Pode a arte mudar a sociedade? - Introdução
Porquê um livro sobre arte socialmente comprometida no final da segunda década do século XXI?1 que tipo de relações entre domínios aparentemente estanques como as práticas artísticas, as práticas sociais e as práticas políticas pretendem ser explicitadas aqui? que fluxos ontológicos e analíticos entre arte e política se convocam? que respostas podemos obter no cruzamento de tradições e disciplinas para estas inquietações? E que linguagens e contextos têm vindo a cruzar artistas, activistas e académicos para que possamos melhor compreender o cenário que conforma, na contemporaneidade, práticas artísticas de questionamento político e intervenção social? quando uma obra consegue a participação activa de uma comunidade ou de uma audiência torna-se mais relevante socialmente? A função social da arte invalida a sua função estética? Pode a arte mudar a sociedade? Estas e outras questões fazem parte do já conhecido debate sobre a chamada «viragem social»2 da arte contemporânea.
Ao longo das últimas duas décadas3, vários autores têm tentado estabelecer as bases para a análise crítica de um certo tipo de obra de arte que recusa a mera representação da realidade para propor intervir directamente sobre ela; que adopta mais a forma de um processo de troca de ideias e experiências em vez de propor-se enquanto objecto ou obra; que desafia a figura do artista enquanto autor único da experiência estética para assim experimentar complexas formas de colaboração e participação.
Este livro constitui um resumo dos principais pontos de discussão em relação às questões anteriormente salientadas. Ao longo das últimas décadas consolidou-se um interesse particular por formas artísticas que tentavam ir além da expressão ou representação de conteúdos e temas políticos para passar a pensar em intervir de forma concreta e directa na sociedade. Acerca da arte pública, da performance e da arte colaborativa (por si próprias manifestações com interesses e genealogias diferentes ainda que cruzadas) começaram a colocar-se questões sobre a relevância social da arte contemporânea que tomava o espaço da rua enquanto lugar de proposições e propostas, e de encontros e relacionamentos; mas também sobre o papel da colaboração e participação artística enquanto motor de transformação e mudança social; e ainda sobre a relação entre educação artística, criação contemporânea e trabalho cultural.
Esses questionamentos, directamente ligados aos problemas actuais da realidade económica e social, podem ser relacionados com duas transformações fundamentais: por um lado, com um certo esgotamento de tendências representacionais e fundamentalmente simbólicas na arte contemporânea, segundo as quais corresponderia ao artista a tarefa de «decifrar» o cenário da nossa realidade para posteriormente «explicar» ao público essa mesma realidade. Deste modo, um dos pontos partilhados pelos projectos artísticos vinculados a modalidades de intervenção e compromisso social é a sua desconfiança no que diz respeito à componente política ou social de formas artísticas baseadas apenas no discurso ou na representação da realidade. Por outro lado, uma outra transformação que explica o auge da arte de compromisso social tem que ver com a queda do chamado Estado de bem-estar social4 e o desaparecimento dos grandes projectos/modelos políticos ligados à chamada esquerda internacionalista. Perante a falta de respostas por parte dos governos, muitos artistas tentaram transferir o político para outras esferas da sociedade, explorando a capacidade da arte para liderar ou acompanhar transformações que não teriam lugar caso fossem apresentadas enquanto iniciativas puramente políticas.
Na verdade, não existe propriamente um nome para designar o tipo de obra artística que este livro estuda. Termos como arte socialmente comprometida, arte colaborativa, arte participativa, arte relacional, arte contextual ou «new genre public art»5, são usados sem uma delimitação clara do seu significado — quase sempre no idioma inglês, o que nos levaria ainda a formular todo um outro tipo de reflexões e de questionamentos de lógicas de representação e de poder que estes géneros ocultam, silenciam ou omitem e que decorrem quase sempre de uma centralidade euro-americana da história e da crítica de arte. Para alguns autores, essa indefinição constitui em si própria algo de positivo, uma vez que implicaria que o potencial subversivo de algumas das propostas artísticas incluídas nos termos anteriores continuaria vivo. Para outros, a arte socialmente comprometida perdeu grande parte do seu potencial no momento em que se tornou alvo de interesse de instituições de ensino superior e de instituições artísticas «mais convencionais», como os museus e os centros de arte, ou prisioneira de modelos, dispositivos e formatos de apresentação artística sustentada em festivais, bienais ou grandes eventos, cujos patrocinadores ou financiadores são afinal o coração da sociedade capitalista que se pretende transformar ou mudar em tais projectos artísticos. Para outros ainda, a «viragem social» da arte produzira e potenciara um afastamento nesses projectos da linguagem propriamente artística ou estética, agora subestimada, para uma linguagem quase exclusivamente ética e ideológica e claramente hipervalorizada.
