“Dread inna Inglan”, notas sobre o episódio Lovers Rock
A série Small Axe de Steve McQueen conta através de cinco episódios distintos as histórias das comunidades caribenhas que se instalaram em Londres entre o final da década de 1960 e o início dos anos 80. A série retrata de forma inovadora a emergência de uma Inglaterra negra, fora das representações habituais de subalternidade.
A série criou uma das primeiras representações positivas da população negra na televisão e constituiu um exemplo de criatividade numa área onde esta permanecia praticamente ausente. A par da novidade de ver pela primeira vez uma história desconhecida, ou omitida, a série Small Axe criou um espaço singular de imaginação e identificação, dando azo a que vários espectadores se identificassem com aquelas histórias. O que originou uma discussão paralela sobre o sentimento de pertença a um lugar, que tem uma importância acrescida se se atender ao facto de que a vontade de pertença foi sistematicamente minada pelo racismo sistémico da sociedade britânica.
O desejo de pertencer a um espaço pós-imperial encontra uma tradução singular no poema “It Dread inna Inglan”, de Linton Kwesi Johnson, uma figura omnipresente ao longo da série, que aparece de facto no episódio “Alex Wheatle”, a ler em voz off o poema “New Cross Massakah”1, sobre o fogo de New Cross em 1981, onde 13 jovens negros foram mortos num incêndio criminoso, não investigado pelas autoridades britânicas.
Linton Kwesi Johnson deu voz e forma poética à luta da diáspora afro-caribenha contra a discriminação e o racismo no início do Thatcherismo2. O poema “It Dread inna Inglan” expressa de forma explícita a determinação das comunidades africanas, asiáticas e caribenhas em permanecer na Inglaterra e obter a cidadania britânica.
Maggi Tatcha on di go
Wid a racist show
But a she haffi go
Kaw,
Right now,
African
Asian
West Indian
An’ Black British
Stan firm inna Inglan
Inna disya time yah.
O episódio “Lover’s Rock” desenrola-se numa festa, designada “blues party”, à época considerados locais seguros para as comunidades caribenhas, excluídas do apartheid racial dos clubes noturnos britânicos. O episódio distingue-se pela forma como inventa uma história original e desenvolve um trabalho de memória, que articula dimensões imaginárias e afetivas. Aparentemente “sem enredo”, o episódio é mediado essencialmente por música, e não por palavras, a forma tradicional de produzir sentido. Este gesto desloca a hierarquia estabelecida entre palavras e sons, razão e emoção. Em vez de um artifício para embelezar uma cena, retratar uma personagem, ou ostentar o (bom) gosto do realizador, a música é praticamente o fio condutor da narrativa. Entre as palavras, gestos e as coreografias improvisadas pelas personagens na pista de dança, estão as canções de Janet Kay, “Silly Games”; Gregory Isaac, “Mr. Brown”; ou Carl Douglas, “Kung Fu Fighting”.
O episódio “Lover’s Rock” diferencia-se pela forma como atribui às cenas de dança uma duração pouco habitual. Em vez de se deter a filmar a vida e as experiências das comunidades caribenhas entre os polos da opressão e resistência, o episódio cria um espaço “intersticial”, que envolve afetos, experiências, sentimentos, mas também tensões e adversidades. Ou seja, a festa não é um lugar idealizado, envolto em promessas do escapismo e destituído de relações de poder.
A personagem principal, Martha (interpretada pela atriz Amarah-Jae St Aubyn), uma jovem cristã que foge de casa para vivenciar o mundo profano de uma festa, encontra afeto, mas também solidão e abandono. As tensões são coreografadas na pista de dança, onde se desenvolvem momentos de união, intimidade, namoro, rejeição e violência. Há inclusive espaço para documentar a divisão sexual da pista de dança, assinalando como os géneros musicais a condicionam. Enquanto a música de Janet Kay, “Silly Games”, um exemplo do género musical Lover’s Rock3, ilustra a alegria e comunhão na pista de dança, com homens e mulheres a dançar juntos e a cantar a cappella; o tema “Kunta Kinte Dub”, interpretado pelos The Revolutionaries, é uma experiência exclusivamente masculina e dominada pela fisicalidade.
As diferenças de género são performativizadas pelas características dos próprios géneros musicais. Popularmente conhecido como o subgénero romântico do reggae, o Lover’s Rock é essencialmente composto por baladas melódicas – interpretadas sobretudo por mulheres jovens, mas produzidas quase exclusivamente por homens –, acompanhadas por coreografias que criaram um espaço para o erotismo4. Em vez de pretender consciencializar, ou seguir as premissas decalcadas de um ideal de autenticidade, o Lover’s Rock abarca as características principais da música pop, que o distinguiam de outros subgéneros, nomeadamente o Roots Reggae ou o Dub, bem como do estilo de vida “autêntico” dos Rastafari.
O “Lover’s Rock” contribuiu para mudar a percepção da música negra nos média britânicos. Apesar da sua origem transnacional, o “Lover’s Rock” é visto como um género distintamente britânico. De certa maneira, o “Lover’s Rock” foi o primeiro género musical pós-colonial a surgir no Reino Unido, ao qual se seguiram outros géneros internacionalmente conhecidos, como o Brit Funk, Acid House, Jungle, UK garage, Dubstep, Grime, ou o UK drill.
Como Bob Marley diz na canção “Trenchtown rock”: “one good thing about music, when it hits you, you feel no pain”. Mesmo sem mensagens políticas claras, servindo essencialmente para entreter e divertir, o “Lover’s Rock” criou uma espécie de política “desprovida de dor”, composta por canções melódicas e anseios românticos, que traduziam de certa forma aquilo que acontecia na vida quotidiana. Um princípio de esperança entre as dificuldades, tensões raciais e a discriminação.
- 1. https://www.theguardian.com/culture/2021/jan/17/remembering-a-tragedy-cu...
- 2. Linton Kwesi Johnson (nascido em 24 de Agosto de 1952, Chapelton, Jamaica) tornou-se o segundo poeta vivo, e o único poeta negro a ser publicado no Penguin Classics Series. https://www.penguin.co.uk/authors/28806/linton-kwesi-johnson.html
- 3. Em julho de 1979, Janet Kay interpretou o tema “Silly Games” no programa Top of the Pops, tendo sido a primeira cantora de reggae britânica a chegar ao topo da tabela de vendas no Reino Unido. A editora Soul Jazz Records, sediada em Londres, tem editado uma série de compilações em diferentes estilos musicais. Em 2012, a Soul Jazz Records editou a compilação “Harmony, Melody & Style. Lovers Rock In The UK 1975-1992”, que colige vários intérpretes e produtores do género Lover’s Rock no contexto britânico. https://soundsoftheuniverse.com/sjr/product/harmony-melody-style-lovers-....
- 4. Há bastante tempo que as canções de amor, melódicas e românticas, fazem parte das tradições musicais da Jamaica, tendo sido interpretadas por nomes como Alton Ellis, John Holt, Ken Boothe, Marcia Griffiths, Dennis Brown, Gregory Isaacs, entre outros. Embora se diga que o Lover’s Rock é um género musical britânico, a sua origem faz parte de uma história mais longa da diáspora negra. Para uma análise detalhada sobre o Lover’s Rock, e as suas políticas de género, ver Lisa Amanda Palmer (2014). “Men Cry Too: Black Masculinities and the Feminisation of Lovers Rock in the UK”. In Jon Stratton; Nabeel Zuberi (eds.). Black popular music in Britain since 1945. Burlington: Ashgate, pp. 115-129.