Luta identitária- mais que uma preservação cultural, a sobrevivência de um povo: o caso de Cabília (Argélia)

Os falantes da língua berbere ou tamazight representam um quarto a um terço da população argelina. Desde a independência do país, o árabe sucedeu ao francês como língua oficial. A política linguística argelina traduz-se por uma arabização massiva da administração e do ensino. É então em Cabília, região nordeste da Argélia, que se encontra o maior movimento de luta contra este fenómeno político-religioso. Sobretudo desde 1977, altura da criação da Universidade de Tizi-Ouzou, que esta região tem sido palco de troca ideológica, etnográfica e cultural mas também de repressão e controle por parte das autoridades oficiais do estado.Comemorações da Primavera Berbere ( Printemps Berbère)

Um dos movimentos mais marcantes da afirmação da identidade amazigh na Argélia foi a “Primavera berbere” que marca o primeiro movimento popular espontâneo e abre caminho a outros movimentos que pretendem pôr em causa o regime argelino, até então nunca contestado, desde a independência do país em 1962. A Primavera berbere ocorre a partir de Março em Cabília e seguidamente, em Argel.

Para além do plano político, esta luta tinha objectivos sociais no sentido de encorajar uma geração de intelectuais a comprometerem-se num combate democrático e no plano cultural. O objectivo era quebrar o tabu linguístico e cultural, o que claramente traduz a vontade de pôr em causa a arabização intensa de toda a máquina administrativa em detrimento do berbere. Esta tomada de consciência identitária chegou a Marrocos onde estes eventos são comemorados. A Primavera Berbere é celebrada anualmente.

Entre 2002 e 2003 vários confrontos entre berberes Cabíles e o exército argelino na região norte do país resultaram em 132 mortos e mais de 5 mil feridos, estes acontecimentos são conhecidos como a Primavera Negra. 

Esta luta dura há mais de 20 anos e, hoje em dia, a língua berbere ou tamazight é reconhecida como língua oficial, existe um canal de televisão exclusivamente em tamazight e este é ensinado nas escolas primárias, secundárias e universidades. O 1º ministro do governo de Abdelaziz Boutefika, Ahmed Ouyahia é de origem Cabíle.

Estas foram soluções apaziguadoras que o Estado adoptou depois dos violentos confrontos e repressões da Primavera Negra. Os berberes ou imazighen (quer dizer homens livres na língua berbere: o Tamazight) têm vindo a empreender várias formas de luta no sentido de se afirmarem anti-arabização. O propósito fundamental das suas lutas nada tem a ver com religião ou política, trata-se, antes de mais, da preservação de uma identidade cultural, sobretudo linguística.

E mais do que uma preservação cultural, trata-se de sobrevivência de um povo.

Naturalmente, sendo imazighen (= homens livres) – e para entender o poder ideológico e a coerência desta designação, quando nos referimos ao povo, independentemente de qualquer variedade regional, teria que falar um pouco sobre o mundo amazigh mas não é este o propósito deste ensaio- posso dizer que toda e qualquer forma de repressão e assimilação vai contra todos os princípios herdados pelos antepassados destas populações em que a honra, a coragem e, sobretudo, a liberdade são valores que  não sairão tão depressa do ADN dos seus descendentes. O povo português descende também dos berberes, logo, somos também imazighen ou berberes, no entanto, esta não deixa de ser uma teoria minha e não tem portanto qualquer fundamento científico, apesar de alguns - raros- estudos/ ensaios que já tive oportunidade de ler.

Simbolo da Identidade Amazigh/ Berbere  Estes estudos históricos, antropológicos, linguísticos centram-se essencialmente sobre o Al-Andaluz e portanto, de uma maneira geral, referem-se a toda a Península Ibérica e não apenas a Portugal, o que daria certamente um estudo interessante. O Ocidente do Al-Andaluz, o actual território português, a título de curiosidade, era apelidado de Gharb Al-Andalus (“o ocidente do Al-Andalus”). Estes estudos referem essencialmente a existência de semelhanças do povo da Península Ibérica com os “árabes”, mas não falam da nossa herança berbere.

