Reverberações lusotropicais: Gilberto Freyre em África 2

Leituras críticas mais recentes em torno da identidade cultural e história intelectual caboverdeanas salientam o facto de que Gilberto Freyre desestabilizou inconscientemente a metanarrativa euro-centrada da mestiçagem, ao enfatizar principalmente os laços culturais de Cabo Verde com África (mesmo que a sua visão desses laços fosse superficial). Gilberto FreyreGilberto FreyreA sobrevalorização das dimensões mestiças da cultura caboverdeana que predominou no discurso intelectual até à década sessenta (mas que ainda detém uma certa hegemonia no âmbito das mentalidades) tem obnubilado a importância central das raízes culturais africanas na ilha de Santiago, para uma compreensão mais aprofundada e matizada da identidade caboverdeana. José Carlos Gomes dos Anjos (2002) e Gabriel Fernandes (2002)1 argumentam que a hegemonia cultural exercida pela geração claridosa2, apesar da consternação causada pela visita de Freyre, não só serviu para reforçar o discurso lusotropicalista parcialmente adotado pelo regime salazarista em defesa do colonialismo português em África, mas também o papel de intermediação caboverdeana na estrutura de poder colonial português enquanto funcionários junto das outras colónias africanas (apesar de alguns daqueles funcionários terem apoiado os movimentos de libertação nacional, sendo considerados suspeitos pelas autoridades portuguesas)3

A nível interno, tanto Fernandes como Gomes dos Anjos destacam o facto de que a hegemonia cultural dos claridosos teve como efeito ulterior marginalizar os elementos culturais africanos, assim como excluir os caboverdeanos negros do ponto de vista ideológico e político, exacerbando ao mesmo tempo tensões de caráter cultural, regional, racial e social a operar em Cabo Verde desde a época colonial e que se refletem através das seguintes dicotomias: Cabo Verde vs. África, Cape Verde vs. Europa, cultura badia vs. cultura sampadjuda4, e pele clara vs. pele escura.

As reverberações lusotropicais fizeram-se sentir também no trabalho pioneiro do geógrafo, poeta e figura intelectual de maior importância de São Tomé e Príncipe, Francisco José Tenreiro. A sua obra A ilha de São Tomé (1961) é um estudo exaustivo dos aspectos históricos, geográficos, sócio-políticos e culturais relacionados com a “ilha de nome santo.” Nessa obra, a presença de Gilberto Freyre é palpável a partir do prefácio onde Tenreiro ressalta a originalidade santomense graças “ao processo de colonização e aculturação (…) e às relações que os seus moradores mantiveram com a terra firme de África, com a Metrópole e com o Brasil. Ilha de substrato cultural vincadamente português, embora aparentada no seu desenvolvimento com as ilhas Atlântidas e com o Nordeste húmido do Brasil” (10). O quarto capítulo, “A ilha e os homens” começa com um epígrafe curioso extraido de Aventura e rotina: “De volta ao Rio de Janeiro, contarei ao poeta Manuel Bandeira que descobri a Pasárgada com que ele sonha: é em São Tomé. Sob os coqueiros de São Tomé” (101).

À primeira vista, a obra parece assumir plenamente uma perspectiva lusotropical por forma a dar validade à afirmação pasargadiana de Gilberto Freyre, no entanto, uma leitura cuidadosa permite vislumbrar uma oscilação entre a tentativa irónica por parte de Tenreiro de desmontar aquela afirmação quando confrontada com os factos sócio-históricos e uma adesão plena a uma leitura que enquadra São Tomé e Príncipe inexoravelmente dentro do complexo luso-atlântico com todos os seus desdobramentos históricos, culturais e económicos.
Na sua análise, Tenreiro dá ampla conta da estrutura sócio-económica da ilha ao longo da história, salientando a marginalização à qual foram votados os “filhos da terra” que assumiram posições sociais de destaque em São Tomé a partir do final do (breve) ciclo da cana-de-açúcar (no século XVI), altura em que os portugueses abandonaram as terras de cultivo por motivos sociais (as constantes rebeliões de escravos) e económicos (as condições mais propícias para o cultivo da cana no Nordeste brasileiro).