Seja como for, o que está fora de qualquer dúvida é o facto de hoje em dia o âmbito da arte socialmente comprometida ter deixado de ser um espaço marginal dentro do panorama das artes contemporâneas para ser adoptado por museus e pela academia como parte da sua linguagem de comunicação com a sociedade. As consequências desse sucesso, contudo, estão longe de ser percebidas de maneira uniforme. Será que a arte, quando se torna uma ferramenta de transformação social, não estará preenchendo as lacunas sociais e económicas que o dominante modelo de governação neoliberal deixa de cuidar? Não estarão os artistas, paradoxalmente, a contribuir para a continuidade e até regeneração do sistema que tão duramente tencionam combater? Em que medida as situações sociais de alta fragilidade e urgência devem ser objecto de intervenção artística e não do cuidado do Estado? De que forma é que o artista socialmente comprometido não é afinal apenas um «agente infiltrado» de um certo empreendedorismo social que visa promover soluções para problemas sociais com base no talento e nas capacidades individuais em detrimento da vitalidade comunal e colectiva?
Para Claire Bishop, uma das autoras seleccionadas neste volume, é precisamente isto que acontece quando a arte é instrumentalizada por poderes macro ou micropolíticos, quer seja o Estado ou organismos civis. Para outros autores, embora exista esse risco, os processos de criação artística colaborativa apresentariam um potencial transformador ligado ao próprio facto de estenderem o labor criativo a agentes situados fora das audiências tradicionais da arte contemporânea. Por exemplo, em resposta a esta posição, Grant kester (outro autor representado neste volume), entre outros, mantém que a arte não tem de ser necessariamente antagónica para cumprir uma função social e estética ao mesmo tempo.
Seja qual for o posicionamento crítico perante este tipo de arte, o desafio às convenções do mundo da arte contemporânea (baseado na sucessão de exposições e bienais e no papel organizador de museus, galerias e centros de arte contemporânea na proliferação de eventos artísticos) constitui um ponto de encontro para todos os autores deste volume. Outros são a importância atribuída ao processo criativo em detrimento do objecto artístico final; a relevância da experiência directa e continuada da obra e da partilha em detrimento da contemplação no tempo e no espaço da exposição e da galeria ou museu; a participação activa da audiência ou a mudança do paradigma de espectador para utilizador ou usuário; o desafio à autoria individual e às várias modalidades de colaboração; e o diálogo continuado com colectivos e organizações não artísticas.
Roger Sansi (2014), um antropólogo catalão e um dos autores deste livro, sugeria uma particular articulação entre arte contemporânea e teoria da dádiva (um tema clássico e caro à antropologia). Sansi colocava, digamos, três tipos de interconexões a explorar neste diálogo: a) a presença de uma concepção que advém de sectores artísticos para quem a troca é sobretudo um processo voluntário e de partilha igualitária ou entre iguais; b) a concepção clássica na antropologia de que a troca é eminentemente um processo de reprodução social das hierarquias e está muitas vezes sujeita a processos coercivos e obrigatórios particularmente de natureza moral; c) e ainda uma concepção situacionista e de alguma antropologia ligada ao pensamento de Georges Bataille que via a troca como um lugar de excesso e de transgressão. Sobre o primeiro nível de interconexão, no campo das artes tomemos o exemplo da proposta do crítico de arte e curador Nicolas Bourriaud sobre uma necessidade, em primeiro lugar, de geração de uma «cultura da amizade» entre artista e público, que advém da sua proposta de estética relacional. Acto contínuo, o artista surge assim, nas suas palavras, como um intruso que procura habitar outros campos que não apenas o da arte (o ateliê deixa de ser o lugar ou o único lugar do fazer artístico); o artista surfa entre disciplinas e torna-se um «okupa» de espaços outros onde troca experiências, fazeres, modos de se exprimir, formas de ver. A troca entre artista e usufruidores de arte surge assim como um processo potencialmente pensado como sendo mantido entre iguais, revelando projectos que desejam fugir da noção de produtividade ou que não se adaptem à lógica de eficácia imediata para a indústria e para consumo.
Claire Bishop (uma das autoras presentes neste livro) reclama uma versão mais agonística e antagonística da arte, confrontacional e geradora de tensões, uma arte que reclame por «mais sangue» através de afectações desestabilizadoras e parece impor-se como urgente em certos contextos onde assimetrias e hierarquias se visibilizam, como por exemplo nos trabalhos de Santiago Sierra, um dos artistas referidos por Bishop para dar conta de como o mundo artístico contemporâneo deveria ser bem mais um «inferno artificial» do que uma «cultura da amizade». Finalmente, Tania Bruguera, e a sua proposta de Arte Útil, é uma das artistas referidas por Roger Sansi, a partir das propostas de Bishop, como projectos eminentemente transgressores, de excessos provocadores de uma concepção artística claramente impactante e comprometida em temas e assuntos fracturantes e que geram desconforto na sua fruição — o mesmo pode ser descrito para a proposta de arte pública — Ice (1996) — do artista plástico chinês Wang Jin para a inauguração de um centro comercial. Wang Jin construiu um muro de gelo com trinta metros de comprimento com uma série de objectos, basicamente produtos de consumo, e apelava a que o público, os consumidores, partissem o gelo, o que na verdade veio a acontecer, gerando quase um motim. Aqui, a transgressão e o excesso, pareciam, portanto, ser o dispositivo conceitual que se abria para a troca entre prática artística e sua fruição. Poderíamos pensar então que estes três segmentos analíticos facilitam o entendimento de que este conceito de arte socialmente comprometida seja um conceito tão poroso, tão fluido, tão polissémico e, sobretudo, tão dado ao dissenso. Aquilo que poderíamos afinal chamar de um conceito contestado.
