Livro aborda conceito de raça - Brasil
“Raça é menos um fato biológico do que um mito social e, como mito, causou severas perdas de vidas humanas e muito sofrimento em anos recentes.” A declaração é de 1950, quando, no calor do pós-guerra, das lembranças recentes do Holocausto e dos ecos da política racial de Estados Unidos e África do Sul, a Unesco tentou deslanchar uma campanha mundial contra a discriminação racial. O que era para ser uma reflexão entre sociólogos, antropólogos e geneticistas do mundo inteiro transformou-se em discussões acaloradas sem que nunca se chegasse a consenso.
O episódio e a análise do fato fazem parte do livro Raça como Questão – História, Ciência e Identidades no Brasil, em que o sociólogo Marcos Chor Maio, pesquisador e professor do programa de pós-graduação em História das Ciências e da Saúde, da Casa de Oswaldo Cruz, da Fundação Oswaldo Cruz, e o antropólogo Ricardo Ventura Santos, pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública/Fiocruz, professor do Museu Nacional e Cientista de Nosso Estado, da FAPERJ, reuniram uma série de artigos de vários autores para promover uma reflexão sobre um tema polêmico.
A historiadora Lilia Schwarcz resume bem o espírito do livro: “Raça sempre deu muito o que falar: no exterior, mas sobretudo no Brasil, país identificado desde o século XVI com base em sua natureza exuberante, mas suas ‘gentes um tanto estranhas’. Por aqui, o tema proliferou, seja em perspectivas positivas e alentadoras, seja com visões mais negativas. Se a representação onírica, próxima à máxima romântica do ‘bom selvagem’ revelou-se vitoriosa até o século XIX, é desde esse momento que noções mais pessimistas, ligadas às teorias científicas raciais, tenderiam as inverter os termos da equação. De jardim edênico, nos convertíamos em laboratório (degenerado) de raças. E é nesse contexto que se inicia a bela e sólida parceria entre Ricardo Ventura Santos e Marcos Chor Maio. Dando continuidade a vários trabalhos conjuntos que vêm realizando há longa data, Maio comenta: “O livro é também uma comemoração dessa parceria.”
Em Raça como questão, eles traçam um apanhado desde o século XIX, analisando como o tema foi tratado em diferentes períodos, enfocando questões que durante certo tempo moldaram o pensamento dominante, como o higienismo, os estudos que se fazia sobre a mestiçagem ou os modelos da antropologia física, por exemplo. No artigo que abre o livro, “Entre a Riqueza Natural, a Pobreza Humana e os Imperativos da Civilização, Inventa-se a Investigação do Povo Brasileiro”, de Jair de Souza Ramos e do próprio Maio, os autores refletem sobre os trabalhos de três autores: Nina Rodrigues, Sílvio Romero e Euclides da Cunha. “O foco de nossa reflexão é a trajetória da apropriação das teorias raciais europeias no Brasil e os desafios dos intelectuais na busca de soluções originais com vista a fazer do Brasil um país civilizado. Nesse período, predomina um determinismo climático e racial no pensamento desses autores, que, apesar disso, por vezes apresentam argumentos socioantropológicos, questionando a base dessas teorias deterministas”, segundo Ramos e Maio.
Num dos capítulos seguintes, Ricardo Ventura Santos se debruça sobre os estudos da Divisão de Antropologia do Museu Nacional, especialmente sobre o trabalho de intelectuais, como Batista de Lacerda e Roquette-Pinto, que por lá passaram entre o final do século XIX e início do XX. Surpreende, por exemplo, o pensamento do antropólogo Roquette-Pinto, que, na contramão de um pensamento reinante naqueles primórdios do século passado, afirmava: “os homens cultos do planeta mostram-se índios de pele branca, cobertos por uma crosta, mais ou menos espessa, de verniz brilhante.” Para Roquete-Pinto, sob uma camada de cultura retrógrada ou avançada, encontrava-se um ser humano essencialmente igual em seu potencial, fosse ele europeu ou um índio da Serra do Norte. Ao que Santos avalia: “Se Roquette-Pinto se apoia em modelos racializados em suas análises antropológicas, a ênfase não está na existência de hierarquias no plano das potencialidades. Sob seu tom poético, está expressa a noção de que as diferenças residem menos na constituição racial/biológica do que em fatores ligados à cultura e à civilização, metaforicamente representados pela crosta de verniz brilhante.” É nesse ponto que, segundo Santos, Roquette-Pinto se distingue das análises e perspectivas sobre indígenas reinantes à época.