No segundo (grande) ciclo produtivo, a partir do século XIX, com a introdução do cultivo de cacau e o café, houve uma re-colonização das ilhas de São Tomé e Príncipe por parte de colonos brancos que montaram grandes roças. Após a abolição oficial da escravatura no espaço colonial português (1878), houve a implantação do regime de trabalho contratado que consistiu num sistema de trabalho forçado em São Tomé, Angola e Moçambique que, no caso das ilhas, serviu de alicerce para as grandes plantações de cacau e de café que constituiram a base económica até, pelo menos, meados do século XX.

O trabalho contratado nas roças de São Tomé praticamente reproduziu o paradigma da casa grande e senzala em pleno século XX. O momento da pior crise do regime de trabalho contratado em São Tomé, mencionado de passagem por Tenreiro, foi o massacre de Batepá (1953) onde morreram aproximadamente 1000 nativos.5 

Tanto este trágico episódio da história santomense, como outros aspectos mais gerais relativamente à estrutura sócio-económica desigual e exploradora que imperou em São Tomé e Príncipe, são comentados por Tenreiro com luvas de pelica dado à forte censura exercida pelo regime fascista-colonial (que aliás, o caboverdeano Gabriel Mariano descreve eloquentemente na edição da sua obra de 1991). Contudo, Francisco Tenreiro não deixa de afirmar que, apesar da aproximação cultural que houve entre “filhos da terra” e europeus em São Tomé e Príncipe, a estrutura sócio-económica subjacente ao colonialismo criou uma sociedade injusta que marginalizou os “filhos da terra.” E conclui de modo taxativo: “Por isso, bem enganado andou Gilberto Freyre em chamar-lhe a Pasárgada com que Manuel Bandeira sonhara…” (212).

Por seu turno, Mário António —um dos intelectuais angolanos de proa, activista político, poeta, ensaísta e contista— foi entre os pensadores africanos considerados aqui, quem mais absorveu de modo acrítico a influência da teorização lusotropical de Gilberto Freyre, tal como podemos observar na sua análise da identidade cultural angolana, ou mais concretamente caluanda, centrada no paradigma da “ilha crioula” em Luanda, ‘ilha’ crioula (1968).

Mário António argumenta que a expansão marítimo-colonial portuguesa (com a sua base no tráfico negreiro) produziu uma série de “ilhas crioulas” no Atlântico sul que surgiram a partir de um mesmo sistema de circulação entre Lisboa, Brasil, Cabo Verde, S. Tomé e Angola (Luanda e Benguela, principalmente6).  Mário António define o termo “crioulo” como sendo o tipo de “amálgama bio-social que os Portugueses realizaram nos trópicos” (13-14). Se bem que as ilhas geográficas de Cabo Verde e São Tomé e Príncipe viram surgir de modo diferenciado novas culturas crioulas na sua essência, e o Brasil por sua vez, tornou-se o maior espaço paradigmático da hibridação e mestiçagem cultural (sobretudo nos grandes centros da Bahia, Recife e o Rio de Janeiro, nos primeiros séculos da colonização portuguesa), Mário António faz questão igualmente de reivindicar o lugar de alguns núcleos litorâneos que teriam sido criado pelos portugueses no continente africano, sobretudo Luanda.

A capital angolana então surgiria do contacto pluri-dimensional entre um grupo etno-cultural minoritário (europeu) e grupos maioritários (africanos), afirmando-se segundo o autor, como “uma cidade lusotropical, motor de Civilização na África Ocidental” (23). Mas, seguindo a trilha gilbertiana, Mário António argumenta que tal contacto só terá sido fecundo devido à “especial conformação bio-psico-social dos Portugueses” (24). O autor aponta uma série de exemplos de hibridação  cultural na sociedade luandense: manifestações religiosas, música, dança, vida doméstica, gastronomia e linguagem.

