O Mundo do Funk Carioca de Hermano Vianna

O livro O Mundo Funk Carioca é uma versão modificada da dissertação de mestrado que Hermano Vianna apresentou, em 1987, no programa de Pós-Graduação em Antropologia Social no Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, orientado pelo professor Gilberto Velho.1
Como o livro referido está esgotado há muito tempo, Hermano Vianna disponibilizou, no site da Overmundo 2, uma cópia da sua dissertação de mestrado intitulada “O Baile Funk Carioca”.Nesse mesmo site, podemos também ter acesso a um conjunto de fotografias inéditas, captadas durante o trabalho de campo de Vianna no baile Canto do Rio, que não estão publicadas no livro. 

Os bailes funk carioca tiveram o seu início no Rio de Janeiro, nos anos setenta, e consistiam em festas de jovens da periferia do Rio, que se reuniam todos os fins-de-semana para dançar funk e soul. Os bailes eram organizados por grupos (equipes) que tratavam do equipamento de som, da segurança e da iluminação e contratavam um DJ que animava a pista de dança.
Foi quase por um acaso que Hermano Vianna participou numa festa funk no Rio de Janeiro. Não estava à procura de um objecto de estudo, queria apenas presenciar uma grande festa de que tinha ouvido falar na rádio. Impressionado com o que viu, escreveu um artigo para o Jornal do Brasil sobre a música negra internacional e a sua influência no Carnaval de Salvador e nos subúrbios cariocas. 

Baile Funk, anos 80. Fotografia de Hermano Vianna.Baile Funk, anos 80. Fotografia de Hermano Vianna.“Era a primeira vez, depois que os jornais fizeram alarde em torno do fenómeno Black Rio [fn]Black Rio _ O Orgulho (Importado) de ser Negro no Brasil, foi o titulo de uma reportagem de O Jornal do Brasil de 17/07/1976, onde se afirmavam os bailes funk não apenas como festas de diversão mas antes como eventos de consciencialização do movimento negro brasileiro., em 1976, que alguém escrevia na imprensa sobre essas numerosas e gigantescas festas suburbanas em sua nova fase hip hop” (Vianna: 11,12).
Hermano Vianna nunca tinha pensado estudar os bailes, mas o seu artigo despertou tanto interesse na imprensa que vários jornalistas o consultaram para terem acesso aos DJs e aos bailes de funk no Rio de Janeiro. Muito rapidamente, Vianna passou a fazer parte desse mundo dos bailes funk, transformando-se no seu principal tradutor para os jornalistas e curiosos que, vivendo na mesma cidade, sempre demonstram um enorme desconhecimento por tudo o que se passa nos subúrbios e nas favelas do Rio.
“Outros artigos, que se seguiram ao meu, chegaram a se referir ao baile funk da Estácio de Sá como minha ‘descoberta’. Esse(s) termo denuncia a relação que a grande imprensa do Rio mantém com os subúrbios, considerados sempre como território inexplorado, selvagem, onde o antropólogo pode descobrir ‘tribos’ desconhecidas, como se estivesse na floresta Amazónica.” (Vianna: 12)

Hermano ViannaHermano Vianna

Os bailes funk carioca e os antropological blues
Os bailes funk carioca ganharam fama por volta de 1976 com o que a imprensa chamou de Black Rio. Nos bailes da época, ouvia-se black music (sobretudo funk e soul).

A partir de meados dos anos oitenta (época do trabalho de campo de Hermano Vianna), os bailes começaram gradualmente a incorporar música Hip Hop concretamente a batida Miami Bass “Um estilo de Hip Hop dos guetos de Miami que explorou ao máximo uma temática sexual explícita e incorporou uma batida electrónica nitidamente inspirada no funk3
Segundo um levantamento inicial, o autor concluiu que (na época da sua pesquisa) eram realizados em média 700 bailes funk cada fim de semana no Grande Rio. Cerca de uma centena desses bailes reuniam entre seis mil a dez mil dançarinos por noite. O que leva a concluir que aproximadamente um milhão de jovens cariocas frequentavam esses bailes todas as semanas para dançar. A grande maioria deste jovens eram negros, provenientes das favelas do Rio de Janeiro. E Vianna questiona-se: “Como um fenómeno daquelas proporções podia acontecer na minha cidade sem que eu e quase todos os meus amigos nos déssemos conta disso? Como é que o funk chega ao Rio? Por que atrai tanta gente? Qual a sua mágica? Como posso me comunicar com aquelas pessoas? Eu quero mesmo me comunicar com elas? Eu quero entendê-las?” (Vianna: 15)
O trabalho de campo de Vianna durou cerca de um ano e meio. Durante esse período, alem da recolha documental, fez observação directa em muitos bailes e realizou uma série de conversas informais e entrevistas com frequentadores dos bailes, organizadores, DJ’s e dançarinos.
DJ Marlboro4, na altura DJ frequente do baile O Canto do Rio, foi um dos seus primeiros conhecimentos no mundo funk e revelou-se uma figura central na sua pesquisa.

