Portugal deve pagar indemnizações pela escravatura?
Os países que escravizaram devem compensar os escravizados? Há quem diga que sim e até aponte um valor para uma indemnização: 30 triliões de dólares vezes 10 mil. Há quem diga que não, porque isso seria voltar à menorização dos colonizados. Antes disso, Portugal deve debater o seu passado esclavagista, dizem historiadores.
É um tema que tem vindo a debate regularmente, mas de que pouco se fala em Portugal. Devem os países que participaram na escravatura pagar indemnizações? Quem o deve fazer, quem deve ser indemnizado?
Em Maio, a organização Comunidade das Caraíbas (Caricom) reuniu-se na conferência da Comissão de Compensações/Reparações e incluiu Portugal na lista dos países europeus aos quais querem exigir indemnizações. Chegaram, na altura, a um programa de dez pontos que consideram essenciais para o processo de reparações: passa pelo pedido de desculpas formal, apoio ao repatriamento para África, criação de programas de desenvolvimento para indígenas, criação de instituições culturais, erradicação da iliteracia ou cancelamento das dívidas dos países africanos.
Há três semanas, a Caricom voltou a reunir-se em Antígua e Barbuda numa segunda edição da conferência e voltou a fazer as mesmas reivindicações. As negociações continuam e estão agora nas mãos do comité liderado pelo primeiro-ministro de Barbados, Hon Frendel Sturat, diz Verene Shepherd, presidente da Comissão Nacional para as Reparações da Jamaica e uma das três vice-presidentes da Comissão de Compensações.
Apesar de estar incluído na lista, Portugal ainda não terá tido uma abordagem formal da parte da Caricom, pelo menos que Shepherd saiba. Os países da Caricom são Antígua e Barbuda, Baamas, Barbados, Belize, Dominica, Granada, Guiana, Haiti, Jamaica, Montserrat, Santa Lúcia, São Cristóvão e Neves, São Vicente e Granadinas, Suriname e Trindade e Tobago. Além de Portugal, são pedidas indemnizações a Espanha, Reino Unido, França, Holanda, Dinamarca ou Suécia.
O próximo passo da Caricom será o envio de uma carta aos governos destes países europeus e uma terceira conferência com a Universidade de Essex em data a definir, mas que esperam ser em 2015, revela Shepherd. Assim, a revindicação não vai ficar por aqui. “A escravatura e o comércio de escravos foram um crime contra a humanidade”, diz a também professora de História Social, por email. “Houve uma política de genocídio deliberado contra os indígenas das Caraíbas. Aqueles que cometeram crimes contra a humanidade ou que se envolveram em actos de genocídio devem primeiro pedir desculpas e depois integrar um programa de justiça reparatória. Não há limite estatutário para um crime contra a humanidade e portanto os países europeus colonizadores nas Caraíbas e na América Latina devem responder por isso. A reparação é uma questão de justiça.”
No mínimo, aquilo de que precisamos é de maior transparência sobre quem beneficiou da escravatura e quanto
Thomas Piketty, economista
Nesta resposta, Shepherd aborda vários pontos polémicos que têm provocado acesos debates entre quem defende e quem é contra as reparações: é a escravatura um crime contra a humanidade? Pode ser considerada genocídio? Devem os governantes dos países comerciantes de escravos pagar hoje por um crime cometido até há dois séculos? O que há a reparar e como?
“No mínimo, aquilo de que precisamos é de maior transparência sobre quem beneficiou da escravatura e quanto”, diz o economista francês Thomas Piketty, autor do best-seller O Capital no Século XXI, numa curta resposta por email à Revista 2. “Isto implica a abertura dos arquivos públicos e privados e a criação de museus”, acrescenta.
Piketty, que em 2013 escreveu sobre a escravatura na sua coluna de opinião no Libération, defendendo “uma reparação pela transparência”, é a favor, “em alguns casos”, das “reparações directas e da transferência de bens”, esclarece à 2. Por exemplo, através da “reforma agrária em algumas antigas ilhas escravas como Reunião, Martinica ou Guadalupe, no caso francês”, ilhas que têm altos níveis de “desigualdade entre descendentes de escravos e descendentes de donos de escravos”. “A dimensão destes casos ainda está por saber”, conclui o perito em concentração e distribuição de riqueza.
Quanto renderam e valiam os 12 milhões de escravos que se calcula terem atravessado o Atlântico não se sabe. Mas há dados sobre as indemnizações “ao contrário”, como o valor pago pelo Estado britânico aos donos de escravos, quando a Inglaterra aboliu a escravatura em 1833: 20 milhões de libras (25,5 milhões de euros).
