O avesso dos arquivos dos outros

Onde se encontram o comum e o estranho? Como combinar a perspectiva sócio-histórica da memória com a experiência singular e individual? É possível retomar fatos da história e, ao mesmo tempo, recusar a monumentalização do passado? Em Museu do estrangeiro, o artista Ícaro Lira interpela a narrativa histórica brasileira, em específico o debate sobre os fluxos migratórios no país, envolvendo uma multiplicidade de sujeitos, espaços e tempos em sua montagem poética de materiais coletados. Do latim extraneus, ou seja, “estranho, de fora”, o termo “estrangeiro” contempla na obra de Ícaro os inúmeros deslocamentos de pessoas vindas de origens distintas, desde a região nordeste do Brasil assim como regiões além-mar, como Palestina e Congo. Em construção desde 2015, o projeto teve sua última versão exposta no 20Festival de Arte Contemporânea Videobrasil, realizado no Sesc Pompeia, em São Paulo, entre outubro de 2017 e janeiro deste ano. Na ocasião, além dos fragmentos das vidas migrantes reunidos por Ícaro - materializados em recortes de jornais, imagens, objetos pessoais, entre outros - e dispostos em relação com publicações realizadas pelo artista, livros, documentos e vídeos, estão expostas também obras de artistas imigrantes e refugiados convidados a participarem dessa montagem, a saber: Alaa Kaseem, Alex André, Akon Patrick, Ana Pato, Beatriz Lemos, Carolina Câmara, Clarisse Mujinga, David Up Timber, Fernanda Taddei, Guilherme Falcão, Hasan Zarif, Isadora Brant, Ícaro Lira, Isam Ahmad Issa, Jennifer Anyuli, Khaled Qasem, Kuta Ndumbu, Lele Di Função, Louides Charles, Luiza Sigulem, Marcela Ignácio, Marta Mestre, Ryan Parker James, Rawa Alsagheer, Rose Satiko, Shambuyi Wetu, Soraya Misleh, Simon Fernandes, Satellite Musique, Sara Ajlyakin, Yannick Dellas e Yudi Rafael. 

O que faz de um museu um museu? O que implica conter tal palavra no título da obra aqui em questão? Esse espaço que surge como uma instituição que, ao mesmo tempo em que coleciona objetos, também regula a produção dos discursos artísticos. Ícaro parece se valer da museologia para, em seguida, torcer esses códigos institucionais da arte. Em entrevista[1], ele afirma:

“O Museu do Estrangeiro é um arquivo fictício, pois não existe. O projeto surgiu como uma tentativa de discutir sobre certas comunidades de imigrantes de São Paulo que percebi que não participam do arquivo, vamos dizer, oficial da cidade. O Museu da Imigração, no Brás [bairro na capital paulista], (…) apresenta somente a imigração europeia e um pouco da japonesa. Mas todos os outros grupos, como os nordestinos, coreanos ou bolivianos, não estão representados no museu. Assim, o meu trabalho aparece como uma resposta a isso, através da criação de um arquivo fictício sobre essas outras migrações. (LIRA, 2017, p. 90)”

Museu do Estrangeiro 20º festival arte contemporânea SESC VideobrasilMuseu do Estrangeiro 20º festival arte contemporânea SESC Videobrasil

            Tal como atua um curador, Ícaro convidou artistas e pesquisadores para construírem juntos como seria esse “museu”. No lugar de uma obra, uma exposição dentro de uma exposição. Em Mining the museum (1992), Fred Wilson executou procedimento análogo ao operado por Ícaro em Museu do Estrangeiro. Na ocasião da exposição do projeto do artista norte-americano, lia-se na fachada do museu Maryland Historical Society, em Baltimore, nos Estados Unidos, que uma outra história estava sendo contada ali dentro. Enquanto isso, nas salas de exposição, Wilson havia desorganizado a narrativa histórica centrada na perspectiva branca ao introduzir instrumentos de tortura e aprisionamento de escravos negros na disposição museográfica. Ambos agem em desacordo com os sistemas de regulação de discurso sobre a história, rompendo com uma determinada ordem hegemônica que organiza e classifica o material colecionado em instituições que contam sobre os fatos do passado.

Em Museu do Estrangeiro, é possível notar a produção de uma historiografia pelas imagens, na qual o regime verbal encontra um novo modo de observar os fatos e conceber o saber, ou seja, é composto um pensamento por imagens. Em Diante da dor dos outros, livro presente na montagem de Ícaro, a escritora norte-americana Susan Sontag afirma: “Lembrar, cada vez mais, não é recordar uma história, e sim ser capaz de evocar uma imagem.” (SONTAG, 2003, p.37). Essa história que se decompõe em imagens compreende o vestígio não como mera evidência ou prova, mas como imagem que retorna, algo que resta quando existe uma ausência. Enquanto o historicismo propõe uma imagem eterna do passado, o materialismo histórico, abordagem metodológica retomada pelo filósofo alemão Walter Benjamin e utilizada aqui para pensar a obra em questão, contempla os fatos no que eles oferecem como experiência única. Assim sendo, em Museu do Estrangeiro retoma-se os acontecimentos que são para cada presente um evento originário, a partir das inúmeras situações individuais ali expostas, como um convite a escavar o acúmulo de matéria da história.

