Menestréis à portuguesa. Crónica de um humor pouco notável

Diz-se que os ingleses riem dos irlandeses, os suecos dos finlandeses, os franceses dos belgas, os checos dos eslovacos, os russos dos ucranianos, os brasileiros dos portugueses. E os portugueses, riem de quem?

Embora trabalhe com estereótipos e espalhe essencialismos, o humor é visto como uma prática genericamente positiva e catártica. Próximo de uma arte que desorganiza aquilo que se encontra arbitrariamente organizado, o humor não só contribui para contornar as restrições sociais, como pode libertar-nos do fardo das exigências morais e dos compromissos éticos. Porém, a sobrevalorização da capacidade subversiva do humor tende a colocá-lo numa espécie de bastião da resistência intelectual, seja contra os artifícios banais ou o sentimentalismo burguês.

Mesmo os que afloram o humor sob o ponto de vista ensaístico, como Simon Critchley, preferem enfatizar os elementos corrosivos do humor, sugerindo que os seus jogos formais corrompem os poderes estabelecidos. Critchley ilustra essa potência corrosiva com a frase «a fantasia destruirá o vosso poder e será uma risada a sepultá-lo»1, sublinhando como o riso permite expor as contingências e as fragilidades do poder. Um outro exemplo de humor subversivo seria a anedota feminista citada por Critchley: «Quantos homens são precisos para revestir a parede de uma casa de banho? Não sei… Depende de quão finos os talhares»2.

Existem todavia versões racistas dessa mesma piada, nas quais os homens são substituídos por negros ou judeus, o que aproxima a anedota do breviário de representações da extrema-direita3. Estas anedotas partilham os mesmos jogos formais, que Critchley elogia, mas introduzem uma alteração de significado, o que as excluiria das piadas consideradas verdadeiras e mordazes (Critchley utiliza o adjectivo verdadeiro para distinguir o humor que é capaz de criticar ou alterar uma dada situação). Nos antípodas do «humor verdadeiro» estariam as piadas ditas reaccionárias, que seriam aquelas que reificam as hierarquias sociais, reproduzem o sexismo e a discriminação racial.

Mais do que alimentar polémicas sobre a noção de verdade, ou discussões sobre o que caracteriza uma piada de bom gosto, talvez seja conveniente inserir o humor numa perspectiva histórica e avaliar os humoristas que ficaram de fora do panteão do denominado «humor português». As antologias publicadas sobre o humor em Portugal costumam preferir os autores com verbo caudaloso, por forma a «não trair o filão mais importante do humor português, que é representado na nossa literatura pela sátira»4. A deslocação do meio literário para a televisão trouxe novos autores, e antologias renovadas, mas continuou a manter na penumbra os humoristas que destoam do chamado riso culto5. Entre os quais Romão Félix, um comediante que se celebrizou pelos seus espectáculos de pantomina, nos quais imitava negros das classes subalternas de Lourenço Marques (actual Maputo), pintando a cara com graxa preta.

Romão Félix criou a personagem «Parafuso» em 1955, data em que ganhou o primeiro prémio de um concurso promovido para imitadores pelo Rádio Clube de Moçambique. «Parafuso» integrou posteriormente o quadro de artistas daquela estação de rádio, participando nos seus programas de variedades, realizou espectáculos em várias salas de Moçambique e da África do Sul e gravou cerca de vinte discos (LP), entre os quais Parafuso no England, Kwela de Lisboa e Twist da Josefina.

O número humorístico de «Parafuso» inseria-se no subgénero dos menestréis, espectáculos bastante populares nos Estados Unidos durante o século XIX e que tiveram um longo curso no século XX, designadamente em territórios marcados historicamente pelo colonialismo. Conhecidos pelo seu racismo primário, os menestréis ridicularizavam os negros caracterizando-os como falhos em inteligência, obtusos, preguiçosos, supersticiosos, bufões, e que encontravam na dança e na música um casal consorciado para expressarem a sua subjectividade. Com o seu «inglês rústico» e aparência grotesca, o negro era reduzido a uma fonte de evasão cómica. Operando uma reificação das fronteiras raciais, os menestréis traduziam em suma uma representação estereotipada dos negros para consumo branco.

A hierarquização das sociedades coloniais e a construção da especificidade identitária do negro foi igualmente reforçada por uma longa tradição de menestréis durante o colonialismo português. Embora essa genealogia ainda esteja por fazer, Romão Félix vem na sequência de outros pantomineiros bem-sucedidos, como Manuel Soares, que celebrizou «Sabonete», personagem que parodiava o «mainato», nome dado aos empregados domésticos em Moçambique; ou José Galha, que criou a personagem «Mandji Verdji», o indiano que atendia a clientela no seu «Bazar Apetitoso». Todas estas personagens reforçaram através do humor o retrato negativo de africanos/ indianos mostrando, como Albert Memmi sugeriu, que a construção do retrato do colonizador impunha a construção paralela mas invertida do retrato do colonizado6.