Isto é um dado relevante para uma discussão sobre as compensações, sublinha o britânico Nick Draper, autor de livros como Slave Compensation Records, The Price of Emancipation: Slave-Ownership, Compensation, Capitalism and Slave Ownership, ou British Society at the End of Slavery. “Mostra que os donos de escravos foram indemnizados, enquanto os escravos não receberam nada — hoje podemos dizer que a indemnização foi para as pessoas erradas.” Nick Draper é um dos investigadores associados do projecto Legacies of British Slave-Ownership, da University City of London, que disponibiliza online uma base de dados dos britânicos envolvidos no comércio de escravos — mas não toma posição sobre o tema das compensações. “Esses 20 milhões representavam entre 40% e 45% do valor das pessoas escravizadas”, acrescenta. Quanto vale isso hoje? “Depende do que se mede na inflação, qual o preço do pão agora e qual o preço do pão na altura: os 20 milhões da altura equivalem a 1,6/1,7 mil milhões de libras hoje. Se pensarmos em termos de salários e da média, esse número é dez vezes mais — seria 16/17 mil milhões de libras. E se pensarmos em termos de PIB e dívida pública os números ainda aumentam mais.”
Ser a favor ou não das reparações é uma questão que não tem uma resposta directa, nem simples. “O mundo hoje reflecte o que fizemos colectivamente como europeus há 200 anos, e uma das coisas que fizemos foi contribuir para o não desenvolvimento das Caraíbas”, reconhece Draper. “Sinto vontade de voltar atrás e tentar abordar algumas das heranças da escravatura? Claro. O programa da Caricom é sobre transferência de pagamentos da Europa para as Caraíbas. Não lida com a questão das diásporas no resto do mundo. A questão de como é extraordinariamente difícil, mas ainda nem estamos lá — estamos a debater o princípio. O resto é detalhe.”
Independentemente de tudo, o primeiro passo deve ser o reconhecimento da história britânica, acrescenta. “A identidade britânica está muito ligada à abolição e isso é importante, mas tende a minimizar a escravatura e o comércio de escravos. Os primeiros passos no Reino Unido são reconhecer, colectivamente, que a nossa história é marcada pela abolição, mas também pela escravatura.”
Em 2009, um parque de estacionamento estava a ser construído em Lagos, junto à Cerca Nova, no Vale da Gafaria, quando foram encontrados 150 esqueletos. Tratava-se de um cemitério de escravos africanos do século XV, o mais antigo conhecido no mundo e o único na Europa, segundo peritos.
Com a descoberta, o Comité Português do projecto UNESCO A Rota do Escravo propôs a criação do Museu da Escravatura, já que este achado “impunha uma atenção e uma preservação adequada do sítio”. Foi desenhado um pré-projecto de museu, com três núcleos — o mercado do escravo, um memorial no local do cemitério e um centro de estudos sobre a escravatura —, aprovado pela autarquia em 2011. Hoje, no local está um minigolfe, uma obra que teve parecer favorável do Igespar (Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico) em Dezembro de 2011, segundo a Câmara Municipal de Lagos. Diz a vereadora da câmara Fernanda Afonso que “o executivo continua determinado a projectar toda a temática que envolve a descoberta do cemitério, bem como o Museu da Escravatura”. Mas para Isabel Castro Henriques, historiadora especialista em escravatura, e presidente do comité, se a autarquia se tem preocupado com o museu, “já no caso do cemitério parece interessar -se mais por preservar oparking e o minigolfe”.
Isabel Castro Henriques conta este episódio para ilustrar o desinteresse que existe em Portugal pelo tema da escravatura, algo que começa no poder público. Se um achado arqueológico desta importância não gera interesse, então falar de reparações é um tema ainda mais obscuro. “A escravatura não é considerada uma questão que interesse à sociedade. Continua a haver uma desvalorização dos africanos”, diz.
Porque é que não houve em Portugal um debate sério e aprofundado sobre o envolvimento do país no tráfico de escravos e na escravatura?, pergunta o historiador Miguel Bandeira Jerónimo, que nota uma “reserva colectiva em abordar inúmeros aspectos relativos ao nosso passado colonial”, aos quais chama “lutos inacabados”, que têm sido sujeitos a todo o tipo de mistificações.