Um outro dos principais problemas em relação aos debates sobre arte socialmente comprometida tem que ver com o seu provincialismo ou o paroquialismo. Até agora são poucas as vozes que falam a partir de lugares outros que não os Estados Unidos ou Europa Ocidental e que tenham sido incorporadas nos debates sobre o tema; o leque de artistas e projectos analisados (que tradicionalmente inclui Santiago Sierra, Thomas Hirschorn, Oda Projesi, Rirkrit Tiravanija, Project Row Houses ou Francis Âlys) é também reduzido e sistematicamente centrado no mundo artístico de matriz ocidental. Uma consequência dessa proximidade a um corpus pequeno de autores e artistas tem que ver com a utilidade dos conceitos e ideias apresentados por cada autor. Se bem que a escolha de exemplos para serem examinados não determine, em princípio, as ideias sobre o valor artístico e social da colaboração artística, com frequência encontramos nos principais livros sobre o tema uma classificação de projectos que cumprem positivamente com as expectativas de transformação social que este tipo de arte é suposto alcançar, enquanto que outros projectos são enquadrados dentro de uma visão «negativa» e ineficaz. É claro que ambas as categorias são flexíveis, e que variam de autor para autor. Para nos cingirmos aos dois autores até agora apresentados, Bishop como referimos criticará projectos que tentem conseguir o consenso social, entendido como um instrumento de controlo, enquanto que kester censurará aquelas iniciativas onde o artista instrumentaliza os seus colaboradores, considerando que essa instrumentalização constitui uma reificação da autonomia da arte, onde o artista cria a ilusão de colaboração com a sociedade apenas para produzir uma imagem que depois será vendida e posta a circular no meio ainda «especializado» da arte contemporânea — ficando, claro está, o artista com todos os dividendos. Um exemplo deste tipo de procedimento foi o projecto de Francis Âlys, When Faith Moves Mountains (2001, Peru), realizado no final do mandato ditatorial do presidente Alberto Fujimori com cerca de 500 voluntários, basicamente recrutados nas escolas de Belas-Artes de Lima, que foram convidados a varrer uma montanha no deserto na tentativa de desromantizar a land art, mas acabando por se focar apenas no projecto do artista e tornando anónima e secundária a ilusão colaborativa dos voluntários na realização do projecto.
Um dos elementos que afortunadamente tem estado a ser revisto é o da genealogia única da arte socialmente comprometida. Vários autores têm tentado contextualizar os projectos artísticos mais recentes dentro de tradições mais amplas de arte social, que em nenhum dos casos se reduzem aos Estados Unidos e Europa Ocidental.
À questão da expansão do conceito de arte socialmente comprometida e a relativização da sua «novidade» soma-se o teor claramente multidisciplinar dos artistas que escolhem introduzir uma dimensão colaborativa na sua obra. Desde o âmbito dos estudos do teatro e da performance, Shannon Jackson salienta o facto de muitas das supostas «inovações» que se aplicam à arte so- cialmente comprometida estarem já presentes na acção performativa: «enquanto termo que combina estética e política, enquanto termo para eventos artísticos que são interrelacionais, corporalizados e duracionais, a ideia de “social practice” bem pode ser sinónimo dos objectivos e métodos que muitas pessoas esperam encontrar na disciplina do teatro experimental e os estudos da performance.»6 Para alguém acostumado ao teatro experimental, Jackson continua, pouco haverá de novo nesta viragem da arte. Como, então, definir o «social» do «social turn» da arte contemporânea? Uma das principais características do tipo de arte que este livro confronta é… o facto de não parecer arte! Com efeito, à medida que o campo da arte social foi evoluindo, os artistas tiveram de incorporar o «know-how» que tradicionalmente ficava fora da educação das belas-artes ou do teatro e da dança. Tiveram também que desenvolver e polir habilidades sociais que permitissem levar a cabo os experimentos com comunidades e agentes diversos. Este processo, se bem que tenha servido indubitavelmente para aproximar a arte contemporânea de um público mais abrangente, ao mesmo tempo colocou questões relevantes acerca da função social dos artistas, da sua situação material, e da possível exploração das audiências quando são convidadas a participarem na criação da obra. De facto, alguns destes projectos designados como de arte socialmente comprometida nem sequer se pensam como arte, e nalguns casos pretendem afastar-se do chamado art world, como por exemplo o conceito de Arte Útil que tem vindo a ser desenvolvido por artistas, curadores e museólogos como Tania Bruguera, Alistair Hudson, Charles Esche ou Miguel Amado. Em qualquer dos casos, como este livro testemunha, o certo é que estas valorizações não esgotam os tipos possíveis de colaboração, nem as interpretações possíveis sobre as obras comentadas.