Frequentadores dos Baile Funk fotografados por Guilherme Bastos para o livro de Hermano Vianna, 1988.Frequentadores dos Baile Funk fotografados por Guilherme Bastos para o livro de Hermano Vianna, 1988.

No início o que mais interessava a Vianna era o ritual da festa sem se preocupar com os seus frequentadores. Tentou observar os movimentos de massa, o poder do colectivo, a intensidade e diversão do baile. Depois começou a interessar-se pelos organizadores da festa, de onde vinha o equipamento, os discos, o dinheiro. Mas “Era a alegria avassaladora dos dançarinos que me contaminava.” (Vianna: 16)

Sobre o seu trabalho de campo podemos ler: “Diversão: uma palavra deslocada na maior parte das etnografias. Afinal, tenho ou não que sentir os famosos antropological blues? Afirmar que me diverti durante o período de campo não significa dizer que eu andava pulando no meio dos outros dançarinos. Nunca tentei sentir o que o “nativo” sente. Fui sempre, nesse sentido, um espectador do baile. Era isso que realmente me satisfazia e interessava. Passei todo o tempo ‘na minha’ (observação dos próprios funkeiros), sempre impressionado com o que estava vendo, com a explosiva empolgação da festa, e com a sua repetição, todo o santo domingo.” (Vianna: 15)

Vianna não acredita que o antropólogo possa sentir o que o nativo sente. É tudo uma questão interpretativa, uma tradução de tradução, uma delicada relação de poder entre diferentes pontos de vista.           

O texto termina com um ponto de conclusões que articula o trabalho de campo com os conceitos teóricos propostos e tenta de alguma forma debater as principais questões que o levaram a esta pesquisa. Neste ponto Vianna questiona as várias contradições nos pressupostos de análise da função social dos bailes, seja na dialéctica holinismo/individualismo, tradição/modernidade ou permanente/efémero.

O autor acaba por concluir que “o baile não serve para nada.” Nenhuma regra social é contestada, nada é produzido, tudo é gasto. (Vianna: 106)
“A festa é excesso, em todos os sentidos, para não fazer sentido algum. O som muito alto, o contraste entre as luzes que piscam sem parar e a escuridão quase dominante, as danças cada vez mais intensas, os gritos de satisfação, a ameaça sempre presente da violência. A festa é loucura, afirmação inconsequente e irresponsável de que a vida vale a pena ser vivida. A alegria apesar de toda a miséria do quotidiano.” (Vianna: 108)


Esta monografia foi (e ainda é) de extrema importância para a teorização, afirmação e defesa do movimento funk carioca que, como vimos no capítulo de introdução, ainda hoje se debate com sérios problemas de legitimação e legalização.
Para os estudos urbanos é um trabalho relevante na forma de análise mais ampla sobre as práticas culturais das periferias das grandes cidades e pode-nos ajudar a interpretar fenómenos semelhantes como o Kuduro nos musseques de Luanda ou o Kwaito das townships sul-africanas.
O tema dos bailes funk no Brasil está longe de estar esgotado e continua a ser alvo de estremadas polémicas em torno de assuntos tão delicados como a violência, o tráfico de drogas, o racismo, o sexismo, entre outros. Hermano Viana mantém-se ligado ao movimento e podemos encontrar na imprensa inúmeras entrevistas e artigos de sua autoria, onde Vianna debate, defende e discute o funk.
Num desses artigos podemos ler: “O funk tem capacidade para se tornar instrumento construtor de paz e desenvolvimento social/cultural no Rio de Janeiro. Esta chance não pode ser desperdiçada. Não é todo dia que uma cidade inventa uma música tão poderosa, capaz de fazer todo mundo (e todo o mundo) dançar e andar feliz na favela ou no asfalto onde nasceu.”5

VIANNA, Hermano; O Mundo do Funk Carioca. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor. 1997. (ISBN 85-7110-036-5)

  • 1. Depositada na biblioteca do PPGAS, Museu Nacional, UFRJ
  • 2. Site colaborativo dedicado à cultura brasileira e a cultura produzida por brasileiros em todo o mundo, em especial as práticas, manifestações e a produção cultural que não têm a devida expressão nos meios de comunicação tradicionais: http://www.overmundo.com.br/
  • 3. ANAZ, Sílvio, HowStuffWorks - Como funciona o funk. (online). Publicado em Março de 2009. http://lazer.hsw.uol.com.br/funk3.htm.
  • 4. DJ Marlboro era na altura um jovem DJ principiante. Hoje é um DJ de renome internacional, um dos nomes mais citados do mundo funk carica, com apresentações no Brasil, Estados Unidos, Europa, etc…
  • 5. VIANNA, Hermano; O Funk Proibidão… (online). Publicado em 2009. http://www.overmundo.com.br/overblog/o-funk-proibidao#-overblog-10584 (Janeiro 2011)

por Francisca Bagulho
A ler | 13 Fevereiro 2011 | funk carioca