Negro, entre pintura e história

Pode um branco e europeu representar um negro e um afro-brasileiro? Esta questão, colocada por António Pinto Ribeiro em 2006 (1), poderia ter sido o mote para a obra Noir, entre peinture et histoire, agora publicada em França, que nos leva num périplo pela pintura europeia do século XV ao início do século XX, à descoberta do modo como o europeu, pintor ou encomendador da pintura, via, entendia e representava as pessoas negras. 

Bonheur d’Amour Prussien | 1890 | Emil DoerstlingBonheur d’Amour Prussien | 1890 | Emil Doerstling

A questão da representação do negro na arte ocidental não é nova. Coloca-se de um modo consistente a partir dos anos 60 do séc. XX, com o projeto de pesquisa pioneiro impulsionado e patrocinado pelos colecionadores Jean e Dominique De Menil, que levou à recensão de cerca de 30.000 imagens, desenho, gravura, pintura, escultura, fotografia, base para a posterior publicação de vários volumes abundantemente ilustrados e para uma base de dados, disponível online no Hutchins Center for African & African American Research. No entanto, ao contrário dos Estados Unidos e dos países anglosaxónicos, em França, como noutros países da Europa Ocidental, a representação de negros na pintura europeia, e as reflexões que daí decorrem, permaneciam um tema pouco estudado. Até à década de 80 a bibliografia existente é escassa, reveladora do pouco interesse que estas questões suscitavam. Em 1969 Ignacy Scachs publica L’image du Noir dans l’art européen, onde faz uma primeira abordagem do tema, mas obras de caráter monográfico ou catálogos, são praticamente inexistentes. Esta lacuna foi o ponto de partida para o livro Noir, entre Peinture et Histoire.

Os autores, Naïl Ver-Ndoye, de ascendência africana e Grégoire Fauconier, europeu, ambos professores no ensino secundário, confrontaram-se com a ausência de informação sobre a representação de homens e mulheres negros na pintura europeia, o que os levou a interrogações muito objetivas: quem eram as pessoas representadas, o que motivou a sua representação, e porque é que na pintura raramente tinham uma identidade individualizada. Questões que, parecendo simples, são profundamente complexas, e que Jean Genet exprime na interrogação “Qu’est-ce que c’est donc un Noir? Et d’abord, c’est de quelle couleur?” (o que é um Negro e, antes de mais, de que cor é?), frase que os autores escolheram para a primeira página do livro.

Ao longo de quatro anos, os dois professores estudaram cerca de 5000 pinturas europeias com a representação de negros, nos mais variados contextos, das quais selecionaram as 300 apresentadas em Noir. Entre peinture et Histoire. A obra, com uma clara componente pedagógica, estrutura-se de um modo simples e acessível, dirigindo-se a um vasto leque de público, leigo, curioso, amador, estudante ou especialista. Através de uma seleção diversificada de pinturas, com uma descrição e explicação iconográfica detalhadas, o leitor vai ao encontro de uma presença até então quase sempre anónima e praticamente “invisível” na História da Arte, apesar de, a partir do século XIV, os mais reconhecidos pintores europeus terem representado africanos. 

Um dos aspetos particularmente interessantes deste livro é a abordagem simples, pragmática e objetiva, mas simultaneamente sensível e multidisciplinar do tema. Através da história da pintura trilha-se um caminho de análise e de reflexão, não só sobre os contextos em que se representam determinadas pessoas, neste caso específico, pessoas de pele negra, mas também sobre a própria identidade e história dessas pessoas. Os autores seguem uma abordagem transversal, independente de preconceitos e de ideias feitas. Atentos às problemáticas inerentes à colonização, de forte presença na atualidade, não se cingem a temáticas como a escravatura, a ocupação e a exploração de África pela Europa ou a relação dominante – dominado / branco – negro.  Pelo contrário, tentam perceber objetivamente como e em que enquadramentos é que o pintor europeu representou homens e mulheres negros.

