“Os pedaços de madeira de Deus" de Ousmane Sembene
«A vós, Banty Mam Yall,
Aos meus irmãos de sindicato e a todos os sindicalistas
E às suas companheiras deste vasto mundo,
eu dedico este livro.»
Antes de falar de Les bouts de bois de Dieu (Trad. em port “Os pedaços de madeira de Deus” de Maria José Marinho, ed Caminho, Lisboa,1979) debrucemo-nos um pouco sobre o seu autor, Ousmane Sembene. Ele é um dos representantes emblemáticos da cultura senegalesa, país com uma cruel carência de mediatização da sua cultura, como muitos dos países africanos. Escritor e cineasta, chegado a França clandestinamente e depois estivador em Marselha, Ousmane Sembene não se contentou em emigrar fisicamente: ele soube transportar consigo para fora das fronteiras do seu país uma literatura comprometida, marcada pela sua própria vida e, particularmente, a luta sindical que tanto lhe dizia. Les bouts de bois de Dieu é uma homenagem de apoio aos trabalhadores dos caminhos de ferro da linha Dakar-Niger que conseguiram, apesar de um contexto muitíssimo desfavorável, lançar uma greve geral e mantê-la desde o dia 10 de Outubro de 1947 até 19 de Março de 1948, a mais longa que África alguma vez conheceu.
Se uma greve tão longa é dificilmente imaginável na maior parte dos países europeus, é-o ainda mais em África. A situação colonial, a segregação racial, os maus tratos e as represálias sangrentas, nada pode desencorajar esses “pedaços de madeira de Deus” como se designam entre eles. Eles resistiram porque o combate não era apenas seu, mas o de uma África que se liberta do jugo colonial. O que a greve traz, para além daquilo que os colonos lhes fazem sofrer, é a fome, a miséria. Os rendimentos – na esmagadora maioria dos casos assegurados pelos homens – já muito fracos, desaparecem. Poderiam contar, então, com amigos, vizinhos, para se sustentarem, mas nalgumas cidades, a linha de caminho de ferro é o único empregador. Cidades inteiras soçobram na desolação. Mais que a greve, é a aventura humana que é pintada. O combate dos homens por melhores condições de vida. O combate das mulheres para alimentarem mais ou menos a família. Estas mulheres que Sembene não esquece, tão grande foi o seu contributo para o esforço de guerra!
Cinco meses de dúvidas, de miséria, mas cinco meses de partilha e de luta. Luta contra o mundo colonial, brutal e completamente ultrapassado pelo formidável espaço de democracia que se cria diante dele, ultrapassado pelo entusiasmo popular pela luta e cuja única resposta, antes de admitir por fim a sua derrota, será a recusa de negociar e a violência. Mas se o texto é tão forte, é porque ele ultrapassa o âmbito espácio-temporal da África e nos mostra o que o homem é capaz de fazer, de criar por um ideal, pelo que ele considera justo para a sua família, para si próprio e para as gerações futuras.
Sembene consegue perfeitamente transmitir-nos a sua admiração por esta luta social total, por estes pormenores, por estas pequenas histórias que a tornam grande. Na escrita, sente-se já que o cinema lhe estende a mão, tal é a incrível força pictórica que possuem as suas descrições. Ousmane Sembene não conta, pinta. Para além do interesse propriamente histórico, as descrições são a outra obra-prima deste romance. Nem uma linha a mais. Cada personagem, cada lugar dá o seu contributo à obra, até erguer um panorama perfeito da situação na qual todos evoluem. Ao ler certos livros, tem-se por vezes a sensação de que falta alguma coisa, um pequeno nada frustrante, para que o que foi escrito por outrem se ajuste perfeitamente ao que se teria desejado, mas aqui, cada frase encaixa na precedente e integra-se no todo deste testemunho histórico. O escritor funciona aqui como uma águia que sobrevoa a cena. Ousmane Sembene tem a mesma acuidade.
A cena ou antes as cenas, porque o romance está dividido em três partes que correspondem às três cidades abrangidas pela greve. Por isso, as personagens iluminadas pelo narrador são numerosas: crianças, velhos, velhas, sindicalistas, mulheres de sindicalistas. Todos são carismáticos, como o líder ideológico do movimento, Bakayoko. Estas personagens são poéticas. De uma poesia realmente diferente dos nossos critérios ocidentais, marcada por uma relação à terra única.
Actualmente, está em curso uma adaptação cinematográfica, não sendo ainda conhecida a data de apresentação no cinema, mas é uma boa razão para ler este fresco romance histórico e, a seguir, ir ver a sua realização nas salas de cinema.
Les bouts de bois de Dieu (Banty Mam Yall) de Ousmane Sembene, 1960, éd. Pocket