Língua portuguesa e colonização – caso da Guiné Bissau

O presente trabalho visa compreender a experiência que se deu com a decisão de ensinar em língua portuguesa nas escolas da Guiné-Bissau, centrando-se sobretudo no período temporal que vai de 1954, com a promulgação do Decreto-Lei 39 666, de 20 de Maio, do Estatuto dos Indígenas Portugueses das Províncias da Guiné, Angola e Moçambique, pelo Ministério do Ultramar; a 1993, vinte anos após a proclamação unilateral da independência da Guiné-Bissau, pelos guerrilheiros do P.A.I.G.C (Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo-Verde) e um ano antes das primeiras eleições democráticas neste país africano de colónia portuguesa, sendo que, na realidade, a análise se estende aos nossos dias, dado que as dificuldades do ensino na matéria linguística ainda persistem, a um nível cada vez mais preocupante. 

A determinação do período temporal, conforme apresentada, é mais no sentido de considerar as principais fontes que nos permitiriam traçar uma análise melhor fundamentada sobre “Em que língua ensinar na Guiné-Bissau independente?”, pergunta que só surge mais à frente do trabalho, justificando-se a partir da problemática que se foi criando no decurso do exercício a que nos propusemos fazer e fundada na seguinte questão: “Seria a língua portuguesa um instrumento ideal a usar no processo de ensino-aprendizagem para a libertação do povo da Guiné?”. Para responder a esta questão, que não é nova no panorama de investigação sobre a presença colonial portuguesa na Guiné, procedemos não só à apreciação da referida lei do indigenato, mas também a alguns escritos de Amílcar Cabral, líder independentista da Guiné e Cabo-Verde, e às “Cartas à Guiné-Bissau”, uma espécie de relatórios que o filósofo e pedagogo brasileiro Paulo Freire publicou, em decorrência do seu envolvimento nos anos de 1975-1976, no processo de organização do sistema educativo desse novo Estado independente da África.

Monumento aos mártires de Pindjiguiti (massacre de 1959 que vitimou às mãos do fascismo e da sua política colonial entre 40 a 70 marinheiros e estivadores), Bissau, foto de Marta Lança, 2019Monumento aos mártires de Pindjiguiti (massacre de 1959 que vitimou às mãos do fascismo e da sua política colonial entre 40 a 70 marinheiros e estivadores), Bissau, foto de Marta Lança, 2019

Numa metodologia essencialmente qualitativa, baseada em análise documental, apesar de termos usado alguns dados estatísticos que nos eram indispensáveis para a consistência de algumas fundamentações, recorremos ainda a um conjunto de obras de que damos conta no capítulo a seguir a esta nota, no sentido de não só compreender os estudos já realizados nesta matéria de língua portuguesa e colonização, mas sobretudo para verificar até que ponto a concepção a que nos preparávamos apresentar seria mais válida para o debate sobre o assunto. Neste sentido, o nosso trabalho distingue-se pela abordagem à realidade sociocultural do contexto em que a nossa análise se centra e dos factores que terão levado à escolha da língua portuguesa nas escolas do P.A.I.G.C, para depois assumirmos o modelo de ensino bilingue na Guiné-Bissau, desde os primórdios da independência. Este último, diferente da posição defendida por próprio Amílcar Cabral, mas aliada a posições de vários autores cujas visões vão transparecer ao longo da síntese de que aqui se vai dar conta, como a que melhor se adequava e ainda hoje se adequa a um processo de ensino-aprendizagem para a libertação, no sentido civilizacional e cultural do termo.

Para alcançar o fim proposto, o trabalho se encontra organizado em quatro pontos principais, sendo o primeiro referente ao Enquadramento Teórico, em que damos a conhecer o objecto do nosso trabalho e o modo como o pretendemos analisar; seguido de um segundo ponto, referente à língua portuguesa, partindo da percepção que dela temos enquanto um dos instrumentos usados pelo colono para melhor dominar os povos colonizados; sendo que o terceiro ponto, parecendo continuidade do segundo, distingue-se pelo facto de se centrar sobretudo na análise da afirmação de Amílcar Cabral, considerando a língua portuguesa “uma das melhores coisas que os tugas nos deixaram” (1974a: 214). No quarto ponto, apresentamos e sustentamos a nossa visão sobre a língua de ensino nas escolas da Guiné-Bissau, em coerência com os objectivos do ensino para a libertação e da realidade sociocultural do país. Nas Considerações Finais, recordamos as bases da nossa visão ao longo de todo o trabalho, deixando algumas considerações adicionais sobre a questão de fundo do artigo.