Entre rótulos grotescos e racismo paternalista, os colonizados eram retratados como endemicamente inferiores mas admiradores da «civilização branca», como insinuava a expressão «branco tem esperto no cabeça», que resumia de certo modo a política dos menestréis durante o colonialismo português. Embora ridicularizasse aqueles que supostamente não conseguiam escalar as ásperas veredas da civilização, «Parafuso» dizia que brincava sem ofender, como o próprio advertia na contracapa de um dos seus discos (Parafuso em Lisboa), no qual afirmava que o seu número humorístico se assemelhava à «ternura sadia com que um brasileiro imita o portuga». Contudo, a ternura confundia-se com paternalismo, não fosse o objecto pantominado alguém de origem humilde, civilizacionalmente atrasado, mas encantado com os prodígios do «mundo português». A ligeira gaguez, as interjeições e, sobretudo, a inabilidade da personagem «Parafuso» em falar correctamente português reificavam a ideia do negro acriançado e ingénuo. Como comprovava a fórmula com que «Parafuso» terminava as suas locuções: «chi… mas cada um és como cada qual, mas ninguém és como evidentemente… ambanine e qui o chicuembo proteja todos vocês…»

Apesar de estar ausente da cultura livresca, que canonizou um quadro de temas ilustrativos do «bom humor» (entre os quais, humor negro, absurdo, adultério, autos-de-fé, beatas, brejeirices, clérigos, libertinagem, moralidade, castidade, etc.), poder-se-á dizer que o humor racista é o género recalcado do humor português (como são as anedotas sobre louras ou alentejanos, entre outras, que também fazem parte do humor português mundano). Num povo dito de brandos costumes, e que dispõe de um discurso oficial no qual os problemas de discriminação racial tendem a não se colocar, falar de um humor racista afigura-se excessivo, além de epistemologicamente contraproducente. Porém, basta efectuar uma breve pesquisa no Google para confirmar a resiliência dos herdeiros de «Parafuso», traduzida na irradiação e popularidade das anedotas racistas (leia-se «anedotas de pretos», porque este género humorístico não conhece eufemismos: este exclusivamente dedicado a anedotas racistas, das quais as anedotas sobre Samora Machel foram uma conhecida variação).

Falar de géneros nacionais de humor é, na pior das hipóteses, essencialista, mas visto sob o ponto de vista estratégico, é talvez a melhor forma de aferir como o humor se relaciona com um contexto histórico e social específico. Produto das circunstâncias, o humor racista surgiu e consolidou-se no contexto do colonialismo português e serviu-se do elo mais fraco da situação colonial para o ridicularizar. Enquadrado por normas e hábitos fortemente racializados, o sistema colonial traduziu-se na vida quotidiana, designadamente na generalização de um género humorístico que contrariava o alegado excepcionalismo português no capítulo das relações raciais. Diz-me de quem ris, dir-te-ei quem és.

 

Texto originalmente publicado na revista ImprópriaPolítica e Pensamento Crítico, nº 4, 2014, pp. 119-121, UNIPOP.

  • 1. Agradeço ao Ricardo Noronha (historiador) por ter identificado a origem correcta da frase «a fantasia destruirá o vosso poder e será uma risada a sepultá-lo», que Simon Critchey opta por truncar e atribuir erradamente aos situacionistas italianos, quando na verdade é uma citação de Bakunine adoptada pelos «Índios metropolitanos» na Itália dos anos 1970. Para mais informações, ver http://libcom.org/history/ laughter-will-bury-you-all-irony-protest-language-stru- ggle-italian-1977-movement-1; http://peppinoimpastato- project.files.wordpress.com/2012/02/soccorso-r....
  • 2. Critchley, Simon, (2002), On Humour, Londres e Nova Iorque: Routledge, p. 11. Original em inglês: «”How many men does it take to tile a bath-room?”, “I don’t know”, “It depends how thinly you slice them”» – tra- duzido por Miguel Cardoso (poeta e tradutor).
  • 3. Cf. Billig, Michael, (2005), Laughter and Ridicule. To- wards a Social Critique of Humour, Londres: Thousand Oaks e Nova Deli: Sage Publications, p. 159.
  • 4. Mello, Fernando Ribeiro de (1969), Antologia do humor Português, Lisboa: Afrodite, p. XVIII.
  • 5. Cf. Silva, Nuno Artur e Santos, Inês Fonseca (2008), Antologia do humor português mas só o que saiu em livro e mesmo assim há uns que, se calhar, não deviam aqui estar e outros que não estão e deviam estar. é como em tudo: 1969/2009 mais ou menos enfim, 18 de Abril de 2008, até à hora do almoço, o mais tardar, Alfragide: Texto Editora, 2008.
  • 6. Memmi, Albert (1974), Retrato do colonizado, retrato do colonizador, Lisboa: Mondar.

por Marcos Cardão
A ler | 7 Fevereiro 2019 | humor, humor português, identidades, racismo, sátira