Murmúrio e momentos de um Poeta-a-Dias
“[…] Na TV ouvira uma canção
Melodia do além
Letra feiticeira
Numa língua que não entendo
Não sei o que diz a canção
Mas comigo buliu
Muito me disse
Aquela tremura embriagada senti
Senti-me inundar de algo
De algo sufocante e libertante
De algo que se sair é poema
Se ficar não partilhada poesia […]” – p. 125
Qual murmúrio? Murmúrio de amor, de consciência cívica e de preocupação com o estar no universo, único agasalho do homem, ainda que conheça outros universos, mas apenas pela sua insaciável curiosidade. Momentos?! Sim, momentos. Momentos de um sujeito poético que recusa ser de-a-dias como se apresenta o seu criador no subtítulo da obra. Não somos nós a recusar este auto-retrato de Emílio Kafft Kosta, é o próprio poeta despido da objectividade linguística de que seria certamente exímio enquanto jurista e professor, vestindo-se de uma linguagem que talvez só uma leitura de cada um de nós pode saborear os gostos. São muitos gostos que, aliás, o próprio poeta exorta no seu Prefácio na 1.ª Pessoa do Singular (p. 9): “Queria que o meu murmúrio / Acordasse o mesmo sofrimento / O mesmo deleite / Que sofri na criação”. Ainda avisa aos que na poesia autêntica reclamam dos significados, das percepções que, se para estes não convence Salvato Talles de Menezes (p. 43: 1993) quando afirma que “a poesia é persuasiva, não argumentativa, apela mais à imaginação que ao raciocínio lógico”, o próprio poeta, aqui, toma a iniciativa de contar o seu desejo ao seu leitor: “Queria que os meus rasgos de sofrimento / Não fossem dissecáveis / Analiticamente autopsiáveis”. Não é nosso propósito censurar aos que encontram na forma realista de linguagem o veículo para a partilha dos seus sentimentos e experiências em forma de poesia – afinal todo o dizer busca um entender, mesmo que nas entrelinhas – mas a aventura a que nos propomos nesta leitura, espera sentir os murmúrios, viver com o sujeito poético os seus momentos líricos e contemplar as diversas imagens sugeridas em cada poema e sublimemente representadas em cada quadro a acompanhar os títulos que a obra traz.
ESTE POETA AMA…
Um amor exprimido de diversas formas: ora em forma de dor “De quem vê partir quem o trouxe”, referindo-se ao reconhecido pai que, na sua ausência, falecera em Lisboa, cidade para que veio evacuado de Bissau, e ele (o filho) em Coimbra, onde estudava Licenciatura em Direito, sem lhe puder prestar a mais justa homenagem, apesar de o ter apoiado, praticamente sozinho, durante os meses em que esteve internado no hospital, sendo obrigado a viajar regularmente para Lisboa, recusa a se conformar com o Epitáfio (p. 13-14) sobre a campa do pai: “Outro merecias, pai / […] Outro que sobre a falésia do desassossego / Pudesse agradecer e mesquinhar”. Um sentimento que o próprio autor explica à margem da leitura aqui partilhada:
Jovem estudante e isolado em terra alheia, assumi sozinho a organização das exéquias (tendo perdido o ano lectivo, por essa causa), mas não me sobrou cabeça para me ocupar do pormenor do epitáfio (“que não fiz”), tarefa mecanicamente executada pela agência funerária.
Ou ainda a Mãe (p. 15) de que lamenta a ausência: “Abro os olhos abertos / E navegando nesse mar de sonho / Assim desapareces / Deixando-me só com a solidão”; ora saboreando o seu gosto, gosto de Amor-Amar (p.37), representado na amada e que, num modo camoniano de exprimir, é definido como “fogo vivo”, “[…] sentir-se parte de outra parte / E ver noutra parte do Eu”, não deixando mesmo margem para dúvida quanto à essencialidade desse sentimento: “Ah! Desditado quem desama é / Pois o amor / Um atalho para a felicidade é”. Contudo, os efeitos contrários do amor não escapam ao sentir do sujeito poético que, sonhando porventura no mais alto deleite romântico, lamenta: “E eis que / Do nada acordo / Sem lala rosa nem éden”. Quem não chegou de ter esses momentos felizes de sonhos estragados pelo súbito acordar em solidão, causando mesmo ódio de ter sonhado? Ou quando nos recordamos de um Adeus (p. 35) de que não somos capazes de esquecer? Pelo menos o poeta não se consola e entre sussurros e face inundada de lágrimas, aperta o coração: “Para mim o perfume de uma flor / De mim a saudade que guardarei / Neste coração pulsando de dor”.