Enquadramento teórico

Guiné-Bissau é um país de pequena dimensão geográfica (36.125 Km²), com uma população estimada em cerca de 1.600 mil habitantes, heterogénea em termos étnico-culturais e que, desde a proclamação unilateral da sua independência, a 24 de Setembro de 1973, adoptou o português como língua oficial e de escolarização, sendo que, para além de português, ainda conta com uma língua nacional crioula (Kriol, conforme a denominação local) e diversas línguas étnicas identificadoras das diversas etnias do país.

Este trabalho tem como pano de fundo procurar respostas, através de análise de um conjunto de fontes selecionadas, à pergunta base: “Seria a língua portuguesa um instrumento ideal a usar no processo de ensino-aprendizagem para a libertação do povo da Guiné?”. A partir desta questão – provocada pela percepção de que a língua em questão foi um dos instrumentos usados pelo colonialismo português para a dominação do povo da Guiné, pelo que não seria normal o mesmo instrumento de opressão servir para um processo educativo que pretenda a libertação do mesmo povo da alienação colonial – tentou-se compreender os motivos pelos quais o P.A.I.G.C e o seu líder, Amílcar Cabral, escolheram a língua portuguesa para servir de veículo através do qual se operava o processo de ensino nas escolas do partido nas então zonas libertadas, mas também como forma de perceber se haveria uma língua alternativa à portuguesa para esse fim, ou se haveria uma justificação para o facto de ainda hoje se ensinar em português nas escolas do país: 1) Que língua nacional da Guiné poderia substituir a portuguesa no processo de ensino-aprendizagem? 2) O que justifica que, mesmo com a independência, ainda seja o português a única língua de escolarização na Guiné-Bissau?

Se todo o sistema educativo colonial realizado nesse país da África Ocidental deve merecer uma apreciação, a presente pesquisa toma a questão de língua de/para ensino como objeto para compreender as dificuldades de muitas sociedades, dominadas até finais do século XX pelo imperialismo europeu, nas suas práticas do processo educativo. Consideramos a língua de ensino um factor determinante na efectiva e eficaz realização da relação professor-aluno, ou educador-educando, como diria o filósofo e pedagogo brasileiro Paulo Freire. Assim, a preocupação é criar condições para a participação de ambos actores no processo de construção do conhecimento.

Neste sentido, o presente artigo foi escrito com base na leitura e análise de algumas das obras de Paulo Freire e Amílcar Cabral, sobretudo porque o primeiro apresenta um longo percurso no estudo e prática pedagógica para um processo educativo que o próprio chama de “libertária”; e que é, no fundo, o tipo que se pretendia implementar na recém-independente Guiné-Bissau, numa perspectiva de continuidade de educação para a “reconstrução da nação”, sempre defendida pelo seu líder independentista, aquando da criação das primeiras escolas do P.A.I.G.C, mesmo antes da independência do país. 

Para além destes autores, ainda foram consultadas algumas referências de Frantz Fanon; Atsushi Ichinose e João José Monteiro, entre outros; sendo os dois últimos investigadores ligados ao Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas (INEP) da Guiné-Bissau; todos consultados com vista a garantir que o trabalho se ligasse a outros no mesmo sentido e com garantia de que qualquer conclusão a que vamos  chegar, no fim, tenha origem numa percepção cuidada dos esforços empreendidos pelos nossos antecessores. Ainda é de referir a obra “Paulo Freire e Amílcar Cabral – a descolonização das mentes”, de autoria de José Eustáquio Romão e Moacir Gadotti, num olhar comparativo da pedagogia freiriana e acção revolucionária cabralista.

 Língua portuguesa e colonização 

A colonização foi um empreendimento que não só dominou administrativamente os territórios colonizados, tendo explorado os seus recursos de modo ilegítimo e ilegal, mas foi sobretudo um acto de alienação cultural dos nativos (indígenas, no vocabulário do imperialista), que viram as suas tradições inferiorizadas e ridicularizadas; a sua História suspensa e colocada no estado selvagem em que a dominação colonial sempre procurou ter os homens e mulheres oprimidos; e as suas línguas consideradas as mais incultas que existiam, tanto mais que eram denominadas de dialetos, e não propriamente línguas. 

