Racismo: Portugal, um país em negação
O vídeo no bairro da Jamaica, Seixal, onde se vê a PSP em confronto com uma família trouxe ao debate a questão sobre se há racismo em Portugal. A pergunta não deve ser se há racismo, mas quão racistas somos. Aquela senhora atirada ao chão pela polícia podia ser a nossa mãe?
Dia 20 de janeiro de 2019, domingo: um vídeo começa a circular no Facebook logo cedo pela manhã, em mensagens e murais de pessoas que não se conhecem. É preciso visioná-lo várias vezes para perceber bem o que mostra dos acontecimentos dessa madrugada no bairro da Jamaica, Seixal. Uma carrinha da PSP estaciona e vários homens fardados saem. Um deles calça umas luvas. Depois, ao longe, vê-se um homem negro mais velho, de camisa azul, trazendo um jovem pelo braço. Mal se aproxima, é abordado de imediato pelo agente da PSP com dois socos e uma joelhada. Não há qualquer sinal de resistência ou de agressão da parte do homem que, saberemos mais tarde, chama-se Fernando Coxi e tem 63 anos. O jovem — seu filho, Hortêncio — terá atirado uma pedra, acusam os polícias, e será depois detido. A família reage: a mulher, Julieta Joia, 52 anos, vai em sua defesa e é empurrada por um polícia, cai ao chão de imediato; a filha também intervém no conflito e fica igualmente deitada, depois de empurrada. As imagens são desoladoras: duas mulheres humilhadas pela polícia, caídas no chão, obviamente indefesas nos seus corpos esguios. Quando no dia seguinte à tarde, 21 de janeiro, centenas de jovens negros vindos de vários concelhos da Grande Lisboa marcharam na Avenida da Liberdade, traziam uma “bandeira” comum: estavam ali porque “podia ser a minha mãe”, disseram.
A revolta com a agressão policial àquelas mulheres, sobretudo a mais velha, fez sair à rua gente de entre 18 e 20 e poucos anos que nunca tinha ido a uma manifestação na vida. Viram-se cartazes contra a “brutalidade policial”, uma bandeira de quem está habituado a ter a PSP a entrar nos bairros da periferia de Lisboa, a encostar jovens contra a parede e a revistá-los ou simplesmente a mandá-los parar à saída da estação de comboios porque os acha suspeitos por uma única razão: são negros. É preciso falar com quem vive às portas de Lisboa em sítios onde o Estado só entra da forma policial e quando o faz é para reprimir para perceber o quanto aquelas imagens soaram familiares a tanta gente.
O protesto acabou com a polícia a atirar balas de borracha e a lesionar alguns manifestantes, depois de ter acusado jovens de atirarem pedras e acertarem na PSP. Há neste momento quatro jovens, com mais ou menos 20 anos, a serem julgados por isso. Alguém acredita que algum agente da PSP abordaria um pai de família branco daquela maneira violenta num bairro no centro de Lisboa? Alguém acredita que um agente da PSP se atreveria a empurrar uma mulher branca com tanta força que ela caísse ao chão? Alguém teve dúvidas, em 2015, quando viu as imagens de um adepto do Benfica à porta do estádio de Guimarães a ser agredido pela PSP de que se tratou de abuso? Porque é que depois de o vídeo do Jamaica se ter tornado viral se ouviu tanta gente, da esquerda à direita, dizer que era preciso esperar pela investigação para criticar a polícia? Mas estamos a falar do Jamaica, um território que é classificado pela PSP como “zona urbana sensível”, ou “bairro problemático”, designação que já de si rotula e estigmatiza.
No bairro da Jamaica — ou Vale de Chícharos – vivem dezenas de famílias sobretudo de origem africana e negras há anos. São vários blocos de prédios em tijolo laranja, com o miolo escancarado, edifícios inacabados, fios elétricos à vista mas sem luz no interior. Há prédios em que as caixas de elevador que nunca foram lá postos são autênticos alçapões, buracos onde qualquer criança pode cair. Isto é a Grande Lisboa que não vem no cartão-postal. Só ao fim de 30 anos é que as famílias estão agora a ser realojadas, mas até o processo terminar o Jamaica continua a ser uma espécie de lugar de ninguém. É por isso que ouvimos políticos dizer que desconheciam a sua existência. O Jamaica e quem lá vive foram atirados para a terra da invisibilidade. Não é o único com estas características às portas de Lisboa: há, por exemplo, o 6 de Maio, na Amadora, o bairro da Torre, em Loures, o Terras da Costa, em Almada, estes dois últimos sem saneamento básico. O que têm em comum? Serem habitados maioritariamente por mulheres e homens negros.
Em Portugal, a segregação tem rosto e tem cor. E não é apenas na habitação. Quantas mulheres negras e ciganas já foram capa desta revista e quantos já escreveram para ela? Quantas mulheres e homens negros e ciganos trabalham no jornal onde eu escrevo, o Público? Quantas mulheres e homens negros e ciganos estão na Assembleia da República e quantos estão a liderar as grandes empresas, os grandes grupos económicos, os projetos de investigação académica, a dar aulas nas universidades? E agora, as perguntas ainda mais difíceis: quantos de nós, mulheres e homens brancos, já desvalorizámos a opinião, o currículo, as competências, a capacidade económica, a possibilidade de crescimento profissional de alguém que não era branco?