Em termos linguísticos, embora não tenha surgido um crioulo do português em Angola - como por exemplo em Cabo Verde, Guiné ou São Tomé - na região de Luanda, houve um contacto intenso entre o kimbundu e o português ao ponto de o português se ter amoldado, segundo Mário António, à musicalidade, fonética, estrutura morfológica e sintáctica do kimbundu. O autor conclui que esses exemplos todos de mestiçagem cultural são prova do grau de integração social em Luanda de grupos de diversa origem, pelo menos até ao final do século XIX, período no qual predominou a família mestiça na sociedade luandense (desde o século XVII). No entanto, a partir de finais de século XIX, teve lugar a recolonização de Angola que redundou numa vaga de novos colonos brancos, tendo como resultado a marginalização progressiva das elites crioulas angolenses. Se em Cabo Verde o mulato transitou do funku ao sobradu, em Luanda, argumenta Mário António, o mestiço foi despromovido da Baixa (isto é, o centro da cidade) para o musseque (bairro pobre ou favela).7
Mário Pinto de AndradeMário Pinto de AndradeEnquanto Mário António centra a sua análise na sociedade caluanda anterior ao século XX, possibilitando portanto, uma leitura lusotropical (embora problemática em certos aspectos), o historiador, ensaísta e divulgador da literatura africana em língua portuguesa, Mário Pinto de Andrade, centra a sua leitura da sociedade angolana no século XX, e, como consequência, invalidando as teses gilbertianas quase na sua totalidade. Aliás, como nos lembra Cláudia Castelo, Andrade foi o primeiro crítico a desmontar a mitologia lusotropical8. Em dois importantes ensaios, “Qu’est-ce que le ‘luso tropicalismo’?” (1955) e “Cultura negro-africana e assimilação” (1958), ambos publicados em Paris (o primeiro sob o pseudónimo Buanga Fele), Mário Pinto de Andrade contrapõe o lusotropicalismo à ideologia negritudinista, imbuída do pensamento marxista e de um sentimento fortemente nacionalista. O autor põe de relevo a falta de uma consciência político-económica da situação colonial nas apreciações críticas de Gilberto Freyre que resultaram do seu périplo pelo continente africano, ao mesmo tempo salientando o desfasamento histórico da grelha interpretativa gilbertiana na medida em que insiste em impor uma leitura (embora questionável em determinados aspectos) do colonialismo português baseada na experiência dos primeiros séculos sobre o tipo de colonialismo praticado pelos portugueses em pelo século XX.

Mário Pinto de Andrade entende o lusotropicalismo como “movimento de integração de valores tropicais na cultura lusitana ou como circulação de produtos em áreas de influência portuguesa” (“Cultura negro-africana e assimilação” X), mas não como harmonização dos valores europeus com os africanos ou asiáticos (justamente, como afirma Piñeiro Íñiguez, seria esse entendimento de Mário Pinto de Andrade do lusotropicalismo aquele que ainda hoje tem vigência e aceitação pelas partes implicadas (Sueños paralelos 308)). Andrade considera, contrariamente à opinião de Freyre,  que o colonizador “assimilou o exótico” muito mais do que contribuiu ao trópico.

Numa altura histórica de oposição crescente face ao anacrónico colonialismo português junto dos jovens quadros intelectuais africanos de língua portuguesa aglutinados tanto na Casa dos Estudantes do Império (em Lisboa) como algures na Europa (nomeadamente em Paris), a mensagem de Mário Pinto de Andrade é contundente: é preciso uma postura crítica frente ao colonialismo português e às suas ideologias legitimadoras (i.e. o lusotropicalismo). No seu ensaio publicado na revista Présence africaine, o autor conclui que não houve jamais nos países africanos colonizados por Portugal um “casamento de culturas” mas sim “uma relação entre cultura dominante e culturas dominadas” (“Qu-est’ce que le luso tropicalismo?” 34). Andrade considera a teorização luso-tropical viciada desde a base, argumentando que há inúmeros exemplos dos valores que englobam o verdadeiro espírito da expansão marítimo-colonial extraídos das próprias crónicas portuguesas dos séculos XIV e XV que contradizem rotundamente os fundamentos lusotropicais de abertura e cordialidade portuguesa para com o outro, apregoados por Freyre9