Na qualidade e variedade temática das obras escolhidas, num leque cronológico de cinco séculos, os temas colocam-nos perante o papel da arte, e nomeadamente da pintura, relativamente aos preconceitos sociais e às mentalidades vigentes. Na realidade, todas as obras foram realizadas por pintores europeus, na sua maioria de países que colonizaram os territórios de origem dos africanos representados. E todas as iconografias, que se trate de um simples retrato, de uma narrativa histórica ou de uma representação religiosa ou alegórica, revelam na representação do negro, questões de mentalidade, de conhecimento, de identidade, memória, preconceito, relação entre dominante e dominado, colonização, escravatura, religião ou crenças, traduzindo ao mesmo tempo o modo como o pensamento europeu entendia e aceitava a emancipação dos negros. Não podemos esquecer que as iconografias são quase sempre indissociáveis da própria história da pintura, que entre o século XV e o século XIX é realizada essencialmente para uma elite, o que condiciona também o tipo de narrativa e representação.

As obras foram organizadas em 10 temas, que correspondem aos 10 capítulos do livro: - Alegoria de um território, Religião, Corpo, Escravatura, Figuras políticas, Vida Doméstica, Talentos, Guerra, Vida Quotidiana e Presença negra. Na ampla abrangência deste leque temático, ilustram-se vivências reais ou imaginárias, contam-se histórias, revelam-se identidades. Na descrição das obras, na descodificação iconográfica, na leitura multidisciplinar que se propõe, vai-se desdobrando um espaço de reflexão para questões transversais, inerentes ao olhar da Europa para África e para outras regiões que colonizou, à relação entre brancos e negros, e também à relação entre a própria pintura e o contexto social e cultural em que o pintor europeu ou o encomendador da pintura se interessavam pela representação do negro.

Na análise de cada uma das obras, o texto interpela, suscita novas questões, sensibiliza para uma abertura ao “outro”, ponto que os dois professores referem como um dos objetivos do livro.

Nesta seleção e estrutura, houve também a vontade de mostrar que, paralelamente às questões de racismo, há exemplos que vêm “quebrar o edifício da intolerância” e suscitar uma visão mais ponderada sobre a história e a complexidade dos contextos da existência humana. Alguns retratos ilustram este propósito. É o caso, por exemplo, de Ayouba Diallo, retratado em 1733 por William Hoare de Bath, cuja história se integra no capítulo Escravatura. Homem culto, originário do Senegal, Diallo nasce no início do século XVIII. Africano, negro, ele próprio comerciante de escravos, é raptado e vendido como escravo, acabando por trabalhar numa plantação nos Estados Unidos. Entre as mais diversas vicissitudes e aventuras, acaba por ser comprado pela African Company (um dos pilares do comércio de escravos), e enviado para Inglaterra. Aí, a sua cultura, o seu conhecimento de línguas, aproximam-no das elites londrinas que assumem a sua proteção e se cotizam para comprar a sua liberdade e lhe permitirem regressar ao Senegal. Esta narrativa, é uma das muitas que resulta das pesquisas feitas pelos autores e que mostram como a histórias das pessoas, independentemente da cor da pele, é complexa e se estrutura numa imbricada relação entre as mais paradoxais circunstâncias e interesses. O livro assumese também como um contributo para um conhecimento mais objetivo da identidade e diversidade europeia e africana, e também para uma sensibilização à Arte como meio de acesso à História. Os dois professores pensaram particularmente nos muitos jovens estudantes de origem africana, com que lidam quotidianamente, e que não têm qualquer ligação com a arte ocidental. Uma das suas preocupações foi aproximar os alunos da arte e mostrar como a pintura reflete temas, sentimentos ou situações intemporais, e por isso sempre atuais, e como pode ser entendida por todos, independentemente de contextos sociais. Muitas das obras escolhidas, de séculos anteriores, transportam-nos para problemáticas atuais, como o impressionante retrato “Le garçon noir” (o rapaz negro), pintado em 1844 por William Lindsay Windus (1822-1907). O pintor captou com profunda intensidade a solidão, a resignação e o olhar triste de uma criança negra, anónima, vestida com roupas esfarrapadas, que teria encontrado a deambular pelas ruas de Liverpool onde chegara depois de atravessar o Atlântico num barco clandestino.

