por sua, vez supõe uma internalização da morte no pensamento (e que é violenta, traumática até, precisamente pela morte ser “nada”, impensável).
A morte, o espectro, e o político: parece-me ser esta a tríade essencial que sustém Morte e Democracia. É a partir dela
7.4) que se procede à análise política propriamente dita, por ela se definir pelas diferentes maneiras em que se dá, ou que se repete, a génese da relação política a partir do trabalho espectral com o morto, interno a um pensamento sobre a morte. O que se diferencia, portanto, é o pensamento que vai da morte ao político, passando pelo espectro, o que resulta em diferentes maneiras de fabricar a génese da relação política, e, por isso mesmo, também, em diferentes concepções do político. E são
7.5) três grandes constituições do político que aparecem em Morte e Democracia (nenhuma delas coincidindo com a concepção, já clássica, de Carl Schmitt, também analisada por José Gil). A primeira
7.5.1) é a que trabalha o espectro no sentido de garantir a imortalidade da alma, trabalho este, segundo José Gil, que está na génese de um pensamento sobre a justiça (desenvolvido a partir de análises ao Górgias e ao Fédon de Platão, lidos como uma espécie de “tribunal das almas”), e da própria transcendência do Estado em relação à sociedade (e da “monumentalidade” associada a esta transcendência, em que o espectro se torna monumento). A segunda constituição
7.5.2) é bem mais contemporânea, e remete-nos ao totalitarismo (em particular, ao Nazismo). Aqui trabalha-se o espectro de maneira a atribuí-lo ao Líder (o Führer), formando o que José Gil chama “Homem-Espectro”. Tendo o campo de concentração como modelo do exercício do poder deste “Homem”, o que se supõe, parece-me, é o seguinte: é pelo “Homem” ter o poder de fabricar “mortos-vivos”, ou seja, espectros, desta vez “em vida” e não “na morte” (e que é um poder que remonta, na sua natureza, ao escravagismo, mas que encontra o seu “modelo” em Auschwitz-Birkenau, inclusive pela irrelevância prática do factor trabalho), que pode invocar um qualquer passado glorioso (a de uma Rússia “Kyvian Rus”, do século X, XI, por exemplo, que inspira Putin, ou seja, outros espectros, especialmente no sentido de despertar os que foram “monumentalizados”), em relação ao qual exige que os “seguidores” dissolvam os seus “eus”, a sua individualidade (se não quiserem acabar como “mortos-vivos”, ainda que a alternativa seja a de se tornarem vivos-mortos, ocos, vazios, sem eus, absolutamente banais no sentido da “banalidade do mal” de Hannah Arendt), para assim se subjectivarem no interior do “Homem-Espectro”, tornando-se indissociáveis (miniaturas, bandos indiferenciados de “mini-me”). O “Homem-Espectro” marca a génese do terror, e do político entendido nos termos de uma “fusão” absoluta entre o Estado e a sociedade, ou seja, a morte da sociedade.
7.5.3) Finalmente, a última variação do político, ou da génese da relação política, assente, desta vez, numa relação inteiramente diferente com os mortos, em grande medida inspirada em Morte e Democracia pelo magnífico Épico (ou Epopeia) de Gilgameš. O que faz Gilgameš? Que epopeia é a sua? Ora, é a de ir à terra dos mortos e voltar… É nos termos de um “devir-morto como experiência-limite”, após a morte do seu grande amigo e amante, Enkidu, que Gilgameš se torna um rei justo, e “a Epopeia de Gilgameš”, diz José Gil, “revela-nos uma outra génese do poder” (p.139). Esta forma de poder é a que Pierre Clastres atribui à organização social dos povos indígenas da América do Sul, e que define como A Sociedade Contra do Estado. Ou seja, ao contrário da transcendência do Estado em relação à sociedade (cujas formas de governo, para José Gil, seriam o autoritarismo e a democracia conservadora), ou da fusão suicidária da sociedade no Estado (o totalitarismo), existe a relação política, e uma concepção do próprio político, onde a sociedade se defende do Estado, é “contra” o Estado (e cuja forma de governo seria a de uma “democracia imanente”).