Nos casos da Guiné, Angola e Moçambique, colónias portuguesas, o regime colonial até estabeleceu, por meio de uma lei, as condições para um nativo sair da situação de “indígena” (deixar de ser pessoa não civilizada, conforme ditava essa lei) para a de “assimilado”. Eis que o Decreto-Lei nº 39 666, no seu artigo 56º, estabelece as tais condições que permitiam a um guineense, angolano ou moçambicano, tendo renunciado as suas tradições e as suas culturas, ser considerado cidadão português. Entre as cinco condições indicadas pela lei, aparece, logo na alínea b) do referido artigo, a obrigatoriedade de o indivíduo “falar correctamente a Língua Portuguesa”. Este factor, para além de constituir o fulcro da análise que pretendemos aqui fazer do uso da língua portuguesa para ensino nas escolas do P.A.I.G.C, desde os tempos antes da independência da Guiné e Cabo-Verde, ajuda a compreender até que ponto a mesma língua foi usada, com consciência do poder que uma língua exerce sobre as realizações do homem no seu dia-a-dia, para afastar os homens e as mulheres nativos das suas formas habituais de se comunicarem entre si e com as suas comunidades. 

A respeito dessa lei e do seu carácter injusto, Amílcar Cabral, líder co-fundador do PAIGC e profundo conhecedor da realidade portuguesa, onde estudara o seu curso superior em Agronomia e que o permitiu voltar à Guiné ao serviço do governo português, afirmou o seguinte:

99,7 % da população africana de Angola, Guiné e Moçambique é considerada “não civilizada” pelas leis coloniais portuguesas e 0,3% é considerada “assimilada”. Para que uma pessoa “não civilizada” obtenha o estatuto de “assimilado”, tem de fazer prova da estabilidade económica e gozar de um nível de vida mais elevado do que a maior parte da população de Portugal. (CABRAL, 2008: 54)

E quais são essas provas a que Amílcar Cabral refere como condições para ser assimilado? – Tal como aparecem definidas no Estatuto dos Indígenas Portugueses, permitem concluir que, vistas as condições em comparação com a realidade em Portugal, na altura, um “indígena” que se transita para a situação de “assimilado”,

Tem de viver à “europeia”, pagar impostos, cumprir o serviço militar, e saber ler e escrever correctamente o português. Se os portugueses tivessem de preencher estas condições, mais de 50% da população não teria direito ao estatuto de “civilizado” ou de “assimilado”. (idem)

Para além de se revelar injusta e discriminatória, esta lei impõe uma condição linguística claramente prejudicial às línguas nacionais dos territórios ultramarinos sob a dominação portuguesa, porque mesmo que um “assimilado” (repare-se que a lei não diz “civilizado”) não atinja o nível de aceitação igual a de um branco, português de nascença (outro factor analisado por Cabral), nos espaços de convivência reservados aos colonos, o seu novo estatuto permitia-o pelo menos ter um trabalho assalariado, ainda que muitas vezes miserável esse salário, e de não ser tratado como objecto a usar ao prazer do opressor, que era a situação da maioria dos que não gozavam do seu estatuto, ou seja, dos “indígenas”. Daí que se considere a imposição linguística uma das formas de mais facilmente levar os nativos a ver no colono o mais civilizado e culto, porque os iludem com a sua suposta superioridade, através das suas maneiras de ser e ver o mundo, neste caso a sua língua, por ser descrita numa gramática em forma de livro e por conter regras de escrita. Se estes factores podem ser vistos como vantajosos do ponto de vista linguístico para as línguas do colonizador, na nossa perspectiva, não deixam de chamar aos colonizados atenção sobre a necessidade de olharem cuidadosamente para a sua situação de desvantagem linguística, de modo a encontrar formas adequadas de conduzir as suas línguas ao estado de formalização e escrita, permitindo, deste modo, o que seria a sua independência linguística, parte da sua cultura e esta enquadrada na sua luta pela independência, enquanto povo que viu a sua palavra silenciada pelo seu opressor, como diria Paulo Freire. 