Mas, e este ponto é também relevante, antes de entrarem na questão da Arte, e da História, os autores enquadram a problemática da identidade e da representação do negro em diversas vertentes. Começam pela questão sensível da nomenclatura, da designação, que ao longo de cinco séculos conheceu múltiplas versões, muitas delas de conotação pejorativa, mas todas reveladoras, ainda nos dias de hoje, da dificuldade em olhar o não europeu, o negro, e de o designar através da cor (Etre noir - pag. 6-7). Foi justamente esta dificuldade que levou a um léxico muito diversificado, variável segundo as regiões colonizadoras, questão que é tratada especificamente em relação à língua francesa e às colónias francófonas. Os autores debruçam-se muito concretamente sobre a problemática da cor fazendo uma síntese das questões linguísticas que traduzem o desconforto em assumir e designar a cor da pele. Não se cingem à origem africana. Explicam muito concretamente que o fio condutor da pesquisa que fizeram é a representação do negro na pintura. Para o pintor, a questão fundamental não era o léxico nem a designação, mas sim a representação anatómica e cromática, também brevemente abordada (Noir en peinture - pag. 9), em questões como a obtenção dos pigmentos para as várias gamas de cor da pele, o estudo da luz na pele negra, as gradações de tons nas diferentes partes do corpo ou a configuração anatómica do rosto. 

Portrait d’une négresse | 1800 | Marie-Guillemine Benoist Portrait d’une négresse | 1800 | Marie-Guillemine Benoist Todos estes temas são apresentados de um modo simples, em pequenas sínteses, mas sempre de modo a abrir um espaço de debate para um desenvolvimento mais profundo, como a dualidade subjacente ao conceito de negro que “contrariamente ao que se pensa não é apenas uma questão de pele (…)”, mas sim uma questão de vivência e de cultura. O albino de origem africana, não se vê a ele próprio, nem é visto pelos outros, como um branco, mas sim como um negro. Na seleção de pinturas, a problemática ilustra-se no retrato do jovem Benedetto Silva d’Angola, pintado em 1709 por Antonio Franchi (1638-1709), identificado na pintura como “Mouro branco” filho de “pai e mãe negros”, ou em narrativas da antiguidade, como a história de Teágenes e Claricleia, escrita por Heliodoro de Emeso no séc. III. Filha do rei da Etiópia, negro, Claricleia nasce branca e procura desesperadamente a sua filiação, revelando uma mancha de pele negra que tem no braço. Esta história, que convoca a questão da busca de identidade, inspirou o pintor Karel van Mander (1606-1670) que num conjunto de pinturas ilustrou vários capítulos, imaginando todo um universo exótico em torno da Etiópia e dos seus habitantes.

As dez temáticas reunidas nos capítulos do livro, pelo elo comum entre todas - a representação de negros - não se limitam a ilustrar uma parte pouco conhecida da História da Arte. Ao mesmo tempo, na paleta de temas e na ligação que estabelece entre as suas diversas vertentes, iconografias, história das pessoas, enquadramento da narrativa, contexto histórico, alegórico, verídico ou imaginário, consolidam a vertente de uma História da Arte que se desenrola em paralelo com uma História Social e que relaciona de um modo muito concreto o universo da representação com a História das mentalidades. É através da arte, nos diversos modos de representação, que o leitor vai descobrindo como ao longo dos tempos a perceção do “outro” vai mudando… ou não. Entre o século XV e o início do século XX, a iconografia do negro na pintura europeia representa em grande parte figuras anónimas, ao serviço do europeu, figuras imaginadas pelo pintor, em cenários de exotismo, ou figuras alegóricas, como a representação do continente Africano, alegoria que exerce uma forte sedução nos pintores nos séculos XVI e XVII. Raramente o africano, o negro, é pintado por ele próprio, pelas suas qualidades individuais.

A explicação iconográfica das obras é simultaneamente uma análise crítica que, enquadrada nesta perspetiva de história social, se articula com temas de reflexão atuais. No capítulo Alegoria de um território, o subcapítulo “A França no centro do mundo” evidencia a problemática da colonização, atualmente em intenso debate. Nas pinturas de Louis Bouquet, realizadas em 1931, a colonização é representada como uma missão idílica, favorável aos africanos, que beneficiavam deste modo dos “benefícios” da cultura e civilização francesas. O texto leva o leitor a observar atentamente as pinturas de modo a tornar percetível o modo como a sua iconografia oculta constantemente as questões da exploração e da violência inerentes à colonização. Numa das obras, intitulada “Apolo e a sua musa negra”, representa-se numa absurda amálgama temática, o deus grego Apolo a tocar a sua lira, rodeado de africanos nus a dançar, no meio de animais selvagens, imagem que correspondia ao estereótipo do “selvagem feliz”, apresentado na exposição colonial de 1930. Na pintura “Recordação do Museu das Colónias”, igualmente de Bouquet e também realizada em 1931, o arquiteto, o decorador do museu e outras figuras da “boa sociedade” francesa, são representados acompanhados por uma mulher negra, nua, despojada de qualquer atributo que a ligue à ideia europeia de “civilização”.