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Os nove textos reunidos no presente volume confrontam aspectos diversos dos debates anteriormente descritos e foram dispostos em três blocos de interrogações e inquietações teóricas. O primeiro bloco, «Definições», reúne três contribuições fundamentais que ajudaram a definir e situar práticas artísticas colaborativas e participativas. Escritos ao longo de vinte anos, os ensaios de Suzanne Lacy, Claire Bishop e Grant kester dão conta da evolução e consolidação da arte socialmente comprometida. Esta evolução percebe-se se compararmos a contribuição de Lacy, escrita numa data onde a crítica artística ainda encontrava grandes dificuldades em lidar com os projectos analisados pela autora, com a de kester, o qual localiza a sua reflexão face a um panorama diferente, marcado pela aceitação crítica a instituições e pela proliferação de projectos artísticos colaborativos e de arte socialmente comprometida a nível global. Os três textos escolhidos não só respondem a momentos diferentes de uma possível historiografia deste género como também evidenciam posicionamentos heterogéneos e até opostos em muitos aspectos.
«“Debated Territory”: Toward a Critical Language for Public Art», o texto de Suzanne Lacy que dá início ao volume, pressupõe uma tentativa por parte da autora de confrontar a arte pública desde uma perspectiva crítica, atenta à dimensão social da experimentação artística e que utiliza a rua e a cidade como espaço de intervenção. O texto pertence ao volume Mapping the Terrain: New Genre Public Art, frequentemente reconhecido enquanto iniciador dos debates sobre a relação entre experimentação artística e intervenção social. No livro, Lacy formula o conceito «New Genre Public Art», que tenta ir além das limitações tanto da «New Genre Art» como da arte pública. Se a primeira se baseia na mistura de diferentes tecnologias artísticas e na experimentação na fronteira desses media, a segunda parte da tradição estado-unidense de arte e mais especificamente escultura em espaços públicos. Lacy liga ambas as correntes, mas também assinala os seus limites: o carácter inovador da experimentação multimédia resulta apenas um exercício de virtuosismo formal se não conseguir sair das limitações do meio artístico; a arte pública torna-se uma ferramenta de decoração e administração gerida pelos poderes económicos e políticos se não for ao encontro das inquietudes e interesses das comunidades onde está inserida.
A ideia de «New Genre Public Art» tenciona interligar as mais-valias de ambas as tradições com o intuito de responder à aparição de um novo tipo de arte interessada no lado mais social, incluindo o trabalho artístico de Mary Jane Jacob, Guillermo Gómez-Peña, Judith F. Baca ou da própria Lacy.
Mapping the Terrain surge, então, perante a necessidade de inventar um novo vocabulário estético e artístico que conseguisse analisar estes projectos. Tal como o resto do livro, o texto aqui traduzido coloca questões e salienta temas que tornar-se-ão fundamentais nos anos seguintes, a saber: a ligação com audiências alargadas; o carácter duracional deste tipo de projectos artísticos; a importância do processo sobre o resultado ou o produto; a compo- nente dialógica; a expansão dos objectivos do projecto fora do âmbito do museu e das instituições artísticas. Contudo, o leque de práticas incluídas em Mapping the Terrain é heterogéneo: a última secção do livro inclui uma relação de exemplos, muitos deles ainda hoje pouco analisados, que dão conta da diversidade de ideias e tradições que se encontraram neste momento inicial. Rejeitando qualquer tentativa de estabelecer fronteiras que excluíssem práticas, muito pelo contrário, movida por uma vontade mais de reconhecimento do que de categorização, Lacy salienta a necessidade de usar a «impureza» do próprio processo artístico na hora de mapear os desafios sociais e políticos que os artistas colocaram às formas mais estabelecidas de criação artística dentro e fora do museu.
O texto de Claire Bishop publicado inicialmente na revista October, «Antagonism and Relational Aesthetics» continua esse diálogo acerca das fronteiras entre o artístico e o político e o dentro e o fora da instituição artística. Bishop utiliza o exemplo da estética relacional de Nicolas Bourriaud para desenvolver uma crítica de obras e artistas que utilizam a interacção social com o intuito de promover transformações abrangentes na sociedade. A ideia de estética relacional de Bourriaud visava dar resposta a uma série de projectos artísticos produzidos na década de 90, onde a interacção com a audiência na esfera da galeria ou do museu era contemplada como um potencial espaço autónomo parcialmente fora dos intercâmbios capitalistas de mercadorias. Para Bourriaud, as intervenções de artistas como Rirkrit Tiravanija, Philippe Parreno ou Maurizio Cattelan não só criam obras de arte baseadas na contemplação visual; criam, sobretudo, comunidades temporárias.
Bishop, como vimos, critica esta ideia, assinalando como os exemplos que Bourriaud propõe estão tão contaminados por dinâmicas capitalistas como qualquer outro intercâmbio fora do espaço da galeria e do museu. Perante este tipo de colaboração artística, Bishop defende a capacidade trans- gressora de projectos participativos «antagonistas», susceptíveis de criarem um choque no espectador e assim despertar a sua atenção perante situações de exploração ou vulnerabilidade. Bishop reconhece na obra de artistas como Santiago Sierra ou Thomas Hirschorn uma alternativa baseada no dissenso ao modelo de interacção e convivência proposto por Bourriaud. Em subse- quentes ensaios, sobretudo em «The Social Turn: Collaboration and Its Discontents» e Artificial Hells: Participatory Art and the Politics of Spectatorship, Bishop desenvolverá essa posição, confrontando a intenção de atingir uma transformação real na sociedade que ela reconhece em colectivos como Oda Projesi. Para Bishop, a «boa intenção» presente em projectos artísticos teria sido confrontada perante uma viragem «ética» do lado da crítica artística. Nesse sentido, Bishop denuncia o facto de a apreciação de iniciativas colaborativas estar cada vez mais dominada por preocupações morais que, de acordo com a autora, levariam a esquecer a componente estética presente nessas iniciativas. É a partir desse posicionamento que Bishop critica a chamada viragem social/«social turn», o crescente sucesso da arte socialmente comprometida e propõe um modelo de prática artística participativa e interpretação crítica baseado no dissenso.