Embora Portugal seja um país em negação, preferindo vangloriar-se com o seu passado de descobertas e de colonizador sem ter consciência de que isso implicou a ocupação de territórios e a dizimação de populações inteiras, o manto do racismo vai-se estendendo e tornando cada vez mais visível. Casos como o do bairro da Jamaica servem para escancarar a ferida. Como muitos países, vivemos aquilo que se chama racismo estrutural, ou seja, quando a discriminação não é algo que se circunscreve às relações interpessoais e ao preconceito mas ultrapassa a nossa vontade. O racismo atravessa a sociedade e as instituições que reproduzem comportamentos que favorecem uns (os cidadãos brancos) e discriminam outros (os cidadãos não brancos). Como o machismo, é um polvo com tentáculos que não deixa muitos de fora, inclusivamente aqueles que tão arduamente se batem contra. E é por isso que a única pergunta a fazer não é se em Portugal há racismo — como há machismo —, mas quão racistas são as estruturas que a sociedade criou e que nós cidadãos reproduzimos, voluntária ou involuntariamente. Mas como diz a americana Jane Elliott, autora de inúmeras experiências, se se quer medir o nível de racismo de uma sociedade a primeira coisa a fazer é experimentar ser discriminado — um dos seus exercícios mais didáticos consiste em dividir uma sala de aula entre quem tem olhos castanhos e olhos azuis e exercer discriminação arbitrária.
Certo é que as raças biologicamente não existem, são uma construção social fortíssima criada para hierarquizar. O racismo é acima de tudo uma questão de poder e é por isso tantas vezes confundido com a discriminação social. Se olharmos para a estrutura de classes socioprofissionais, onde estamos habituados a ver as mulheres e homens negros? Em que tipo de trabalhos? Quem são as mulheres que acordam todos os dias de madrugada, se metem em comboios e camionetas a caminho do centro da capital, limpam os escritórios e desaparecem, como se fossem invisíveis, ainda muitas horas antes de o dia de trabalho começar para toda a gente? E quem regressa no fim, já estamos todos em casa, para terminar de limpar? Quem é que atende nas caixas de supermercado, nas cadeias de comida fast-food? Para onde foram os jovens negros colegas dos nossos filhos no secundário? Porque não seguiram para a universidade e ficaram pelas vias profissionais? O que é que está a acontecer a esta geração que nasceu em Portugal, mas que tantas vezes é tratada como imigrante?
Este desequilíbrio de forças no País dos brancos costumes não se deve apenas a uma questão social, mas racial. Foi por isso que, para desconstruir o mito que alguns perpetuam de que em Portugal o racismo afeta sobretudo as pessoas pobres, centrei as reportagens que deram origem ao livro Racismo no País dos Brancos Costumes (Tinta-da-china) em pessoas da classe média. Em 2017 fui à procura de exemplos na habitação, na educação, no emprego, na justiça que ilustrassem a discriminação. E assim descobri as histórias de Amélia Costa Injai, Mamadou Ba, William Fernandes e Inocência Mata, uma pequena amostra de tantas outras que se repetem diariamente em Portugal.
Amélia, na altura com o apelido Costa, enviou o currículo para responder a uma candidatura de emprego numa instituição bancária. Não pôs a fotografia, foi chamada e depois de um processo de seleção acabou por ser contratada. Percebeu na entrevista que o chefe tinha ficado de pé atrás, e um dia tomou coragem e perguntou-lhe diretamente se ele tinha hesitado por ela ser negra. Ele foi frontal e disse que sim, que o banco tinha a política de não contratar nem negros, nem brasileiros, e que se ele tivesse visto a fotografia dela não a teria chamado.
Mamadou Ba tentou durante meses procurar uma casa no centro de Lisboa. Não conseguia. Fizemos um teste: Mamadou Ba, que tem sotaque por causa da sua origem senegalesa, telefonava para o senhorio de uma casa disponível para arrendar e de seguida o repórter de imagem Frederico Batista, com sotaque lisboeta, fazia o mesmo. Três dos cinco supostos senhorios não os trataram de forma igual. A Frederico Batista davam logo a morada, por telefone ou por SMS; a Mamadou Ba ficavam de enviar e não enviavam. Um dos senhorios foi mesmo explícito a dizer-lhe que o apartamento já tinha sido alugado — uns segundos depois Frederico Batista ligou e marcou uma visita para o dia seguinte.
William Fernandes, ex-aluno do colégio Planalto, estudante de Arquitetura em Londres, estava de férias em Lisboa e deixou a mãe à porta de casa antes de estacionar o carro. Sem nada fazer, foi mandado parar por dois polícias, levado para a esquadra por causa de uma carta de condução que os agentes insistiam que não era válida — mais tarde uma juíza deu razão a William. Ele não teve dúvidas sobre a única razão de ter sido considerado suspeito.
Inocência Mata, professora doutorada na Faculdade de Letras de Lisboa, estava no Hospital de Santa Maria e perguntou a uma enfermeira que passava onde era um serviço. Ela respondeu com outra pergunta: “Está ali indicado na placa, sabe ler?”
Isto são histórias do Portugal de hoje. São amostras de um fenómeno muito mais dominante e transversal do que a maioria quer fazer parecer. São também exemplos de quando o racismo não se limita à expressão de ódio de “p… vai para a tua terra”, mas afeta as oportunidades na vida das pessoas. E criam um desequilíbrio entre quem tem acesso ao poder e quem não tem, quem consegue abrir um livro de História, ligar a televisão, ir ao cinema e ver-se representado e quem não tem esse privilégio. É por isso que tanta gente negra ao ver aquele vídeo do bairro da Jamaica apontou: “Podia ser a minha mãe.”
Artigo publicado originalmente por Vogue a 15/03/2019