Prefácio ao livro "Angola na imprensa portuguesa"
O livro de Carlos Alberto Alves apresenta uma seleção de publicações periódicas de Figueiró dos Vinhos, Leiria e Pombal sobre Angola entre 1931 e 2000, abrangendo todo o período do Estado Novo, a guerra de independência, a descolonização, a alçada ao poder do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), a dinâmica dos retornados em Portugal e as guerras civis em Angola. No decorrer das páginas, o leitor irá deparar-se com múltiplos olhares, que vieram a público em sete títulos de diferentes orientações editoriais. Em decorrência desta pluralidade, há textos publicados em Leiria entre 1931 e 1932 no jornal republicano Linha Geral, assim como escritos que vieram a lume no jornal católico O Mensageiro, no intervalo de 1934 a 2000. Contudo, a maior parte dos títulos – a saber: A Regeneração (Figueiró dos Vinhos, 1935-1973); Gente Livre (Leiria, 1933); Notícias de Pombal (1954-1964); O Eco (Pombal, 1960-2000) e Voz do Arunca (1980) – definia-se como um órgão de imprensa “defensor dos interesses locais”. Esta definição poderia compreender tanto o município e suas adjacências, como, num perímetro ampliado, a região do distrito de Leiria. Vale, contudo, ressaltar que, apesar de se definirem como publicações locais, alguns desses periódicos circulavam no âmbito nacional e, por vezes, possuíam assinantes nas colónias. É o caso de A Regeneração, que, possivelmente, pela sua linha editorial, mais próxima dos valores da Primeira República, atraía leitores para além das imediações de Figueiró dos Vinhos.
Entre os escritos sobre Angola, nos setes jornais selecionados por Carlos Alberto Alves para compor esta obra, há notícias de acontecimentos que tiveram lugar na colónia (por vezes enviadas por correspondentes locais); crónicas; artigos de opinião; relatos de viagem; memórias, entre outros, o que denota que a colónia era presença recorrente na imprensa regional. Esse mosaico ajuda a conformar representações construídas acerca de Angola nos espaços de circulação dos jornais, merecendo um exame mais atento do investigador que se ocupa de tais temas no período. As fontes históricas escritas a que o historiador costuma recorrer, ao estudar as construções das representações e do imaginário no contexto colonial, são obras literárias, relatos de viagem ou, ainda, jornais e revistas publicados nas principais cidades, por serem consideradas mais representativas do discurso oficial ou por, supostamente, terem um alcance mais vasto.
Porém, na prática, a aquisição de livros revela-se particularmente dispendiosa para a população que reside fora dos principais centros, situação que pode ocorrer também com a compra de periódicos, que, além deste inconveniente de ordem material, privilegiam conteúdos que, por vezes, pouco dizem a quem vive fora das grandes cidades. Tal como sustenta o sociólogo José de Souza Martins, para aqueles que não vivem nos grandes conglomerados urbanos, mais importa uma pequena notícia que afeta o quotidiano local, como uma ponte local que se parte, do que um grande acontecimento de foro internacional.
Levando em conta tais asserções, torna-se ainda mais significativo que a imprensa destas localidades tenha tratado Angola regularmente ao longo de décadas. De certa forma, é porque a colónia não era tida como tão distante e apartada da realidade local, não obstante o estranhamento e o exotismo que marcam o olhar colonial. Guardadas as proporções das escalas, e longe de desprezar as assimetrias do processo, as imbricações provocadas pela situação colonial fazem com que não seja possível explicar a história da metrópole prescindindo da colónia e vice-versa, configurando o arranjo que Edward Said chamou de “territórios sobrepostos, histórias entrelaçadas”.
Ao longo do século XX, Angola foi a colónia portuguesa com o maior contingente de população branca, índice que foi crescendo no decorrer das décadas. Para se ter uma ideia, em 1930, havia 30 mil europeus em Angola (menos de 1% da população); em 1940, eram pouco mais de 44 mil (menos de 2% da população); quase 79 mil em 1950 (quase 2% dos habitantes); 172,5 mil europeus em 1960 (quase 3,5% da população) e, em 1970, com a guerra de independência, a população europeia em Angola atingiu a sua maior marca, sendo composta por 290 mil pessoas (pouco mais de 5% da população). Segundo Fernando Tavares Pimenta, a esta altura, Angola era o segundo território com maior população branca em África, ficando atrás, apenas, da África do Sul, onde viviam 3773 mil europeus (pouco mais de 17% dos habitantes).