A África do Norte era povoada por Berberes, em parte romana e cristianizada mas tornou-se, em apenas alguns séculos, um conjunto de países muçulmanos e muito amplamente arabizados, ao ponto de que a maioria da população se diz e se afirma árabe”1. É importante saber diferenciar o ser muçulmano do ser árabe. O muçulmano pratica uma religião, que é o Islão, logo é um conceito religioso, e ser árabe é um conceito etno-sociológico. É comum confundir os dois conceitos, uma vez que o Islão nasce na Península Arábica e foi propagado pelos árabes, no entanto, é curioso pensar que, apesar da Islamização de certos países não árabes (não pertencentes aos países árabes, da Península Arábica), outros países árabes ou arabizados permaneceram cristãos como a Síria, Líbano, Palestina, Iraque, Egipto. Esta luta identitária tem sido muito dura e assiste-se ao confronto, de uma parte, entre a população e o regime político e, no interior da população, entre os que não conhecem a História quando dizem “sou árabe” e uma corajosa e impetuosa minoria estudantil de intelectuais e famílias que vivem em regiões específicas que fazem questão de mostrar ao mundo o quanto são berberes.

O que eu quero agora acrescentar, e que nos diz directamente respeito, é que o Al-Andaluz fala na “Conquista Árabe” porque os Califados, Emirados e Taifas que existiram nesse território obedeciam a uma governação central situada na Península Arábica. Essa conquista foi liderada por um muçulmano, sim, só que os livros generalistas, sobretudo ligados à religião ou de autores árabes, esquecem-se muito convenientemente de referir que esse grande líder, de nome Tariq Ibn Zyad, era de origem berbere e não árabe.

A conquista só teve efectivamente sucesso porque as tropas berberes se aliaram ao exército árabe e lutaram lado a lado. E viveram aqui, também lado a lado. Parece haver uma tendência crescente de querer acabar com os povos autóctones, movida pela massificação das culturas. Defendo que se deve falar e continuar a falar nestes casos mesmo que não tenham directamente a ver com o nosso país. Trata-se da diversidade no mundo que devemos temos preservar e nesse direito pleno que temos em nos assumir diferentes e visíveis na nossa diferença. Esquecer estes enormes pormenores identitários custa muito caro à História e, mais cedo ou mais tarde, dão sempre origem a equívocos que podem ser dramáticos. Por isso, nada de dizer que “descendemos dos árabes”… também, sim, mas não só. O sangue berbere corre em nós e eu não tenho dúvidas.

A História relata que nunca houve tanta paz e comunhão entre religiões e povos, frequentemente refere-se o Al-Andaluz enquanto território que soube equilibrar as diferenças de forma exemplar. Judeus, berberes, árabes e católicos viveram em paz enquanto o Al-Andaluz existiu. O que aconteceu aos 700 anos, a este actual território que chamamos de nosso durante o Gharb Al-Andalus ? Porque continua esquecida esta parte da História do nosso país? Há muita gente que sente estas semelhanças e se identifica com esta cultura comum ao Norte de África mas a única alternativa para quem quer conhecer melhor, continua a ser a nossa vizinha Espanha que detém um manancial inesgotável sobre o assunto. Um grande bem haja aos nuestros hermanos…!  

Bibliografia

KHALDOUN, Ibn de  in Histoire des Berbères et des dynasties musulmanes de l’Afrique Septentrionale, Imprimerie du Gouvernement, Alger, 1852 ;

BOUKHRIS, Fatima; BOUMALK, Abdllah; MOUJAHI (EL), El Houssain; SOUIFI, Hamid in “La Nouvelle grammaire de l´amazighe”, Editions de l´Institut Royal de la Culture Amazighe, Rabat (2008)

DAYAK, Mano; STUHRENBERG, Michael; STRAZZULLA, Jérôme in “Touareg, la Tragédie”, Lattès (1992)

HACHID, Malika “Les Premiers Berbères” in Éditions INA-Yas Édisud (2000)

Sites:

http://www.amazighworld.org/history/

http://phoenicia.org/berber.html

http://www.lexilogos.com/berbere_dictionnaire.htm

http://www.mondeberbere.com/

por Rita Damásio
A ler | 17 Fevereiro 2011 | al-andaluz, argelia, berbere, cultura, Independência, língua, povo, tamazight