O posicionamento de Grant kester representa, de alguma maneira, um certo antagonismo com a posição de Bishop. kester também critica a pretensão de autonomia presente na estética relacional de Bourriaud, mas defende que a colaboração artística com objectivos sociais claros não tem necessariamente menos qualidade estética do que projectos baseados no confronto. Ao mesmo tempo, critica a ideia de ruptura estética de Bishop, assinalando que a pretensa capacidade do artista para «despertar» a capacidade crítica da audiência mantém a centralidade da figura autoral do artista ou do crítico e a ideia da comunidade de espectadores como um conjunto homogéneo incapaz de sustentar-se numa visão crítica da realidade sem uma intervenção exterior. kester também comenta o modelo de crítica baseada na busca de significados «ocultos» na realidade, apenas acessíveis ao olho atento do crítico. Nesta lógica, kester reconhece um modelo interpretativo cujas raízes se entretecem na ideia de autonomia estética própria da modernidade e que interpreta qualquer intervenção «excessiva» em assuntos sociais ou políticos como uma perda do sentido crítico que torna a arte numa posição de observação privilegiada.
Em livros como Conversation Pieces: Community and Communication in Modern Art e The One and the Many: Contemporary Collaborative Art in a Global Context, kester propõe uma definição de colaboração artística ba- seada no diálogo e na colaboração. O texto breve aqui apresentado oferece um resumo da interpretação de kester, ao mesmo tempo que esboça alguns delineamentos metodológicos para a crítica da arte socialmente comprometida. Se este tipo de arte, kester argumenta, apresenta características diferentes da produção de objectos artísticos, destinada a ser observada entre as quatro paredes do espaço artístico, então será necessário desenvolver um vocabulário estético diferente. Para kester, a chave de leitura estará em considerar a com- ponente social ou política como um complemento e não necessariamente como um obstáculo à componente estética das práticas colaborativas.
O segundo bloco, «Insubordinações, poderes», reúne um conjunto ainda mais heterogéneo de textos desenvolvidos à volta da ideia de ordem e desordem, poder e contrapoder. Os três textos escolhidos mantêm uma relação tangencial com os debates mais formais e metodológicos sobre arte colabo- rativa incluídos no primeiro bloco. Supõem, todavia, uma ampliação dos debates sobre relações entre arte, política e comunidade. Escritos a partir de posicionamentos e disciplinas diferentes, os três autores apresentados neste bloco exploram o potencial subversivo de práticas criativas que operam em diálogo com os poderes institucionais. Ao mesmo tempo, há em todos os casos um interesse em explorar a genealogia de modelos alternativos de intercâmbio e articulação social e a repercussão contemporânea de práticas e tradições de resistência e subversão.
Este ponto é particularmente evidente no texto de Marcelo Expósito, «Todo mi cuerpo recuerda: desorden festivo, mutación subjetiva y devenir revolucionario.» Expósito, posicionando-se no lugar de artista, académico e também de activista, analisa processos de mobilização popular e racialização a partir dessa sua perspectiva híbrida. O texto aqui traduzido evidencia essa hibridez, e ao mesmo tempo introduz uma dimensão corporal, da experiência, que complementa os debates mais teóricos do bloco anterior. «Todo mi cuerpo recuerda» foi produzido como parte de uma reflexão mais alargada sobre a função da praça e o uso político do espaço público em processos de transformação social. O ensaio estabelece pontes entre episódios de «desordem» que se sucedem entre a Europa e as Américas, entre o passado e o presente. Ligado aos acontecimentos de protesto e subversão que marcaram a última década da vida política e social no estado espanhol — a que não é alheia a posição e a função de Expósito no cenário político actual na cidade de Barcelona —, o texto con- segue todavia ir além da urgência do presente de modo a discernir sujeitos e corpos diferentes que interpelam a cidade e o mundo. Tecendo «contradiscursos subalternos», Expósito narra outra história da mobilização popular contemporânea, uma história com uma ampla, mas nem sempre evidente, genealogia. Essa genealogia, ainda, parte da posição do próprio corpo, da capacidade transgressora dos sujeitos quando articulados em torno de uma causa comum. Nesse sentido, o ensaio elabora uma visão dos poderes e contrapoderes onde os processos emancipatórios do passado reverberam sentidos e funções em formas não sempre expectáveis no presente.