Instalação de Shambuyi Wetu em Museu do Estrangeiro - Sesc Pompeia, São Paulo (2017)Instalação de Shambuyi Wetu em Museu do Estrangeiro - Sesc Pompeia, São Paulo (2017)

 

Na vastidão do inventário produzido por Ícaro está implícito um olhar lançado aos objetos desprezados e aparentemente sem importância para a escrita da história oficial. Um olhar comprometido com os que foram um dia excluídos desse processo. O gesto de apanhar esses objetos é compreendido aqui como um protesto penetrante contra os hábitos positivistas da historiografia. Pedras, imagens e documentos não são apenas arrancados de seu contexto original, mas também inseridos dentro de uma nova ordem orientada pelo presente que demanda essa montagem. Diante do projeto de historiografia proposto por Walter Benjamin, calcado no colecionismo, surge a figura do trapeiro: o “catador” de papéis, trapos e sucatas da Paris do século XIX, cuja atividade se intensificou com a rápida industrialização e maquinação daquela sociedade. Segundo Benjamin, toda paixão faz fronteira com o caos, mas a de colecionar a faz com o caos das recordações (BENJAMIN, 2012, p.233). Para um historiador decididamente materialista como Benjamin, colecionar os restos oferece a textura do teor material das coisas, um jogo de tensão entre os pólos de ordem e desordem com os resíduos da cidade.

Em determinado momento do percurso pelo Museu do Estrangeiro, nos deparamos com um punhado de chaves penduradas na parede; ao lado delas se encontra uma série de fotos pessoais: crianças na praia, uma estrada desconhecida, noivos se casando; abaixo, uma caixinha de madeira fechada; mais adiante, um saquinho com instruções para usar um colete salva-vidas. São vidas anônimas que se tornam visíveis nesses objetos um dia descartados e re-encantados na montagem de Ícaro, que atua aqui como um trapeiro que vasculha os vestígios dessas existências migrantes. As crianças e os velhos que, munidos de uma cesta, um gancho e talvez uma lanterna, recolhiam os restos do dia que havia passado na capital francesa do século XIX apresentam os fragmentos do real daquele tempo e espaço. Em outras palavras: “É pouca coisa Paris vista no cesto do trapeiro… E dizer que tenho toda Paris, ali, naquele balaio…” (PYAT apud BENJAMIN, 2009, p.427)

Instalação de Kuta Ndumbu em Museu do Estrangeiro - Sesc Pompeia, São Paulo (2017)Instalação de Kuta Ndumbu em Museu do Estrangeiro - Sesc Pompeia, São Paulo (2017)Instalação de Kuta Ndumbu em Museu do Estrangeiro - Sesc Pompeia, São Paulo (2017)Instalação de Kuta Ndumbu em Museu do Estrangeiro - Sesc Pompeia, São Paulo (2017)

 

A figura do trapeiro fascinou a sua época e, em específico, o poeta Charles Baudelaire, personalidade emblemática da modernidade, por dar ouvidos às narrativas dos oprimidos e dar cara à atividade do flaneur na cidade. Benjamin dedicou muitas linhas ao trabalho do poeta e, segundo ele, não existia espaço para os “que passam a vida toda nos limites da sociedade e da cidade grande” (BENJAMIN, 1985, p. 103) antes da literatura de Baudelaire. Sobre isso, afirma o poeta:

“ A maioria dos poetas que trataram de assuntos realmente modernos contentou-se com temas estereotipados, oficiais - esses poetas preocuparam-se com as nossas vitórias e com o nosso heroísmo político. (…) E apesar disso tudo, há temas da vida privada que são muito mais heróicos. O espetáculo da vida mundana e de milhares de existências desordenadas que vivem nos subterrâneos de uma cidade grande - dos criminosos e das prostitutas - a Gazette des Tribunaux e o Moniteur [periódicos da época] provam que apenas precisamos abrir os olhos para reconhecer o heroísmo que nos é peculiar. (BAUDELAIRE apud BENJAMIN, 1985, p.102)”

            Trapeiro ou poeta: segundo Baudelaire, o lixo importa aos dois. O mesmo passo que confere o trapeiro ao percorrer as ruas, que “pára no seu percurso, lendo, selecionando e catando o lixo que encontra” (BENJAMIN, 1985, p.104), é o passo do poeta que erra pela cidade procurando restos de rimas. Na historiografia-montagem de Museu do Estrangeiro, a mesma busca por rimas se apresenta, mas aqui nos encontros e desencontros entre os materiais ali dispostos. Em entrevista, Ícaro comenta: “A seleção dos materiais tem um recorte com uma diretriz, uma tomada de opinião sobre o assunto”. Uma possibilidade de escrita da história que passa pela operação de citar a história. Contudo, Ícaro não exerce apenas a posição de copista, mas também se coloca como comentarista. Os gestos de mexer e remexer nos materiais, definir critérios de separação e aproximação, organizar e desorganizar os objetos na montagem inscreve um comentário sobre eles, que os transforma politicamente. A respeito dessa atuação, Benjamin sintetiza: “Ser dialético significa ter o vento da história nas velas. As velas são os conceitos. Porém, não basta dispor das velas. O decisivo é a arte de posicioná-las.” (BENJAMIN, 2009, p.515).

