O indígena pós-imperial
No discurso social e político ocidental, há muito que o termo indígena perdeu o seu sentido etimológico. Na origem da palavra, encontram-se dois vocábulos do latim, indu e gene, cujo significado remete para alguém (ou algo) que tenha nascido no interior de um dado território.
Assim, no que diz respeito ao sentido original, o termo é sinónimo de nativo. No entanto, tal como aconteceu com um conjunto de conceitos, frases e expressões idiomáticas, a modernidade ocidental, fruto da revolução científica e tecnológica, em parte produzida pelo movimento iluminista do século XVIII, provocou naturalmente uma reformulação e redefinição de conceitos.
A subjugação dos povos não-europeus, cujo apogeu foi o último quartel do século XIX, com o chamado colonialismo moderno, implicou uma combinação íntima entre a prática e o discurso da dominação. Nesta empresa de dominação, o saber colonial foi também chamado e contribuiu tanto quanto a força gerada manu militari.
A legitimação do colonialismo, do imperialismo e da dominação em geral necessitava de um apparatus discursivo, gerado pelo saber colonial, aplicado não só em relação aos próprios europeus como também em relação aos povos dominados não-europeus. Assim, o termo indígena (ou o sinónimo nativo, este último usado mais na literatura colonial britânica) teve significância enquanto conceito operacional do projecto de dominação. O conceito foi utilizado como indicativo de um suposto estádio de desenvolvimento civilizacional ou cultural. O indígena seria o não-civilizado, sobre o qual o projecto da missão civilizadora iria incidir.
Constituía, assim, o outro em relação ao qual o eu ocidental seria mesurado e classificado. O othering colonial (imaginação e construção do “outro”), desenvolvido através de um processo coordenado entre a política e a ciência coloniais, mantem-se no pós-colonial e é a partir deste prisma que devem ser entendidos os discursos e as práticas sociais e políticas relativas à condição de indígena pós-imperial. O colonialismo latino em África (isto é, lusitano e francês) baseava-se na instituicionalização da sujeição do indígena, através do chamado indigenato, conjunto de normas legais especiais que regulavam a vida social dos sujeitos coloniais africanos, e que, em nome de uma suposta missão civilizadora, lhes eram impostas as mais duras cargas, incluindo o trabalho forçado.
Nos dias de hoje, o discurso político ocidental – não obstante os grandes avanços na teoria e prática de direitos humanos – assume a mesma dicotomia do passado. O direito internacional ou o próprio direito europeu mantém a mesma postura que o direito colonial, quando o assunto é o indígena. Este ainda é tratado como categoria cultural no quadro da história da civilização humana, e não em função da etimologia da palavra. Basta lembrar que o termo, em si, nos vários documentos legais, do direito internacional ou europeu, diz respeito aos povos autóctones das áreas que constituíam partes integrantes dos vários impérios europeus. O termo, em si, não é aplicado, por exemplo, ao ocidente europeu onde o “indígena”, enquanto categoria representando um certo estádio de desenvolvimento cultural e civilizacional, não existe.
O paternalismo colonial cujo poder essencial e basilar foi o de conferir nomes e classificações persistiu no tempo, integrando nas práticas institucionais pós-coloniais e pós-imperiais.
Do indígena, agora tornado imigrante nas terras europeias, espera-se que se conforme cegamente às regras culturais ocidentais, caso queira ser aceite pela sociedade no seu todo. Não obstante o multiculturalismo que tem entrado, de forma tímida na esfera pública europeia, a ideia do Estado moderno, fundamentado na homogeneidade cultural, determina um processo de reconversão do indígena, agora imigrante proveniente das ex-colónias. Só que muitas vezes – e resultado desta reconversão – os poderes públicos instituídos tratam-no enquanto indígena, categoria social inferior não merecedora do leque de direitos e vantagens sociais, conferidos pela lei.
O imigrante da ex-colónia (ou mesmo os seus descendentes, muitos dos quais hoje cidadãos europeus) muitas vezes não consegue escapar ao paternalismo e ao controlo por vezes exacerbado do Estado pós-imperial. No substrato da acção do agente do Estado, mormente os agentes policiais de segurança pública, ainda subsiste o olhar, secular e binário, que categoricamente classifica e ordena o sujeito pós-colonial vindo da ex-metrópole, ou como um nobre selvagem, uma tábua rasa sem cultura e sobre a qual a acção civilizadora e modernizante do Estado europeu deve recair, ou como um selvagem bruto, incapaz de reconhecer qualquer outra acção por parte do Estado que não seja a mão pesada do Leviatão. O recente caso no centro comercial Vasco da Gama, onde centenas de jovens africanos e afro-portugueses foram impedidos de acesso àquela instalação parece indicar/confirmar ou denunciar tal olhar sobre o sujeito pós-colonial. Porque history matters, é possível, assim, a partir de um exame crítico dos discursos e práticas do passado colonial e imperial recente entender a continuidade do indigenato, nos dias de hoje, enquanto mecanismo informal de controlo do corpo do sujeito das antigas colónias, que persiste no subconsciente colectivo ocidental.
Cultura e Racismo é o tema da Agenda 2015 do SOS Racismo. O BUALA associa-se publicando os textos que nela se inserem.