Se Expósito elabora a sua visão da capacidade instituinte do comum ao longo da história, Matteo Pasquinelli propõe outra leitura assíncrona, mas desta vez focada nas tecnologias do controlo e a administração. «Arcana Mathematica Imperii: The Evolution of Western Computational Norms» é um ensaio complexo, que junta crítica cultural e debates sobre ciências quantitativas e computacionais com uma análise aprofundada e actualizada de tecnologias de controlo e governabilidade de base foucaultiana. Pasquinelli conduz-nos das esquadras de polícia de Nova Iorque à história da computação, e daí até à guerra de drones no Iémen. O fio condutor, desta vez, é a porosidade das fronteiras entre tecnologias de recolecção de dados, administração de socie- dades e indústrias militares. Pasquinelli reflecte sobre a norma e o erro, estabelecendo uma ligação directa entre a recolha de dados, a anomalia social e a evolução dos espaços de excepcionalidade e vulnerabilidade. O resultado é uma indagação actual e inovadora sobre a abstracção e a desmaterialização dos poderes e a, mais do que material, realidade da guerra e do controlo social em tempos pós-humanos.
Encerra este bloco um ensaio de Roger Sansi sobre as articulações que este antropólogo desvenda entre a teoria da dádiva (central na antropologia desde a sua fundação) e as práticas artísticas contemporâneas. Embora mais relacionado com as questões artísticas que centraram os debates do bloco anterior, Sansi desenvolve uma aproximação comparativa a diferentes regimes de troca nos quais consegue ler alternativas aos padrões de subjugação mercantil presentes tanto em modelos antropológicos da dádiva (quase sempre contextualizados em sociedades e grupos sociais definidos como primitivos) como no espaço da galeria e da arte contemporânea num sentido mais amplo. Face às leituras mais «artísticas» de kester e Bishop, Sansi propõe uma aproximação antropo- lógica à questão da oferta e da gratuidade apoiada nos textos clássicos de Marcel Mauss e Jacques Derrida, mas também influenciado por Raoul Vaneigem e pelo espírito da Internacional Situacionista. A partir destes referentes, Sansi questiona a existência de ofertas ou dádivas puras e gratuitas, ao mesmo tempo que reivindica o potencial subversivo daquilo que é dado sem estar ligado a um preço. A partir de uma perspectiva pouco comentada, consegue relacionar os debates actuais sobre arte participativa e relacional com temas «clássicos» da antropologia. Deste modo, no texto confluem a história da antropologia, as discussões sobre a autonomia da arte, a interpretação da obra de artistas participativos e de processos colaborativos ou a cultura digital. Particularmente interessante é a reflexão sobre o conflito entre o carácter volitivo da dádiva e a obrigação que leva associada — assente no velho modelo explicativo maussiano da obrigação de dar, receber e devolver —, assim como a ligação estabelecida entre a dimensão simbólica da dádiva e questões de labor, autoria artística e poder institucional.
O terceiro bloco do presente volume, «Contextos e ocupações», é dedicado à relação entre arte e activismo. Se bem que a relação arte-política constitua o fio condutor ao longo de todo o volume, é sem dúvida nesta última parte que a possibilidade dos artistas intervirem e mudarem a sociedade se torna absolutamente mais visível. Em grande medida, essa proximidade deve-se ao facto de os autores traduzidos estarem a meio caminho entre a produção artística, o activismo político e o pensamento crítico. Nos três textos que fecham o livro existe um questionamento constante do lugar de análise, assim como uma vontade de conceber a prática enquanto mais uma forma de teoria e de crítica.
Além disso, os três textos fazem um esforço particularmente intenso para evitarem definições e posicionamentos críticos universais, derivando da participa- ção directa em acções e movimentos colectivos. Gregory Sholette, Brian Holmes e Diana Taylor têm mais um elemento em comum: a sua ligação a redes transnacionais de activismo que se estendem a espaços tradicionalmente excluídos das histórias oficiais da arte. Sholette, por exemplo, desenvolveu trabalho artístico e colaborou em iniciativas pedagógicas na Ucrânia e no Líbano; Holmes tem seguido com particular atenção processos de mobilização subversiva e criativa no Cone Sul; e Taylor constrói a sua visão da performance e do performativo a partir de um conhecimento directo da arte «das Américas» e da sua posição de destaque na coordenação do Hemispheric Institute — Instituto Hemisférico da Performance e Política. Em todos os casos, portanto, encontramos um interesse semelhante em incluir exemplos não europeus e estadunidenses naquilo que tem vindo a chamar-se «social turn». A capacidade de pensar em diálogo, dentro e fora do âmbito imediato da acção e do pensamento de cada autor, evidencia-se em todas as vozes deste livro mas une especialmente os autores destes três últimos ensaios.
Desde os anos 80, Gregory Sholette tem participado na criação de colectivos artísticos e activistas nos EUA. «Occupology, Swarmology, Whateverology: The City of (Dis)Order versus the People’s Archive» é um texto clássico que responde a esse compromisso mantido ao longo das décadas. Sholette constata as continuidades e as heranças existentes entre diversas causas e movimentos, e consegue, tal como Expósito, ligar a experiência «urgente» e imediata de Occupy Wall Street a uma genealogia mais ampla e mais longa de insubordinação artística. Escrito desde «a trincheira» de OWS, com a materialidade da partilha e a utopia como tela de fundo, «Occupology…» fala da reacção do poder perante a ocupação pacífica do espaço público; da relevância social da arte quando se atreve a sair do seu lugar institucional de conforto; da relação entre o real e o ficcional enquanto motor de mobilização cidadã; e, finalmente, da capacidade resiliente do comum, capaz de aparecer sob múltiplas faces e em contextos em princípio menos favoráveis.