Dá como exemplo negligenciar-se o facto de não terem existido movimentos abolicionistas “com um mínimo de importância” no Portugal de 1800, e ignorar-se, sobretudo fora da academia, a existência da escravatura e de “condições análogas à escravatura” no “terceiro império colonial português” (1822-1975). O trabalho forçado só é legalmente abolido em 1962, diz. “Do mesmo modo, a história do envolvimento do Estado português no tráfico de escravos e na escravatura é um assunto relativamente ocultado.”
Por outro lado, como lembra Isabel Castro Henriques, é comum referir-se que Portugal foi o primeiro país a abolir a escravatura, pois o Marquês de Pombal, em 1761, decreta-a, mas “fá-lo para evitar que os escravos venham para Portugal, sendo desviados do Brasil, onde são essenciais ao desenvolvimento económico”.
Este não é um tema de debate, porque continua a predominar um olhar luso-tropicalista, um discurso oficial atenuante, analisa Rui Estrela, activista da Plataforma Gueto, uma associação contra o racismo e racismo institucional. Licenciado em Ciência Política, diz: “Portugal foi o primeiro país a levar a cabo esta engenharia financeira — porque as pessoas foram tratadas como activos financeiros — e é o único país onde não se debate esta questão.”
Se em Portugal o debate não existe fora da academia, nos países colonizados e emissores de escravos comercializados por Portugal o tema também não tem estado em cima da mesa. Miguel Bandeira Jerónimo lembra as palavras do representante angolano Georges Chikoti (hoje ministro das Relações Exteriores) na Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Relacionadas em Durban, em 2001, como um marco, ao dizer que era “necessário que a conferência identificasse a escravatura como crime contra a humanidade e que reparações têm de ser feitas às vítimas dessa tragédia”. O envolvimento dos portugueses, os “pioneiros do tráfico transatlântico de escravos”, devia ser notado, acrescentou.
Esta não é, porém, uma posição consensual. Em Luanda há o Museu Nacional da Escravatura desde os anos 1970, situado numa capela do século XVII onde se baptizavam os escravos antes de embarcarem. O historiador angolano Patrício Batsikama refere-o para dizer que serve de memória aos escravos que partiram de Angola. Porém, há muito por saber no estudo da escravatura, que “ainda não é exaustivo”, há apenas “algumas teses pouco sólidas para especificar a desumanização do angolano fora de Angola”.
Esse conhecimento é essencial antes de se “pensar no que se deve reparar”, defende, por telefone. “Se colocarmos na cabeça que alguém tem de reparar, estamos a sofrer um complexo de inferioridade.” O autor de O Reino do Kôngo e a Sua Origem Meridional defende que “talvez” as reparações devam começar pelos museus internacionais no Reino Unido, Portugal, Estados Unidos devolveram as peças “que foram roubadas” a países africanos como Angola. “Não é a minha geração nem a geração vindoura que vai saber o que de facto foi estragado com os escravos angolanos e que é preciso reparar.”
A partir da instituição que dirige, a Escola Portuguesa em São Tomé, e com o som do recreio como barulho de fundo, a historiadora Isaura Carvalho diz-nos ao telefone que “não faz sentido pedir reparações a estas gerações, cujos dirigentes não participaram directamente” na escravatura. “Há coisas que são irreparáveis: pior do que os danos materiais foram os danos a nível da nossa auto-estima, das mentalidades e da capacidade de decidirmos por nós”, acrescenta.
Isaura Carvalho lembra que a seguir à escravatura veio o domínio colonial, ou seja, foram séculos em que o povo são-tomense foi impedido de pensar, de ser livre, de decidir, e isso é algo interiorizado, que passa de geração em geração. “Ainda hoje há dificuldade de dirigentes africanos se afirmarem junto de dirigentes europeus. São conhecidos pelos corruptos que não gerem bem as finanças e não conseguem tomar em mãos as decisões do país, que continuam a depender do exterior.” Resume, partilhando um ponto de vista parecido com o de Batsikama, que a reparação, “nos moldes em que tem estado a ser vista, cria mais uma forma de dependência”. “Porque vamos continuar a depender desses países para resolver os nossos problemas. [É dizer]: ‘Okay, eles estiveram a explorar-nos durante anos, eles que tratem de nós.’ E voltamos à menoridade. Sabemos que estamos a sofrer as consequências do passado, mas temos que ter uma outra atitude. Se continuarmos com o discurso dos coitadinhos, não vamos lá, é uma boa facada na nossa auto-estima outra vez.”