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As técnicas de deslocamento e incorporação estão presentes nas obras de arte desde a elaboração das propostas de ready-made, de Marcel Duchamp. Nesse momento, os signos não mais se fixavam objetivamente com um significado, uma vez que eram colocadas em destaque as inúmeras possibilidades subjetivas de significação. Em Museu do Estrangeiro, soma-se às significações do lugar original dos signos as sobreposições de outros significados que surgem a partir dos choques e estranhamentos da montagem, ao inserir os objetos dentro de uma nova ordem que conecta diferentes agoras. Segundo Benjamin, o conceito fundamental do materialismo histórico não é o progresso, e sim a atualização (BENJAMIN, 2009, p.502). Dessa forma, a história não é compreendida como uma continuidade cronológica dos fenômenos, sendo assumida, assim, uma noção anacrônica do devir histórico. No livro Passagens, Walter Benjamin afirma: “A historiografia materialista não escolhe aleatoriamente seus objetos. Ela não os toma, e sim os arranca, por uma explosão, do curso da história.” (BENJAMIN, 2009, p.517) Assim sendo, a transformação crítica do presente em Museu do Estrangeiro, que pressupõe o movimento de atualização dos eventos ocorridos, advém do desvio dos materiais do cotidiano para o espaço da arte, expondo a multiplicidade de imagens e tempos contida nos objetos. O gesto do atualizador não hesita em cortar e recortar o seu objeto de estudo, gerando contrastes dialéticos, que expõem um diagnóstico sobre o presente e, a partir deles, “recria-se sempre a vida de novo.” (BENJAMIN, 2009, p.501)

Na tensão entre aparecer e desaparecer encontra-se um item emblemático na montagem de Museu do Estrangeiro: um álbum de retratos sem retratos, uma coleção de ausências e expectativas sobre essas imagens. Quem figurava nessas imagens que hoje se resumem a informações de local e data? O que permanece nos rastros deixados pela cola que unia papel e fotografia? Quais narrativas se materializaram nessas imagens, uma vez que sabemos que “o que se sabe que em breve não mais se terá diante de si torna-se imagem” (BENJAMIN, 1985, p.110)? Torna-se inevitável a aproximação com o trabalho de Jorge Macchi. Em Monoblock (2003), o artista argentino nos convida a experimentar a ausência na seção de obituário em jornais. O trabalho da perda que marca todo objeto é a condição de produção poética nas obras aqui em questão. Não se trata de uma perda imobilizante, mas um movimento de criação variada de sentido. Cito Georges Didi-Huberman: “Para saber, é preciso imaginar.” (DIDI-HUBERMAN, 2012, p. 15).

Instalação de Kuta Ndumbu em Museu do Estrangeiro - Sesc Pompeia, São Paulo (2017)Instalação de Kuta Ndumbu em Museu do Estrangeiro - Sesc Pompeia, São Paulo (2017)Museu do Estrangeiro é uma obra em movimento: nasceu como processo, projeto em construção constante. Se o passado não pode ser fixado, como uma imagem embalsamada, uma obra que pretende examinar os acontecimentos carrega a condição do passageiro e age evitando uma visibilidade totalizadora e cristalizada. A respeito dessa forma transitória, Ícaro comenta: “Muitos trabalhos são realizados mesmo durante o processo de montagem, que não tem um ponto final (…). Essa montagem é contínua, assim como a pesquisa é contínua, por isso os trabalhos vão se modificando também.(…) Ou seja, a ideia é que ele não acabe.” (LIRA, 2017, p.92). Desmontar para remontar Museu do Estrangeiro. Seguimos atentos, então, aos novos projetos de Ícaro.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BENJAMIN, Walter. Rua de mão única. São Paulo: Editora Brasiliense, 2012 

BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009

DIDI-HUBERMAN, Georges. Imagens apesar de tudo. Lisboa: Editora KKYM, 2012

KOTHE, Flávio R.. Walter Benjamin - Sociologia: Coleção Grandes Cientistas Sociais. Editora Ática, 1985

LIRA, Ícaro. A poética dos desvios na montagem visual de Ícaro Lira. Revista Palíndromo. Florianópolis: v.9, n.19, p.87-96, setembro-dezembro 2017. Entrevista concedida a Eduarda Kuhnert.

SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

 

Ler o texto Um Museu no Bom Retiro, de Marta Mestre.

por Eduarda Kuhnert
A ler | 13 Março 2018 | arquivo, estrangeiro, Ícaro Lira, instalação, memória, outros, Vídeobrasil