Brian Holmes começa o seu texto «Eventwork: The Fourfold Matrix of Contemporary Social Movements» questionando a relação entre arte e vida. A relação entre presença no espaço público e aspectos de ocupação do tempo e de precariedade do trabalho artístico que encontramos no texto de Sholette adquire aqui a forma de pergunta sobre o potencial organizativo dos movimentos sociais. A base social destes movimentos exige, para Holmes, que se torne objecto de exame pormenorizado, assim como a permanente tensão entre ruptura e continuidade com disciplinas e compartimentalizações epistemológicas. É particularmente eloquente o facto de Holmes tomar como exemplo respostas artísticas e activistas à ditadura peronista na Argentina: o modelo que Holmes utiliza para iniciar um percurso onde aparecem ACT-UP e Ne Pas Plier, Douglas Crimp e o Fórum Social Mundial encontra-se longe do já referido medo ao compromisso directo que kester reconhecia numa corrente da vanguarda histórica. Aqui, pelo contrário, assistimos a uma exploração bem diferente do potencial da participação, baseada no potencial subversivo da auto-organização.
O texto que encerra o volume corresponde ao livro Performance de Diana Taylor. Igualmente, como no caso anterior, diferentes contextos latino-americanos (México, Argentina, Guatemala) centram a atenção da autora. Os exemplos referenciados, igualmente, encontram-se nas fronteiras entre arte e acção directa. É o caso dos escraches na Argentina ou da inclusão da performance em campanhas políticas de candidatos progressistas no México. Taylor concebe a performance como uma ferramenta de intervenção e luta que frequentemente põe em risco a posição privilegiada do artista e torna impossível qualquer distanciamento perante a realidade. Taylor utiliza o caso da artista guatemalteca Regina Galindo como referente de uma maneira de fazer arte dificilmente categorizável. Galindo não se considera activista, mas a sua obra tem uma ampla relevância social. A própria artista, assinala Taylor, «não acredita que o seu trabalho mude nada, mas sabe que deve continuar a fazê-lo.» Galindo oferece, assim, um claro exemplo das dificuldades que encontramos na hora de categorizar modelos de arte socialmente comprometida. Taylor analisa a sua intervenção em busca das «consequências no mundo» da acção artística, e encontra um modelo de intervenção marcado pelas conotações éticas do operar com outras pessoas. É desde essa perspetiva que Taylor lê, na obra de Galindo e nos grupos activistas mexicanos e argentinos, um referente artístico baseado no risco, mas também na responsabilidade social dos seus impulsores.
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Finalmente, não queremos acabar este texto sem colocar algumas questões pragmáticas na construção deste livro. A escolha de textos visou cobrir de maneira abrangente um amplo leque de debates geralmente postos em relação nas discussões sobre arte, política e transformação social. De nenhuma maneira supõe a nossa escolha um registo exaustivo das posições, temas e abordagens possíveis em relação às questões discutidas. A obra de autores como Miwon kwon, Shannon Jackson, Rosalyn Deutsche, George Marcus, Lucy Lippard, Guillermo Gómez-Peña, Doris Sommer ou Arndt Schneider, entre outros, tem influenciado amplamente a nossa aproximação à arte socialmente comprometida, e os itinerários analíticos de alguns destes autores aparecem de forma indirecta nos textos agora traduzidos. Ao longo da última década houve um incremento exponencial do número de publicações à volta do chamado social turn. Se bem que tenhamos assistido a uma consolidação e estandardização de conceitos e exemplos, a heterogeneidade de vozes e aproximações e a vitalidade de causas sociais impulsionadas ou veiculadas por artistas e agentes culturais evidencia a relevância da arte no momento de pôr em tensão barreiras institucionais ou normativas. Os autores anteriormente mencionados e muitos outros partilham este objectivo com os ensaios incluídos neste volume. A nossa selecção poderia parecer igualmente mainstream em termos geográficos e temporais — e, em última instância, é-o. Mas queríamos neste volume disponibilizar contribuições fundamentais de autores que — produzindo a partir do centro — ainda hoje são difíceis de encontrar em português. Originalmente concebemos este livro como um de vários volumes a editar e, nesse sentido, como o preâmbulo de uma discussão muito mais ampla, cujo lugar de enunciação nunca poderá ficar limitado a uma única área geográfica ou a uma genealogia.
Concluímos esta introdução com alguns detalhes práticos sobre a tradução. De modo a uniformizar o resultado final do volume, escolhemos traduzir todas as citações em línguas estrangeiras. Decidimos ainda traduzir todas as citações contidas nos textos que fazem parte deste volume. Se não for indicado o contrário, tal tradução é da responsabilidade dos dois organizadores.
A escolha dos textos foi difícil, e muitas outras poderiam ter sido as opções. Gostávamos de agradecer a disponibilidade de Miwon kwon e Shannon Jackson, que acederam à tradução de um fragmento de One Place after Another e Social Works, respectivamente, mesmo que o processo ficasse interrompido nas negociações com as editoras desses livros, e do mesmo modo com Guillermo Gómez-Peña, George Marcus ou André Lepecki cujos direitos sobre os seus textos incluídos em revistas não foram possíveis de ser cedidos.