Para além de um espaço para revelar os seus cuidados de ser pai, que encontra na imagem de “pilhas e pilhas” de Nido, marca de leite ainda hoje das mais custosas no mercado; o sacrifício para sustentar um filho, e talvez por ter sido um filho grato aos progenitores, como revela em citações acima apresentadas; o sujeito poético ainda revela não ser de um sentimento de amor platónico, que se contenta com o contemplar sem tocar e, mesmo que chegue a gemer de “[…]Tanta felicidade / Só por imaginar-te / Não sei o que seria de mim sem ti” (p. 43), ele almeja acalentar o desejo carnal, pois quando suplica à Menina (p. 53): “Faz-me atravessar a tua lagoa”, é com este declarado desejo de chegar ao “Mato do meu sossego / Lá em baixo água / Aqui são gemidos”. Enfim, o poeta também é romântico e daqueles que permitem reviver Almeida Garrett.
A PÁTRIA DO POETA, UM DESAFIO AO PENSAMENTO
No capítulo filosoficamente intitulado de Polis, o poeta traça um conjunto de visões sobre o seu país, a Guiné-Bissau. Sem se deixar levar pela linguagem que seria capaz de assumir se fosse convidado noutro contexto a se pronunciar nesta matéria, o também intelectual jurista (dos mais destacados do seu país, sem dúvida) não perde a essência da sua expressão poética, nem larga o quadro estético em que as suas palavras se inscrevem. A Nossa Guiné (p. 61) provoca interrogações com os seus recorrentes casos de instabilidades sociopolíticas, que seria estranho não encontrarem espaço no primeiro baú poético do Kafft Kosta trazido ao público, até por ser dos seus em que a sua gente mais espera para a cambança que ainda tarda em acontecer. Eis a sua inquietação vincada: “Chão escravo este / Mas o que é? / Praga?”. O poema é datado de 1981, dos tempos mais incertos e inseguros do novo Estado da Guiné-Bissau, pois um ano antes desencadeava-se o primeiro dos quatro golpes de Estado com intervenção militar que o país viveu até à data da publicação da obra em leitura. Fúria que se repete em 1998, sendo um dos períodos mais representados no seu Murmúrio, assim resumido em Guinéndade (p. 71): “Tecelão atiçador sumiu / Sangue de inocentes em lago / A morança ardeu / restaram os gentios / Neste Era Uma Vez da mortandade”. Estava-se num conflito armado entre a Junta Militar e milícias fiéis ao Presidente Nino Vieira. Um conflito que ceifou vidas e ceifou a funcionalidade das instituições do próprio Estado, mas o poeta não se dá por derrotado e encontra forças para gritar: “Acorda meu irmão / Minha terra ergue-te / Engole a tua dor / Sê tu apenas tu”, pois é caso para dizer que houve envolvimento de tropa estrangeira ao lado das possessões governamentais.
A Guiné do poeta é repleta de memórias que se dizem para esquecer, mas há quem olhe para esse passado e compreende a origem do mal que ainda vivemos: assassinatos e fuzilamentos por explicar; valas comuns de extermínios por desvendar e até desaparecimentos de conterrâneos por encontrar explicação. No poeta, porém, o Ribeiro de Raiva (p. 75) conclui-se nestas perguntas pelo menos uma vez feitas por quem viveu e vive a Guiné-Bissau: “Porquê? Para quê? Até quando?”.
Apesar da ira e de o sujeito poético viver “Ladeado por abismos” ou mesmo percebendo estar “Sem eira nem beira”, encontra um fio de esperança no devir, convidando-nos a um Depressa Andemos (p. 63), porque mesmo “[…] neste mundo / Que é nosso dissabor / Amanhã será / Nosso e para nós gentios”. O andar para dias melhores não será fácil, o poeta sabe-o, como sabe o lugar em que medita, Aqui (p. 67), “Onde a tríade / Distância-lentidão-miséria / Dialecticamente rimam”, mas há caminho e o poeta explica-o: “Encurtemos a distância / Apressemos a lentidão / E enriqueçamos a miséria / Dando vida à vida”.
