O apartheid na África do Sul não morreu
A teoria racista do “desenvolvimento separado” seguiu uma linha que vai dos primeiros monopólios da De Beers até à Marikana de hoje. Inspira-se numa ordem global dos “livres mercados” mantida pela força.
O assassínio de 34 mineiros pela polícia sul-africana, a maioria atingida pelas costas, acaba com a ilusão da democracia pós-apartheid e revela o novo apartheid mundial do qual a África do Sul é modelo tanto histórico como contemporâneo.
Em 1984, muito antes da infame expressão afrikaans antecipar “desenvolvimento separado” para a maioria do povo da África do Sul, um inglês, Cecil John Rhodes, supervisionou o Acto Glen Grey na então Colónia do Cabo. Fora ele preparado para forçar os negros da agricultura a formarem um exército de mão-de-obra barata, principalmente para as minas de oiro recentemente descobertas e outros minerais preciosos. Como resultado deste darwinismo social, a empresa De Beers de Rhodes desenvolveu-se rapidamente num monopólio mundial, tornando-o fabulosamente rico. Alinhando com o liberalismo na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, foi celebrado como um filantropo apoiante de causas nobres.
Hoje, a bolsa Rhodes na universidade de Oxford tem prestígio entre as elites liberais. Os bolseiros Rhodes vencedores devem demonstrar “força de carácter moral” e “simpatia pelos fracos e sua protecção, gentileza, modéstia e camaradagem”. O antigo presidente Bill Clinton foi um deles, o general Wesley Clark que dirigiu o ataque da Nato à Jugoslávia foi outro. O muro conhecido por apartheid foi erguido para benefício dos poucos pelo menos mais ambiciosos da burguesia.
Linha de Transmissão
Foi uma espécie de tabu durante anos de apartheid social. Os sul-africanos de ascendência britânica podiam gozar de indulgência pelo seu desprezo pelos boers, desde que mantivessem a fachada atrás da qual um sistema inumano garantia privilégios com base na raça e, mais importante ainda, na classe.
A nova elite negra na África do Sul, cuja importância e influência tinham vindo a crescer consistentemente durante os últimos anos do apartheid racial, compreendeu que papel tinha a desempenhar a seguir à “libertação”. A “missão histórica” de tais elites, segundo escreveu Frantz Fanon em Os Condenados da Terra, “não tem nada a ver com a transformação do país, consiste prosaicamente em constituir a linha de transmissão entre o país e um capitalismo imparável, ainda que camuflado”.
Isto aplicado a figuras de proa do Congresso Nacional Africano (ANC), como Cyril Ramaphosa, dirigente da União Nacional dos Mineiros e hoje empresário milionário, que negociou um acordo de partilha de poder com o regime de F. W. de Klerk e com o próprio Nelson Mandela, cuja devoção a um “compromisso histórico” assegurou que a libertação da pobreza e iniquidade para a maioria fosse demasiada libertação. Tornou-se isto claro logo em 1985, quando um grupo de industriais sul-africanos encabeçados por Gavin Relly, presidente da empresa mineira Anglo Americana, se encontrou com proeminentes funcionários do ANC na Zâmbia, concordando ambas as partes efetivamente que o apartheid racial seria substituído por um apartheid económico, conhecido por “livre mercado”.
Tiveram lugar depois encontros secretos numa imponente mansão em Inglaterra, a Mells Park House, na qual um futuro presidente de uma África do Sul libertada, Thabo Mbeki, beberricou whisky de malte com os presidentes de empresas que tinham sido a base do apartheid racial. O gigante britânico Consolidated Gold Fields forneceu a reunião e o whisky. O objetivo era separar os “moderados”, como Mbeki e Mandela, de uma multidão das cidades crescentemente revolucionária, que evocava memórias de levantamentos a seguir ao massacre de Sharpeville em 1960 e no Soweto em 1976 sem a ajuda do ANC.
Uma vez Mandela libertado da prisão em 1990, a “promessa inquebrantável” do ANC tomar o controlo do capital monopolista foi raramente ouvida depois disso. Na sua volta triunfante pelos EUA nesse verão, Mandela disse em Nova Iorque: “O ANC reintroduzirá o mercado na África do Sul.” Quando entrevistei Mandela em 1997, com ele então presidente, e lhe lembrei a promessa inquebrantável, ouvi em termos sem ambiguidade: “A política do ANC é a privatização.”
Envolvidos no ambiente cálido da linguagem empresarial, os governos de Mandela e Mbeki seguiram as pistas indicadas pelo Banco Mundial e pelo FMI. Enquanto o fosso entre a maioria a viver sob telhados de zinco e sem água corrente e a elite negra nova-rica nas suas propriedades vedadas se tornou um abismo, o ministro das finanças Trevor Manuel era elogiado em Washington pelos seus “resultados macroeconómicos”. Segundo apontou George Soros em 2001, a África do Sul tinha sido entregue nas “mãos do capital internacional”.
Pouco depois do recente massacre dos mineiros, contratados por uma miséria numa perigosa mina de platina registada no Reino Unido, a erosão da independência económica da África do Sul ficou demonstrada quando o governo do ANC de Jacob Zuma parou a importação do Irão de 42 por cento do seu petróleo, sob intensa pressão dos EUA. O preço da gasolina já subiu a pique, empobrecendo ainda mais o povo.
Mal menor
Este apartheid económico repete-se agora através do mundo à medida que os países pobres aceitam exigências dos “interesses” ocidentais opostas aos seus próprios. A chegada da China como concorrente aos recursos de África, embora sem as ameaças económicas e militares dos EUA, deu mais um pretexto para a expansão militar dos EUA e a possibilidade de guerra mundial, conforme demonstrado no recente orçamento militar de Obama de 737,7 mil milhões de dólares. O primeiro presidente afro-americano da terra da escravatura preside a uma economia de guerra perpétua, de desemprego em massa e de liberdades civis eliminadas: um sistema que não põe objecções a negros ou castanhos desde que sirvam a classe certa. Os que não aceitam sujeitam-se ao cárcere.
Esta é a via sul-africana e americana, da qual Obama, filho de África, é a corporização. A histeria liberal de que o candidato presidencial republicano Mitt Romney é mais extremista que Obama não é mais que a conhecida promoção do “menor-malismo” e não muda nada. Ironicamente, a eleição de Romney para a Casa Branca é susceptível de despertar a oposição de massas nos EUA, cuja extinção tem sido o singular êxito de Obama.
Embora Mandela e Obama não possam ser comparados – um é uma figura de forte personalidade e de coragem, o outro uma criação pseudo-política – a ilusão de que ambos acenam a um novo mundo de justiça social é semelhante. Pertence a uma grande ilusão que relega toda a aventura humana a um simples valor material e que confunde media com informação e conquista militar com fins humanitários. Só quando derrotarmos estas fantasias começaremos a acabar com o apartheid pelo mundo.