Nos vários capítulos do livro, cada pintura é um ponto de partida para aprofundar o tema para lá da história da pintura e fazer emergir novas questões. No tema Religião, o retrato do abade Moussa, pintado em 1847 por Pierre-Roch Vigneron, é o mote para relembrar a problemática da aceitação pela igreja da atribuição de cargos eclesiásticos a pessoas negras. Alicerçando-se no princípio que, sendo nativos, os negros teriam mais facilidade em evangelizar os nativos, é com base nesta argumentação que se vão buscar crianças senegalesas, a fim de as educar num seminário e, dentro do programa de colonização levado a cabo pelos Estados europeus, dar início a um clero “autóctone” nas regiões colonizadas. No capítulo O Corpo, através da representação que o europeu faz do africano, oscilando entre o fascínio do corpo negro, sensual, vigoroso, musculado, e a representação depreciativa, que o vê como um corpo objeto, ou corpo diabólico levantam-se questões inerentes à colonização e ao racismo como as teorias sobre a desigualdade das raças. Aqui destaca-se a obra do holandês Christiaen van Couwenbergh, realizada em 1632, intitulada “O rapto da negra”, com a representação de uma mulher negra violentada por três homens brancos, iconografia rara na pintura seiscentista, sobretudo numa obra de grandes dimensões. Num texto simples, conciso, chama-se a atenção para todo um campo de reflexões sobre a condição humana, a injustiça, a violência e o racismo. São várias as obras que ilustram este capítulo, com abordagens diferentes do negro na perspetiva do corpo. Iconografias que ilustram o confronto entre o corpo negro e o corpo branco, em temas religiosos, como na representação de Betsabé no banho, ajudada por uma escrava negra, um dos primeiros nus de mulher africana, pintados em finais do século XVI por Cornelis Corneliszoon van Haarlem (1562-1632), ou já numa visão romântica e exótica, como na obra “Banho turco”, pintada em 1870 por Jean-Léon Gérôme (1824-1904), em que o corpo da escrava negra, musculado, contrasta com a anatomia da mulher branca, ou ainda no belíssimo “Retrato de uma negra”, pintado em 1800, uma das obras-primas da pintora francesa Marie-Guillemine Benoist.

Através de 28 pinturas, de ampla abrangência iconográfica, realizadas entre o início do século XVIII e finais do século XIX, o capítulo Escravatura relembra como a relação entre a Europa, a África e a América foi profundamente marcada pelo comércio de escravos, e retraça momentos representativos da história da escravatura, sobretudo nas colónias francesas, até à sua abolição em 1794. Através de dois retratos, o já referido retrato de Ayouba, e o retrato de William Ansah Sessarakoo, pintado em 1749 por Gabriel Mathias (1719-1804), chama-se a atenção para aspetos menos conhecidos, como a intervenção de negros no comércio de escravos. Ambos os retratados foram comerciantes de escravos, mas sendo negros acabaram por também ser vendidos como escravos. Ansah, originário do Gana, filho de um comerciante de escravos e ele próprio também negreiro, envia os filhos para Inglaterra par terem uma educação europeia. Nas Caraíbas o capitão do barco em que viajava mistura-o aos restantes negros e Ansah é vendido como escravo ficando nessa condição vários anos até ser reconhecido por um comerciante da sua etnia e libertado.