Uma herança da colonização

Numa das sessões de seminários com os militantes e dirigentes do P.A.I.G.C, Amílcar Cabral não hesitou em dizer aos seus camaradas que,

O português (língua) é uma das melhores coisas que os tugas nos deixaram, [e explica] porque a língua não é prova de mais nada se não um instrumento, para os homens se relacionarem uns com os outros, é um instrumento, um meio para falar, para exprimir as realidades da vida e do mundo.  (CABRAL, 1974a: 214)

Em concordância com a análise que até aqui fizemos sobre o modo como a língua portuguesa foi usada para dominar, culturalmente, os povos dos territórios colonizados pelo imperialismo português, somos chamados por esta afirmação de Cabral a traçar a seguinte pergunta: o português (língua) terá sido usado no processo colonial como um simples instrumento de comunicação? – A nossa resposta a esta questão é no sentido contrário à afirmação do líder do P.A.I.G.C, porque, considerando a língua um dos mais importantes elementos de expressão cultural de um povo, e voltando à questão de o colonialismo, em todos cantos do mundo em que se viveu, ter reprimido as culturas dos povos dominados, o caso da Guiné-Bissau não foge a esta realidade. Como assevera Paulo Freire, esta consideração de Cabral em relação à língua do colono, talvez tenha sido um dos raros equívocos deste notável combatente na luta pela libertação dos povos africanos sob domínio colonial. (ROMÃO; GADOTTI: 2012, apud FREIRE)

Entretanto, para reforçar a justificação sobre a sua tese, Cabral afirma: “para nós, tanto faz usar o português, como o russo, como o francês, como o inglês, desde que nos sirva, como tanto faz usar tractores dos russos, dos ingleses, dos americanos, etc., desde que tomando a independência, nos sirva para lavrar a terra” (1974a: 217). Mais uma vez, Amílcar Cabral demonstra ter colocado a questão da língua do colonizador no estrito sentido de um instrumento de comunicação, que mesmo sendo, não é a língua mais usada entre os que com ele lutavam pela independência, a massa popular, como vamos mais à frente ver. Além do mais, seria importante notar que enquanto tractores russos, ingleses, franceses, ou até portugueses serviriam apenas para cultivar a terra, a língua portuguesa não apenas servia de um instrumento de comunicação e de construção do saber escolar, mas também uma língua que nos foi imposta pela dominação colonial, uma língua que se nos obrigou a falar por uma lei que colocava as línguas locais e os que só elas falavam numa situação de “não civilizados”, portanto, uma língua que a tal maioria de 99,7% de que nos fala o próprio Cabral não usava no seu quotidiano.

avenida do mercado do Bandim, Bissau, foto de Marta Lança 2019avenida do mercado do Bandim, Bissau, foto de Marta Lança 2019

Nesta matéria, a nosso ver, o argumento mais consistente e aceitável em que Amílcar Cabral podia ter centrado a justificação da escolha que o P.A.I.G.C, com a sua influência sobretudo, fez da língua portuguesa para servir o ensino nas escolas do partido, nas então zonas libertadas, reside na vantagem de esta língua gozar de estudos feitos sobre a sua gramática e da possibilidade que, consequência desses estudos, poder-se usar a sua vertente escrita para o processo de ensino, o que não era o caso das línguas nacionais guineenses. E, na mesma circunstância, a respeito de uma futura instituição de uma língua nacional para o ensino, Cabral afirmou: “até um dia em que, de facto, tendo estudado profundamente o crioulo, encontramos todas as regras de fonética boas para o crioulo, possamos passar a escrever o crioulo” (1974a: 216). Neste argumento, sim, Cabral demonstra, de modo compreensível, como a circunstância obrigava que a língua portuguesa fosse usada para o ensino na Guiné. Porém, deve-se perceber que a diferença entre a nossa perspectiva e a de Amílcar em relação à língua portuguesa reside no facto de ele não apenas considerar a imposição do contexto em que as escolas do P.A.I.G.C funcionavam, mas também olhando a mesma língua como um simples instrumento de comunicação, fazendo perder o seu carácter colonizador. 

Poder-se-á questionar: o que terá motivado Amílcar Cabral a tecer tal argumento a respeito da língua portuguesa? Várias poderão ser as respostas a esta questão, como a que, segundo ROMÃO; GUIDETTI (2012), Paulo Freire terá tido da esposa do líder do P.A.I.G.C e que consistia na necessidade que havia de evitar que os guineenses e cabo-verdianos, sobretudo entre os combatentes, não acentuassem o nível de condenação que terão estado a sustentar em relação a tudo o que era estrangeiro, ou sobretudo do português. De facto, prestando a devida atenção às palavras de Cabral, ele disse: “Devemos saber diante das coisas do estrangeiro, aceitar aquilo que é aceitável e recusar aquilo que não presta. Devemos ser capazes de fazer a crítica” (1974a: 217). Não será essa atitude crítica a que assumimos quando questionamos a posição de Cabral face a esta situação de língua de ensino na Guiné? Quando, para evitar xenofobia, Amílcar Cabral usa a língua portuguesa para apresentar “a única coisa boa” que se herdou do colonizador, ter-se-á esquecido de que a maioria dos guineenses, até mesmo os combatentes a que se dirigia, não compreendiam o português (língua)? – As nossas respostas a estas questões ficam para o exercício que continuamos no ponto seguinte do nosso trabalho.