Sente-se, nestas páginas de Morte e Democracia, a “máquina de guerra” de Mille plateaux. Mas sentem-se, também, os devires, a teoria dos devires de Deleuze e Guattari. O espectro é agora trabalhado de maneira a fabricar devires, o devir-mulher, devir-animal, devir-planta, devir-negro, devir-Yanomami, devir-transsexual, etc., toda a espécie de devires-menor, minoritários (em relação ao padrão maioritário do homem branco, europeu ou ocidental, judaico-cristão mesmo quando agnóstico ou ateu, heterossexual, trabalhador, de classe média, etc.). Ir à terra dos mortos e voltar é devir, fazer os mortos voltarem à vida na imanência desses devires (onde se aplica, acrescento, uma “função fabulatória” [a concepção original é a de Henri Bergson], bastante activa actualmente como dispositivo especulativo-crítico, especialmente nas ciências humanas), e já não em termos da imortalidade da alma, onde são monumentalizados, e muito menos em termos dos “mortos-vivos”, onde o espectro aparece perversamente “em vida” e não “na morte”, reinando, como dizia Hannah Arendt em Origens do Totalitarismo (1951, no capítulo que acrescentou em 1958), “o terror [como] nova forma de governo”.
São, portanto, três linhas distintas de constituição do político, todas elas formuladas a partir da tal inversão, onde se pensa a política e o político a partir da morte e dos mortos, e não da vida e dos vivos. Elas supõem a mesma tríade, que vai do pensamento sobre a morte ao morto e ao político. Mas elas repetem esta tríade de diferentes maneiras, três pelo menos, em Morte e Democracia: a da génese do Estado em relação à sociedade, a do suicídio da sociedade em relação ao Estado, e a da defesa da sociedade contra o Estado. Esta última é a linha da “democracia imanente”, cujo aprofundamento da sua forma do governo José Gil deixa em aberto (no último capítulo, “Espectralidade e Imanência”).
8. Em termos de uma reflexão sobre o desdobramento que representa Morte e Democracia no conjunto da obra de José Gil, e isto no contexto dos 50 anos do 25 de Abril, gostaria de terminar com o seguinte. Primeiro
8.1) que existe uma relação evidente entre a “espectralidade” e o “inconsciente do corpo”. Ou seja, que em Morte e Democracia, José Gil pensa este inconsciente em termos de uma relação entre os vivos e o mortos, o que relança (a meu ver) toda sua obra, a sua metafenomenologia, sobre uma base alternativa, precisamente a do movimento que vai dos mortos aos vivos, isto é, de como os mortos são trazidos de volta à vida (espectralizados) por meio dos vivos. A este respeito, seria como se o próprio movimento do “Caos” ao “Ritmo”, constitutivo do pensamento principal de José Gil, e do problema de como pôr o corpo empírico “em devir”, encontrasse a sua contraparte (e génese) num pensamento sobre a morte, os mortos, que abre a metafenomenologia, o trabalho em torno do “inconsciente do corpo”, ao político. Ou seja, já não é simplesmente uma micropolítica que se desenvolve a partir da metafenomenologia: é a agora a partir de uma espectrologia política que se desenvolvem tanto a metafenomenologia como a micropolítica.
Segundo 8.2), o que se esclarece, portanto, é o próprio pensamento político de José Gil, em particular o seu entendimento da democracia, que aparece, ela mesma, concebida em termos renovados (do ponto de vista da teoria clássica da democracia, desde a pólis da antiga cidade grega ao liberalismo). O ponto central parece-me ser este: que depois do totalitarismo, que surge pela primeira vez no século XX, a democracia já não deverá ser pensada em termos de uma oposição relativamente simples entre o liberalismo (mais ou menos socialista) e o autoritarismo, ou até o totalitarismo, seja de esquerda ou de direita.
Enquanto “democracias pós-totalitárias” (o termo é de Jean-Pierre Le Goff, que se refere às democracia actuais, que carregam consigo o traço, a memória, do totalitarismo, inclusive do ponto de vista administrativo), o que a espectrologia política desenvolvida em Morte e Democracia permite-nos perceber é precisamente a democracia a partir deste passado recente. Para José Gil, a “democracia pós-totalitária” envolve três tendências distintas: a tendência da “democracia conservadora” para o autoritarismo (para o “iliberalismo”, Le Pen, Orban, por exemplo); a tendência da “democracia de fusão” para o totalitarismo (uma ditadura propriamente dita, Putin, Bolsonaro), e uma última tendência, a da “democracia imanente”, que é a tendência para a própria democracia, mas de onde se parte do pressuposto que as democracias liberais e o Estado de direito já não têm a força necessária para contrariar as primeiras duas tendências, precisamente por acomodarem-nas enquanto “democracias pós-totalitárias” (e onde seriam precisos “devires”, novas formas de vida, para reformular a democracia liberal, especialmente do ponto de vista da organização social, e particularmente na criação de novos mecanismos de solidariedade inter-geracional).