A recolha iconográfica de retratos, no capítulo Figures Politiques, abre o leque temático para áreas até agora menos conhecidas e estudadas, como a da representação de figuras políticas negras ou mestiças muito antes da época contemporânea. Em cada retrato a história que nele se descobre é sempre uma proposta para uma reflexão múltipla e aberta. Através de um dos mais antigos retratos europeus de um nobre africano vestido à ocidental, pintado cerca de 1643, ficamos a conhecer Dom Miguel de Castro, de origem angolana, enviado para o Brasil, a fim de mediar a relação diplomática com os países-baixos. Mais recente, o retrato de Jean-Baptiste Belley, deputado em Santo Domingo convoca a complexa relação entre o poder e a escravatura. De origem senegalesa, Jean-Baptiste foi vendido como escravo para trabalhar nas plantações da ilha dominicana. Consegue comprar a sua liberdade, entra no exército francês, enriquece, ganha algum poder, e ao regressar a Santo Domingo torna-se ele próprio proprietário de escravos. Após a Revolução francesa, com a abolição da escravatura, regressa novamente à ilha, desta vez, como deputado para representar os negros.

O capítulo sobre a vida doméstica destaca-se pela qualidade do levantamento iconográfico, com obras do século XVII ao início do século XX, através das quais se retraça a presença na Europa de muitos jovens negros, comprados, trocados, oferecidos, para servir a alta sociedade. Muitas vezes associados ao exotismo de países longínquos, e ao poder que isso simbolizava, são representados com luxuosos turbantes, acompanhados de um macaco ou de um papagaio, ou a servir café, proveniente das plantações cultivadas por escravos. Seguem-se os capítulos consagrados ao Talento, à guerra, à vida quotidiana. No capítulo consagrado à guerra, os autores destacam a pintura de Félix Vallotton “Soldados senegaleses no campo de Mailly”, realizada em 1917. Através desta pintura abordam a problemática dos inúmeros soldados africanos que morreram pela França, no quase absoluto anonimato e amnésia geral, questionando a desmemorização que se abateu sobre o papel destes combatentes. No capítulo sobre a vida quotidiana uma das obras em destaque é a pintura de Emil Doerstling, “Bonheur d’amour Prussien”, que retrata Gustav Sabac el Cher, negro mestiço, e uma jovem branca, de pele muito clara e olhos verdes. O pintor captou o contraste entre a cor da pele de ambos e a expressão de felicidade que os une. Como nas restantes obras, a imagem é o ponto de partida para outras questões, e neste caso para relembrar, por um lado, o apartheid que a Alemanha impunha no seu império colonial e que levou ao genocídio dos Herero e dos Nama, na região da atual Namíbia e por outro, alertar para os paradoxos da humanidade: os dois filhos de Gustav fizeram parte do exército alemão durante o regime nazi. O capítulo “Presença negra”, reúne uma série de iconografias muito diversas, pelos temas e épocas. Das 27 obras apresentadas destacamse as três pinturas seiscentistas com vistas de Lisboa, a “cidade mais africana da Europa”. Até 1791 chegaram a Portugal cerca de 400.000 escravos africanos.

Concluindo, Noir. Entre Peinture et Histoire situa-se entre a História e a História da Arte. A partir do olhar de pintores brancos, europeus, o livro dá visibilidade a homens e mulheres negros, cujo percurso de vida muitas vezes singular, permaneceu quase sempre invisível e anónimo. A pintura é o ponto de partida para a recuperação de memória. Memória de pessoas, de vivências e de situações, indissociáveis dos contextos de colonização que marcam as relações entre África e a Europa e que ainda hoje têm fortes consequências nas mentalidades, suscitando sentimentos controversos. Talvez por isso os autores tenham tido tanta dificuldade em encontrar um editor para esta obra (contactaram mais de 30 editores). O termo “Negro” era considerado um problema. Os editores achavam que não era “um tema francês”, que não haveria público interessado, ou que seria muito difícil fazer a divulgação porque “o público francês não estava preparado”. O livro foi editado em 2018 pela Omniscience, editora independente fundada em 2005.

 

VER-NDOYE, Naïl; FAUCONIER, Grégoire, Noir. Entre Peinture et Histoire. Ed. Omniscience, 2018. ISBN 979-10-97502-00-3 ________________ (1) Pinto Ribeiro, António, “Exposição como representação”. In Réplica e Rebeldia, Catálogo de Exposição, Lisboa 2016, pag. 9 ________________

 

MEMOIRS é financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (ERC) no âmbito do Programa-Quadro Comunitário de Investigação & Inovação Horizonte 2020 da União Europeia (n.º 648624) e está sediado no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra. 

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por Ana Paula Rebelo Correia
A ler | 10 Julho 2019 | História, Memoirs, negro, pintura