Em que língua ensinar na Guiné Bissau independente?

Se por um lado Amílcar Cabral defendia que fosse o português a língua de ensino nas escolas da Guiné, mesmo antes da independência, mas nas escolas do P.A.I.G.C, por outro lado era o mesmo que, em muitas ocasiões, analisando o carácter cultural da luta pela independência da Guiné e Cabo-Verde, sustentava que, ao mesmo tempo que lutavam com armas nas mãos, os combatentes da liberdade da pátria praticavam nessa luta uma forma de resistência à cultura que lhes era imposta pelo colono (CABRAL, 1974b). Ora, justamente por esse modo de resistir culturalmente, como na mesma ocasião Cabral teve cuidado de referir, consolidava-se uma identidade cultural guineense que permitia diálogo entre indivíduos de diferentes grupos étnicos, que era o caso dos guerrilheiros do P.A.I.G.C, mas que não usavam a língua portuguesa, nem as suas línguas étnicas para se entenderem. Cabral deixou escapar esta importante realidade: usavam a língua que surgiu do contacto entre os imperialistas e os nativos, o crioulo. Este factor obriga-nos a citar Fanon, afirmando que “quando um povo sustenta uma luta armada ou ainda política contra um colonialismo implacável, a tradição muda de significado” (1961: 233), ou seja, no caso da Guiné-Bissau, fula e mandinga, ou balanta, que mesmo antes da penetração do colono entre as suas comunidades, assim como após essa penetração tinham tido as suas divergências, passaram a coabitar em torno de uma causa nacional, a luta pela libertação, e em que, juntos, desencadeavam uma marcha cultural para edificação de uma nova sociedade, que não seria nem a que existia antes do colonialismo, nem durante a colonização, mas onde, no aspecto de comunhão entre as etnias, existiria uma língua que as mediasse o diálogo, o crioulo.

Na ordem desta dinâmica histórico-cultural, sempre houve quem se posicionasse em defesa de uma prática de ensino fundada nas línguas nacionais, tanto antes, como nos primeiros anos da independência da Guiné-Bissau. Tal é o caso de Paulo Freire que, assessorando uma equipa do Comissariado da Educação (mais tarde Ministério da Educação), sempre aconselhou aos então técnicos de alfabetização e ao próprio Comissário Mário Cabral na importância de se adoptar uma prática educativa baseada na realidade sociocultural do país, não deixando de apontar para os riscos existentes na questão da língua portuguesa para o ensino. 

Olhando para a prática educativa na Guiné-Bissau, desde a sua independência até à data presente, constata-se facilmente estar perante uma realidade de ensino consideravelmente débil, e o fracasso no uso de português como língua através da qual as aulas acontecem nas escolas do país é dos aspectos imediatamente apontados como dos principais responsáveis para esse falhanço, tanto no que toca à metodologia para o seu ensino em consideração à realidade do país, como no que refere ao “choque cultural” que representa. A este respeito, MONTEIRO (1993: 109) afirma:

A disfunção entre a escola e a realidade guineense não é só uma questão de desencontro dos calendários escolar e doméstico-produtivo. Ela exprime-se de forma mais violenta no choque cultural que experimentam as crianças no seu primeiro contacto com a escola: ao entrar pela primeira vez na escola, a maioria das crianças entra num mundo totalmente estranho e distante da vida que habitualmente levava nas suas tabancas.

Este choque a que o autor se refere, verifica-se sobretudo ao nível linguístico e a realidade não é exclusiva aos alunos. Os próprios professores, que eram supostos dominar a ferramenta de comunicação entre eles e os seu educandos, enfrentam sérias dificuldades para se exprimirem em português, sendo frequentemente obrigados a recorrer ao crioulo para se fazerem entender, o que, a nosso ver, legitima o argumento dos que defendem uma reforma no modo de ensino da língua portuguesa, mas sobretudo os que, como nós, defendem que o crioulo seja instituído como a principal língua de ensino nas escolas do país, numa escolha fundamentada na realidade sociolinguística do país.