Por fim, terceiro, 8.3), Portugal, este Portugal de hoje, nos 50 anos do 25 de Abril. Do ponto de vista de Morte e Democracia, e ainda que José Gil não considere o trauma do salazarismo, diria que, este livro, com a sua espectrologia política, permite-nos recolocar o problema, acrescentar um novo capítulo, o de “Portugal, Hoje”, a Salazar: A Retórica da Invisibilidade (de 1995), vinte anos depois de O Medo de Existir. Se antes o problema era o da não-inscrição, hoje, com um partido de extrema-direita no qual votaram 1 milhão de portugueses em 10 de Março de 2024 e que conta com 50 deputados na Assembleia da República, é o próprio espectro de Salazar que se procura reinscrever, e o de Abril que se quer desinscrever (como se vê actualmente no desejo de inscrever o 25 de Abril no 25 de Novembro, o que desassocia a luta pela liberdade da luta pelo fim da ditadura, e abre a possibilidade de se perverter o que se entende por “liberdade”, apresentando-a, precisamente, como “luta” por uma democracia iliberal, por um regime autoritário ou totalitário). Ou seja, se até há pouco tempo o problema era de como o trauma se repete através da não-inscrição, hoje o problema parece ser de como ele se ameaça perpetuar precisamente através da inscrição do espectro de Salazar e da desinscrição do 25 de Abril, nos movimentos nacionais populistas, neo-fascistas (que, por sua vez, mantêm uma ambiguidade entre a tendência para o autoritarismo e o totalitarismo, ou que implementam o autoritarismo, o iliberalismo, com a possibilidade sempre presente do totalitarismo, do terror, como “horizonte”).
9. “Que fazer?”, voltando à pergunta de Lenine. Em relação a Portugal, não me parece que a resposta de Morte e Democracia seja outra do que a que José Gil dá praticamente desde o início da sua obra: é preciso inscrever o salazarismo no regime democrático, preencher o “branco” de Abril (historiadores como António José Saraiva já nos alertavam, e isto praticamente desde os primeiros tempos após a Revolução, dos perigos futuros desta “não-inscrição”). E como se faz isso? Sabemos, de Morte e Democracia, que é a partir de devires, indo à terra dos mortos e regressando, para, neste retorno, trazer à vida os mortos. E quais os mortos, os espectros, que estes devires fariam voltar? O que fabulariam eles? Com a força necessária para “antropofagizar” o espectro de Salazar? De reinscrever o 25 de Abril?
Diria que isto, pelo menos, é certo: tudo passa, em Portugal, pelo 25 de Abril. Se o querem desinscrever, cabe a nós o reinscrevermos. Mas, desta vez, finalmente, inscrevendo no 25 de Abril “o país da não-inscrição”, onde também habitam, com a sua Praça do Império, os espectros do extenso e complexo trilho da “presença histórica de Portugal no mundo” (e não serão eles que têm estômago para a digestão de Salazar?). O que se confirma, por outras palavras, é a conclusão geral de Morte e Democracia: entramos na era da “espectrologia política”.
Referências
Arendt, H. The Origins of Totalitarianism. Nova Iorque: Harvest, 1976 (1a em 1951).
Bergson, H. Les deux sources de la morale et de la religion. Paris: PUF, 2013 (1a em 1932).
Butler, J. The Psychic Life of Power: Theories of Subjection. Stanford: Stanford University Press, 1997.
Clastres, P. La societé contre l’état. Paris. Minuit, 1974.
Deleuze, G. Différance et repetition. Paris: PUF, 1968.
*Logique de la sensation. Paris: Éditions de la différance, 1981.
Deleuze, G. e Guattari, F. Mille plateaux. Paris: Minuit, 1980.
Derrida, J. L’écriture et la différance. Paris: Seuil, 1967.
*Spectres de Marx. Paris: Galilée, 1993.
Gil, J. Fernando Pessoa, ou a Metafísica das Sensações. Lisboa: Relógio d’Água, 1987.
*Salazar: A Retórica da Invisibilidade. Lisboa: Relógio d’Água, 1995.
*A Imagem-Nua e as Pequenas Percepções: Estética e Metafenomenologia. Lisboa: Relógio d’Água, 1996.
*Portugal, Hoje: O Medo de Existir. Lisboa: Relógio d’Água, 2004.
*O Imperceptível Devir da Imanência: Sobre a Filosofia de Deleuze. Lisboa: Relógio d’Água, 2008. *A Arte como Linguagem. Lisboa: Relógio d’Água, 2010.
*Caos e Ritmo. Lisboa: Relógio d’Água, 2018.
*Trajectos Filosóficos. Lisboa: Relógio d’Água, 2019.
*Morte e Democracia. Lisboa: Relógio d’Água, 2023.
Merleau-Ponty, M. Phénoménologie de la perception. Paris: Gallimard, 1945.
*Le visible et l’invisible. Paris: Gallimard: 1964.