O último elemento a esclarecer tem a ver com a escolha dos textos, e particularmente com termos mantido o foco do presente livro na genealogia mais conhecida da arte socialmente comprometida. Um dos principais objectivos que perseguimos através deste livro é o de disponibilizar em português uma série de textos clássicos que são de referência obrigatória no debate actual sobre arte e política. Isto não torna os textos únicos ou exclusivos, nem invalida outras genealogias e aproximações aos mesmos temas feitas a partir de contextos diferentes. É nossa intenção dar continuidade a este trabalho através da tradução e circulação de mais materiais oriundos de outras genealogias e latitudes e que ajudem a contextualizar e expandir a conversa que agora aqui se iniciou.
Introdução do livro Carlos Garrido Castellano e Paulo Raposo (orgs), Textos para uma história da arte socialmente comprometida, Lisboa: Sistema Solar, 2019.
- 1. No Brasil, a expressão arte engajada tem um uso frequente e ilustra, em nosso entender, de forma mais clara e com outro potencial, a dimensão activa e de agência interventiva na realidade social que certas práticas artísticas têm vindo a assumir na contemporaneidade. Em Portugal, porém, o termo engajado ou engajamento não é muito usual e não transporta os sentidos que se desenham no Brasil. Daí a opção de tradução por arte socialmente comprometida.
- 2. Este termo — «social turn» — foi cunhado pela historiadora e crítica de arte Claire Bishop, em 2006, num já famoso artigo publicado na revista Artforum com o título «The Social Turn: Collaboration and Its Discontents». Outros autores como Tania Bruguera, Alistair Hudson, Charles Esche, Stephen Wright, entre outros, preferem chamar-lhe «Arte Útil». Outros preferem seguir a sugestão de Nicolas Bourriaud e falar de «arte relacional» ou sublinhar os aspectos colaborativos, participativos ou colectivos. Outros ainda introduzem a dimensão de activismo político e escolhem um neologismo como «artivismo» para ilustrar este tipo de projectos artísticos de compromisso social.
- 3. Na verdade, este debate tem uma genealogia mais profunda com uma datação mais longa que lança a discussão da função política e social da arte para os prelúdios do modernismo europeu, no final do século XIX, quando vários artistas se posicionaram politicamente e procuraram de alguma maneira transformar as sociedades em que viviam. Através de um questionamento político visível nas suas práticas artísticas a arte manifestava posições e intervinha no mundo — recordemos apenas a título de exemplo nomes como Alfred Jarry, Antonin Artaud ou Bertold Brecht nas artes performativas, de Picasso a Duchamp nas artes plásticas, ou de Flávio de Carvalho a Joseph Beuys na arte da performance ou ao movimento da Bahaus na arquitectura ou Dadá na poesia, entre muitos outros. Também claras imputações políticas podem ser vistas nos manifestos e nas práticas artísticas do movimento situacionista no final dos anos 60 na Europa ou do movimento Fluxus na Europa e nos Estados Unidos nos anos 60 e 70. Arte e dimensão social estiveram e estão ainda presentes nos movimentos de base comunitária que se expandiram por vários contextos geográficos e em vários domínios da arte.
- 4. Este modelo governativo tem a sua origem nos ensaios do sociólogo e economista social-democrata sueco Gustav Myrdall, que em 1932 defendeu que as modernas políticas de apoio social deviam ser entendidas como investimentos e não como gastos. Tratava-se da implementação de políticas públicas governativas preventivas e profilácticas que visavam não apenas a distribuição de rendimento ou colmatar as assimetrias sociais, mas também evitar problemas político-sociais. É um tipo de organização política e económica que coloca o Estado como agente da promoção social e organizador da economia designado por Estado-Providência. O seu desenvolvimento posterior à II Guerra Mundial, nos Estados Unidos, decorreu da implementação do pensamento keynesiano e ficou conhecido como «Welfare State», garantindo o bom funcionamento do mercado, mas simultaneamente oferecendo aos cidadãos direitos na saúde, educação, alimentação, habitação, entre outros. Os modelos governativos neoliberais que se foram constituindo a partir dos anos 70, após a crise económica petrolífera (1973) e os efeitos da Guerra do Vietname na economia norte-americana, têm vindo a desmantelar estes pressupostos reformistas e procuram tornar o mercado o regulador exclusivo e autónomo das economias, construído a partir de um modelo de capitalismo digital e sobretudo financeiro, diminuindo assim a intervenção e papel do Estado na economia e eliminando as políticas de benefícios e apoios sociais.
- 5. Título cunhado por Suzanne Lacy no seu livro Mapping the Terrain. New Genre of Public Art (1994) onde a autora define este novo género de arte pública como basicamente um activismo, frequentemente criado fora do contexto institucional o que leva o artista a formas de compromisso e relacionamento directo com a audiência, enquanto evoca temas políticos e sociais.
- 6. Shanon Jackson, Social Works: Performing Art, Supporting Publics. Londres e Nova Iorque: Routledge, 2011, 12.