Desde os primórdios da independência até hoje, a percentagem do número de falantes do crioulo sempre foi superior à do português. Em 1979, de acordo com os dados de Recenseamento geral da população e habitação “apenas 5 a 6% da população nacional falam português; por outro lado, a percentagem dos falantes do kriol atinge 40% da população total da Guiné-Bissau” (ICHINOSE, 1993: 124; apud FRANCISCO). Os dados apresentados por CRUZ (2013: 31, apud COUTO; EMBALÓ) apontam para 13% dos falantes do português e entre 75% a 80% dos falantes do crioulo no total da população guineense. Estes dados demonstram que, para um processo de ensino-aprendizagem que Paulo Freire chamaria de libertária, onde a prioridade seria criar condições de aprendizagem para os professores e alunos se envolverem como actores do processo de construção do conhecimento, ensinando e aprendendo em comunhão, o crioulo é a língua que, histórica e culturalmente, devia servir para a comunicação no ensino guineense, mesmo que a par de português, que neste caso se assumiria como língua estrangeira que é, no contexto em questão.

Para fechar este ponto do nosso trabalho, nada mais interessante que fazer referência a seguintes versos de Maria Odete Semedo que, em virtude do frequente conflito travado por muitos guineenses consigo mesmos, no que refere à língua a usar nos seus actos de comunicação, apresenta a sua própria experiência, na sua arte de escrever:

Em que língua escrever

As declarações de amor?

Em que língua cantar

As histórias que ouvi contar?

Em que língua escrever

Contando os feitos das mulheres

E dos homens do meu chão?

Para resolver a sua angústia, a poetisa conclui: 

Em crioulo gritarei

A minha mensagem

Que de boca em boca

Fará a sua viagem

Deixarei o recado

Num pergaminho

Nesta língua lusa

Que mal entendo

E ao longo dos séculos

No caminho da vida

Os netos e herdeiros 

Saberão quem fomos (SEMEDO, 1996: 11)

Tal como Amílcar Cabral, para escrever, Odete Semedo não hesita em escolher a língua portuguesa, mas, reconhecendo, “que mal [a entende]”, isto é, que não lhe permitiria comunicar-se com a sua gente, o povo, na maioria, e, por isso, “em crioulo [gritará]” a estes, porque nesta língua se entendem, ainda que apenas por oralidade.

   A mesma análise faz Amílcar Cabral, referindo-se ao exercício de escrita literária que muitos dos seus camaradas, considerados por ele de minoria pertencente à “pequena burguesia”, faziam na tentativa de se opor, através da arte, à dominação colonial e de, assim, expressar a sua identidade, enquanto autóctones. No entanto, como sublinha Cabral, utilizando “precisamente para essa expressão a linguagem e a língua da potência colonial, só excepcionalmente consegue influenciar as massas populares, em geral iletradas e familiarizadas com outras formas de expressão popular” (2008: 224-225). Não seria o mesmo défice de alcance ao público-alvo o que se verificaria na escolha da “língua da potência colonial” para o ensino na Guiné?

Considerações finais 

Considerando que a questão da língua de/para ensino sempre foi uma preocupação no contexto educativo guineense, devido não só à sua conhecida diversidade linguística, resultado da sua diversidade étnica, mas também (e sobretudo) dado à escolha que se fez da língua portuguesa como a única língua para servir o processo educativo de um contexto em que a maioria da população não falava, desde os primórdios da sua independência, e ainda hoje não fala esta língua que lhe foi imposta pelo colonialismo; não se esquecendo ainda, conforme lembra Sartre no prefácio ao livro de Fanon, referenciado neste exercício, que, à luz da inestimável violência do colono sobre o colonizado, “nada será poupado para liquidar as suas tradições, para substituir as suas línguas pelas nossas [do colono]; o cansaço, claro, embrutecê-los-á [os colonizados]” (1961: 13-14); para nós, mais do que uma exacerbada aversão à língua do colono, como considerava Cabral a posição dos que defendiam a instituição do crioulo como língua de ensino nas escolas do P.A.I.G.C, a escolha destes interpela à reflexão sobre a legitimidade de os oprimidos olharem para um dos instrumentos da sua alienação com mágoa e, consequentemente, desinteresse e condenação. 