METAPOEMANDO A EXISTÊNCIA TERRENA
“Mergulhado na imensidão deste mundo
Nesse mistério sempre mistério
Não sabendo mas sabendo
O como e porquê da minha existência” – p. 91
Com olhar fixo na Lua ou no Sol, à janela ou sentado na praia, o sujeito poético contempla a natureza circundante de modo profundamente tocante, desafiando a solidão ou o escuro, não deixando margem para o leitor não se sentir envolvido, sendo atento e esforçando-se em sentir a vida na companhia do poeta, que não é uma tarefa custosa, se não mesmo momentos únicos de experimentar a nossa existência em palavras deliciosamente murmuradas em versos, como quando se foca na imagem de lua cheia, aquela lua em que todos nós imaginamos a presença de uma criança no regaço materno, pensa na vida nossa à espera de se apagar um dia: “Na lua / No regaço da Nossa Senhora / Já não está o menino Jesus / Nem nossa Senhora / Nem regaço” (p. 57). Por que não olhar apenas num instante por esta imagem aqui gravada em palavras?! É esta a figura de estilo mais denunciada pela obra em apreciação, a imagem, que o poeta constrói em O Ciclo da lua (p. 129): “Abro a janela / E de caras dou / Com a bola branca / No azul e escuro”. Será assim tão difícil olharmos, nós mesmos, abrirmos a janela, erguermos um pouco a cabeça e ver nas nuvens nocturnas a lua a desafiar a escuridão? Pois sim, é o existencialismo que todos encarnamos, a vida, um desafio a que nenhum de nós escapa e nos faz ou desesperados, ou determinados em existir vivendo seja como for, ou ainda como o poeta que faz aliança com os seus versos neste desafio: “A minha poesia será livre / Livre como o vento / Transpondo virgens matas / Em busca enfim / Da liberdade” (p. 79). O poeta sabe que mesmo Entre a Luz e as Trevas (p. 85), mesmo ainda reconhecendo o carácter passageiro da vida, pois Tudo é Vento (p. 95), ou que “Certo certo / É o fim / E o único fim / A morte”, decide viver até pelo menos à sua própria eternidade: “Serei lágrimas e rio e mar / Serei o sonho no inferno da vida”, ou seja, a esperança de viver e fazer acontecer do sujeito poético é inabalável, nem mesmo por trevas, apagões no luar ou solidão medonha. De onde vem esta força de resistência?! - Podemos questionar. É o próprio poeta que nos responde em Vejo o Sol a Chover (p. 135): “Entre mim e o sol poente /A janela da automotora de Beja / E a cabeça moída de aulas / Dissecação da Constituição em Lisboa / Constituição saturada em Beja / Entre elas, o Meio-dia do mesmo dia”. Quem fala? É o Professor Emílio Kafft Kosta, porque sabe, ele mesmo, que tem a dar, sabe dar o que dá e aceita a rotina docente: “Amanhã renasço a Leste / Para o meu fogo acender / E dar luz dar luz dar luz”. Decerto que, perante estes versos, um aluno da Faculdade de Direito de Bissau parava quieto no fim do poema e perguntar: “E se ele fosse o meu professor aqui, apenas aqui?” e saberá depois a resposta por si mesmo: “Melhor é lembrar que não se recusou a ser”.
Os Murmúrios do poeta ainda são acompanhados por quadros pintados por mãos conscientes do que faziam, pois, cada imagem gravada em páginas acompanhando poemas é um casamento que assistimos entre as telas e os versos, como se fossem casais amando-se em terra onde não mora traição. Os quadros explicam os poemas, e vice-versa! Mais ainda há que falar do estilo poético do autor, representados por imagens de que já falámos; por repetições com efeito melódico a pingar do som de korá em letras, oiçamos a vida “Dolorosa airosa penosa” (p.87), ou em forma de anáfora, como “Em cada grito / Em cada amanhã / Em cada olhar / Em cada ternura” (p. 93); todas estas figuras entrelaçadas em profundos sentimentos de amor, dor e existência humana.
Dos cinquenta e cinco poemas que fazem o livro, onze estão escritos originalmente em kriol (língua guinense), aparecendo ao lado das suas traduções em português, que em nada diminuem os seus efeitos líricos, sendo que, no fim, ainda há um glossário para as expressões não traduzidas ao pé dos textos. Entre estes poemas, destaca-se Fos ku Pitrol (p. 110), “I e ski kontrada di fula ku mandinga”, numa alusão à guerra de Turban (Kansala), entre fulas e mandingas, um acontecimento ainda hoje vivo nas relações entre as duas etnias, permitindo sentir, por exemplo, o sabor local de que também são feitos estes momentos murmurados pelo poeta, que a nós nos coube apenas escutar os sussurros deixados escapar entrelinhas.
Porto, 02/02/2019
KOSTA, E. Kafft, 2018 – Murmúrio. E momentos de um Poeta-a-Dias. Lisboa: Chiado Editora.
MENEZES, Salvato Telles, 1993 – O que é Literatura? Lisboa: Difusão Cultural.