Há artigos que abordam questões polêmicas. Em “Antropologia, Raça e os Dilemas das Identidades na Era da Genômica”, analisa-se a recepção social dos estudos da equipe do geneticista Sérgio Pena, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pena e colaboradores abordaram aspectos da ancestralidade genética do minúsculo povoado de Queixadinha, no Vale do Jequitinhonha, no norte de Minas Gerais. “Retrato Molecular do Brasil” sugere que, no país, haveria baixa associação entre aparência física e ancestralidade genômica. Conforme demonstram Santos e Maio, as recepções foram bastante diversas. Enquanto para o ativista do movimento negro Athayde Motta, a pesquisa “seria um simulacro de suporte científico para… injetar sangue no moribundo mito da democracia racial, (…) cuja primordial função é a de manter o estado de desigualdades raciais no Brasil”, para M.X. Rienzi, de um grupo de extrema-direita europeu, a conclusão sobre a inexistência de raças seria “uma peça ideológica travestida de ciência”. O capítulo analisa como as evidências científicas são apropriadas pela sociedade, o que depende de contextos sócio-políticos particulares.
Maio e Santos também abordam a política de cotas, examinando o caso do vestibular da Universidade de Brasília (UnB). “Foi a primeira instituição universitária federal a adotar o sistema no país”, diz Maio. Na prática, foi uma implementação controversa, uma vez que além da autodeclaração do candidato – e para “controlar possíveis burladores raciais”– exigiram-se fotos que seriam confirmadas por uma comissão. Como mostram os autores, “esses critérios geraram uma temporada de disputas científico-políticas, já que foram objeto de amplas controvérsias. (…) Aludiu-se aos paralelos entre o que estava acontecendo em Brasília e práticas tipológicas de identificação racial comuns no passado no âmbito da antropologia física e da medicina legal, vistas de forma crítica pelas ciências sociais contemporâneas”. No último capítulo do livro, em co-autoria com Simone Monteiro, Maio analisa as políticas de ação afirmativa racializadas no domínio da saúde pública com base no processo de construção do campo da saúde da população negra, a partir dos anos 1990.
Marcos Chor Maio agora também se empenha no próximo lançamento de um outro livro: a publicação da dissertação de mestrado da cientista social e psicanalista Virginia Leone Bicudo, que estudou na Escola de Sociologia e Política de São Paulo sob a orientação do sociólogo Donald Pierson. Negra, ela foi uma das pioneiras da psicanálise no país. O livro faz parte das atividades do projeto “Encontro entre Antropologia, Sociologia e Psicologia Social na produção intelectual sobre raça e racismo no Brasil (1930-1950)”, apoiado pela FAPERJ, na modalidade Auxílio à Pesquisa (APQ 1). Integrante da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, Virgínia estudou em Londres (1955-1960), onde fez cursos no Instituto de Psicanálise da Sociedade Britânica e se especializou em psicanálise da criança na Tavistock Clinic. Manteve estreito contato com a psicanalista Melanie Klein. Organizado por Maio, Estudo de Atitudes Raciais de Pretos e Mulatos em São Paulo será publicado pela Editora da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, com lançamento previsto para o dia 11 de novembro, durante o Seminário Internacional de Sociologia: 50 anos de Brasília e 40 anos do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UnB.
FAPERJ