Porém, mesmo sabendo ainda que não pretendemos corrigir a história, nem condenar a escolha que Cabral e seus camaradas fizeram, dentro das possibilidades que se lhes colocavam à vista, sobretudo compreendendo o facto de a língua portuguesa gozar do aspecto formal que nenhuma língua nacional guineense possuía, consideramos que:

  • Para um processo de ensino-aprendizagem que pretendia não apenas inscrever-se no processo de reconstrução do país, mas também servir ao projecto de libertação dos povos da Guiné e Cabo-Verde de todas as formas de alienação, o crioulo, a sua língua de unidade nacional e que marca um longo curso da sua dinâmica sociocultural, devia servir, ao lado de português, de língua de aprendizagem desses povos, o que vai mais longe do que a vantagem da descrição gramatical do português;
  • Atendendo à necessidade de estudar as línguas nacionais guineenses, sobretudo o crioulo, e fixar as suas regras de escrita, para melhor servir como a principal língua de ensino-aprendizagem na Guiné-Bissau, urge que as autoridades responsáveis pela prática educativa orientem a sua política linguística nesse âmbito e deixar de contribuir para o agravar do perigo de “substituir a língua de uma comunidade pelo idioma de um outro grupo” (ICHINOSE: 1993: 129) e continuar a fazer acreditar na falsa inferioridade das línguas africanas, em termos estritamente linguísticos, às línguas europeias;
  • Entre muitas reformas de que necessita o sector educativo guineense, para o que refere ao domínio de língua de ensino, concordamos plenamente com a observação de MONTEIRO (1993: 112), advogando para:

[a] decisão de ensinar em línguas nacionais, especialmente em crioulo, durante os primeiros anos da escolaridade, transformando o português em uma matéria de ensino como as outras, nessa fase; introdução corajosa das medidas pedagógicas e administrativas que permitam a aplicação sem tardar dessa decisão.    

Não se trata de nacionalismo exacerbado da nossa parte, mas de uma constatação fiel à dinâmica sociocultural do contexto guineense, em que o próprio Cabral se dirigia aos seus camaradas e alunos das escolas do partido geralmente em crioulo; e em que os professores, ainda hoje, dirigem as suas aulas com recurso a esta língua nacional, sempre que pretenderem tornar as aulas mais interactivas, com maior envolvimento dos seus educandos.

FONTES

CABRAL, Amílcar, 2008 – Amílcar Cabral. Documentário. Lisboa: Edições Cotovia.

CABRAL, Amílcar, 1974a – P.A.I.G.C: Unidade e Luta. Lisboa: Nova Aurora. 

CABRAL, Amílcar, 1974b – Nação Africana Forjada na Luta. Lisboa: Nova Aurora.

Diário do Governo. Lisboa, nº 110/1954, 20.05.1954.

FREIRE, Paulo, 1978 – Cartas à Guiné-Bissau: registos de uma experiência em processo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

BIBLIOGRAFIA

CRUZ, Abdelaziz Vera, 2013 - Abordagem Comunicativa – Enfoque na Competência Oral na Língua Segunda. Caso da Guiné-Bissau. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto (Dissertação de Mestrado em Português Língua Segunda / Língua Estrangeira.

FANON, Frantz, 1961 – Os Condenados da Terra. Lisboa: Editora Ulisseia. 

ICHINOSE, Atsushi – “Vinte anos de independência. Vinte anos de língua oficial portuguesa”, in AUGEL, Johannes; CARDOSO, Carlos (coord.) – Guiné-Bissau. Vinte Anos de Independência. Bissau: INEP, 1993, p. 123-130. 

MONTEIRO, João José – “O ensino guineense – a democratização ameaçada”, in AUGEL, Johannes; CARDOSO, Carlos (coord.) – Guiné-Bissau. Vinte Anos de Independência. Bissau: INEP, 1993, p. 105-121. 

ROMÃO, José Eustáquio; GADOTTI, Moacir, 2012 – Paulo Freire e Amílcar Cabral: a descolonização das mentes. São Paulo: Editora e Instituto Paulo Freire.

SEMEDO, Maria Odete Costa, 1996 – Entre o ser e amar. Bissau: INEP.      

por Sumaila Jaló
A ler | 2 Junho 2019 | Amílcar Cabral, Guiné Bissau, língua portuguesa, lusofonia