As migrações para Angola dizem respeito a Figueiró dos Vinhos, Leiria e Pombal, na medida em que afetaram diretamente esses municípios e suas adjacências. Para se ter uma ideia, na década de 1940, a província da Beira Litoral, onde fica o distrito de Leiria, era o terceiro principal ponto de origem dos portugueses com destino a Angola: 14,53% dos metropolitanos que, na altura, viviam na colónia eram provenientes dessa localidade, atrás apenas da Estremadura (15,58%) e da Beira Alta (18,93%). Na década de 1960, com o advento da guerra e o consequente deslocamento de contingentes militares para o combate, dos 22 distritos de origem, Leiria ocupava o décimo terceiro lugar, correspondendo a 3,86% dos distritos de origem. Esses números demonstram que as conexões que ligavam os habitantes dessa região ao maior dos territórios no Ultramar era anterior à guerra e perdurou com ela. Emigrar podia querer dizer deixar para trás toda uma rede de afetos, correligionários, bem como de desafetos, que ansiava por saber mais sobre as condições em que se encontrava quem partiu, enquanto aguardava por uma correspondência, um telefonema, ou notícias por intermédio de terceiros. Nesse sentido, mesmo que o território de Angola estivesse a milhares de quilómetros de distância, havia interesse sobre ele, suscitado em decorrência das emigrações.
Alguns dos jornais que integram este livro dedicaram, com regularidade, páginas e páginas a Angola, por décadas a fio, sinalizando que o tema atraía o público leitor, assim como a longevidade desses títulos de imprensa local, que não pode ser considerada vulgar. Uma análise da população alfabetizada no distrito de Leiria revela algumas peculiaridades em relação ao cenário nacional: entre o público masculino, o índice de alfabetização pode ser considerado intermédio, se comparado com os demais distritos, com um ligeiro aumento entre os anos de 1930 (39,1%) e 1960 (73,5%) em relação à média nacional. Já a percentagem de leitoras no distrito fica entre as mais baixas do país: em 1930, apenas 18,6% das mulheres sabia ler e, em 1960, perfaziam o total de 56,3%. Assim, é possível aventar a hipótese de que, na região, o público leitor dos jornais tinha, em média, uma proporção de homens maior do que a média nacional nesta altura.
A guerra de independência e, em especial, o 25 de Abril trouxeram mudanças notáveis em relação aos conteúdos publicados sobre Angola. Estes continuaram a ser parte do leque de assuntos de que os jornais de Figueiró dos Vinhos, Leiria e Pombal se ocupavam, mas, entretanto, o olhar é marcadamente distinto. Em 1951, o jornal O Mensageiro publicou um artigo intitulado “O soba da ilha de Luanda ou um Português que muito amou Portugal”, no qual, a partir de um olhar marcadamente colonial, o seu autor, Hugo Rocha, retrata um velho soberano de Angola. A caracterização esboçada por Rocha contém uma série de estereótipos coloniais, como subserviência e adoração de Portugal e dos portugueses pela população nativa; uma certa qualidade que faz do soberano, nos dizeres de António Ennes, uma “criança grande”, além de elaborações ancoradas em ideias luso-tropicalistas. Já o artigo “Os Destinos de Angola e Moçambique”, publicado no mesmo jornal, transcorridos pouco mais de quatro anos após o 25 de Abril, retratam Angola como um território abandonado à própria sorte, no meio da miséria, o caos, que em nada remetia para o esforço civilizacional dos portugueses, que fizeram de Angola e Moçambique os “dois maiores países de África”.
Se a descolonização impactou sensivelmente o imaginário e obrigou a uma reelaboração de dimensões da identidade nacional portuguesa, também incidiu diretamente sobre a vida quotidiana nacional, com a chegada de milhares de retornados das agora ex-colónias, sobretudo de Moçambique e Angola. Em 1981, no distrito de Leiria, viviam 19.141 pessoas oriundas das ex-colónias, o que representava 4,6% da população total, sendo Figueiró dos Vinhos o segundo município do distrito em número de retornados.
Por razões que não se esgotam nos motivos aqui apontados, Angola na imprensa portuguesa apresenta ao leitor fontes históricas sobre o modo como era retratado o processo colonial em Angola na imprensa periódica local, contribuindo, assim, não apenas para compreender melhor as representações e a formação de um imaginário em torno deste território, como para ajudar a conformar um retrato da presença portuguesa em diferentes províncias de Angola durante o século XX. O livro de Carlos Alberto Alves é, também, um material valioso para compreender a conformação da memória pública acerca da colonização e da descolonização de Angola no distrito de Leiria e em Portugal.