O historiador Luís António Covane, que foi vice-ministro da Cultura (2000-2004), vice-ministro da Educação e Cultura (2005-2009) e é reitor da Universidade Nachingwea desde 2011 (uma instituição privada da Frelimo), lembra que no estudo da história de Moçambique se classifica a exploração mercantil portuguesa em três fases: a fase do ouro, a do marfim e a dos escravos. “A nossa escravatura culminou com um processo de colonização e, em vez de se mandarem as pessoas para fora, elas passaram a ser exploradas dentro do seu próprio território: o trabalho forçado e outro tipo de escravatura interna, pessoas que trabalhavam sem salário, violência das exportações de pessoas para as plantações, para as minas de ouro e diamante na África do Sul e principalmente aqui dentro.” O sistema colonial português, principalmente durante a fase do fascismo e do nacionalismo económico que impôs medidas para a produção de matérias-primas nas colónias, foi alimentado com este esquema, acrescenta.
Pensar em reparações exige fazer contas. E estas, diz, “serão as contas mais difíceis que a humanidade será obrigada a fazer”: “Quanto custa uma vida? Quanto custa uma grávida? Quanto custa um homem que era chefe do seu povo e foi exportado? Abrangeu imperadores, príncipes, rainhas, soldados, generais que foram deportados de forma indiscriminada. Estas contas entram naquela página que são os erros cometidos no passado e devemos fazer tudo para que não se repita.”
As contas seriam difíceis de fazer também por uma questão territorial, lembra o historiador guineense a viver em Portugal Julião Sousa. “Não creio que haja lugar a indemnização de ninguém: a Guiné era uma grande extensão de território que foi variando ao longo do tempo, não tinha limites definidos. Se houvesse uma indemnização, Portugal iria entregar isso a quem? Os países que existem agora ao longo da costa africana não existiam enquanto países com fronteira definida… Teria de pagar a quem? À Guiné actual? E o Mali? E o Gana? E o Senegal?”
Com uma realidade diferente de países como a Guiné onde já existia uma população residente, Cabo Verde foi sendo habitado por população trazida de outros países africanos e por portugueses brancos. André Corsino Tolentino, embaixador cabo-verdiano, sublinha que “a escravatura se deu de forma diferente” neste arquipélago. “Em 1466 houve os primeiros núcleos destinados à América do Sul e Central. Eram iniciados em Cabo Verde até para acrescentar valor comercial. O escravo boçal, considerado inferior, era usado para ser ladinizado — ou seja, para ensinar a cultura ocidental, fazer a conversão à religião católica, ensinar as artes de servir. Um escravo ladino valia mais do que um escravo boçal. Depois de iniciado em actividades agrícolas, artesanais, etc., o escravo continua a ser exportado e reexportado para o Brasil e Caraíbas.”
Mas Tolentino toca num ponto polémico que é usado por quem é contra as reparações: o facto de os próprios africanos terem participado no comércio de escravos. Diz: “Os escravocratas foram nacionais e estrangeiros.”
É Miguel Bandeira Jerónimo quem recorda a posição do académico afro-americano de Harvard Henry Gates num artigo escrito em 2010 para o New York Times, sustentada nos trabalhos dos historiadores John Thornton e Linda Heywood (centrados na história colonial, sobretudo relativa ao Congo e a Angola): só uma “complexa cooperação comercial entre elites africanas e comerciantes e agentes comerciais europeus” permitiu o tráfico transatlântico de escravos com a dimensão que teve. Uma teoria que Henry Gates continua a defender, cinco anos depois, como disse à Revista 2 por email. Bandeira Jerónimo comenta: “Esta é uma ‘verdade triste’ [expressão de Gates] que agrada pouco a cada um dos lados da barricada. Mais, torna a resposta prática à questão das reparações incómoda. Face ao que sabemos com rigor, quem deve pagar?”
O americano Ron Daniels, do Institute of the Black World 21st Century (IBW), responde indirectamente a Gates, por telefone: “A questão é: quem iniciou e quem beneficiou? Não foram os africanos.” Rui Estrela defende que a participação dos africanos não retira o cunho racial à questão. “É como discutir se um polícia negro pode ser racista — sim, pode. Esse foi, aliás, o trabalho de Frantz Fanon sobre as mentalidades coloniais, sobre quanto tempo depois perdura a mentalidade servilista e colonialista.”
(…)
Continuar a ler o artigo originalmente publicado no jornal Público na edição de 9 de Novembro.