Uma década mais tarde, no meio do calor da luta armada contra o fascismo-colonialismo português, o líder da independência da Guiné Bissau e Cabo Verde, Amílcar Cabral, escreve o prefácio à obra do historiador Basil Davidson, A libertação da Guiné: Aspectos de uma revolução africana (1975) —publicada primeiro em inglês em 1969 sob o título The Liberation of Guinea. Nesse prefácio, Cabral faz eco de algumas das colocações de Mário Pinto de Andrade, afirmando que o lusotropicalismo constitui a base teórica de uma mitologia que serviu de propaganda para a defesa do status quo do fascismo-colonialismo, agora chefiado pelo sucessor do recém falecido Salazar, o professor Marcelo Caetano. Cabral acrescenta ainda, com ironia e frustração, que confundindo realidades biológicas com realidades sócio-económicas e históricas, Gilberto Freyre transformou os africanos, habitantes das “províncias-colónias de Portugal, em felizes habitantes de um paraíso luso-tropical” (4).

Tão eficaz teria sido a propaganda portuguesa no início dos anos sessenta, que os líderes nacionalistas das antigas colónias em África, incluindo Amílcar Cabral, tiveram dificuldade em serem ouvidos pelos delegados de outras nações africanas no seio da Conferência dos Povos Africanos. Esse teria sido mais outro argumento, segundo Cabral, para empreender a luta armada contra um regime que tinha erguido “uma parede de silêncio” (3) à volta das suas colónias africanas.
            *   *   *   *   *   *

Apesar de se ter sensibilizado eventualmente face ao direito à autodeterminação das colónias portuguesas em África e de se ter afastado de forma relativa do regime salazarista10,  Gilberto Freyre e o seu contributo intelectual caíram consciente e inconscientemente nas malhas que o império teceu. Apesar de ser revolucionário na medida em que reconheceu como fundamental o contributo do africano para a formação do Brasil e de ter estudado minuciosamente e de ter celebrado a mestiçagem cultural (sobretudo no contexto brasileiro), numa altura pouco propícia a leituras multiculturais, o pensamento gilbertiano, uma vez focalizado nas realidades africanas, sofreu dos mesmos defeitos apontados pela crítica nos seus estudos relativos ao Brasil, que não cabe repetir neste ensaio. Todavia, as suas observações em torno das ex-colónias portuguesas em África sofreram sobretudo pela superficialidade, a brevidade do seu contacto directo com África, o eurocentrismo, a ahistoricidade, o etnocentrismo brasileiro, e principalmente, pela falta de uma análise rigorosa das relações de poder no contexto colonial, ou mesmo de uma consciência geopolítica mais apurada (várias destas críticas foram articuladas pelos intelectuais africanos abordados neste ensaio). Contudo, a atenção crítica a processos culturais de hibridação fez com que Gilberto Freyre se adiantasse por várias décadas à teorização das identidades e culturas híbridas no âmbito do pensamento pós-colonial e pós-moderno11.  Igualmente, o sociólogo lançou mal ou bem os alicerces conceptuais daquilo que seria, após as independências africanas, a lusofonia, cujas linhas de força e definição são ainda objecto de debate.

Além de ter destacado o papel de Portugal na construção de um espaço cultural comum lusotropical, Freyre nunca perdeu de vista o protagonismo presente e futuro do Brasil naquele espaço (mesmo em termos messiânicos), faltando-lhe, no entanto, uma visão mais clara acerca da evolução e o papel a desempenhar por parte das futuras ex-colónias portuguesas em África. As ambiguidades, as contradições, mas também o visionarismo, fazem parte do legado gilbertiano que ainda hoje reverbera na tentativa de construção de comunidades linguísticas e culturais numa era ambivalentemente pós-colonial, de processos híbridos intensificados e globalização acelerada.

 

ler parte 1 deste ensaio. 

 

Bibliografia
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  • 1.

    As obras Intelectuais, literatura e poder em Cabo Verde de José Carlos Gomes dos Anjos e A diluição da África de Gabriel Fernandes, publicadas em 2002, constituem estudos chaves no âmbito da sociologia da cultura, antropologia social e história intelectual que analisam as relações entre elites intelectuais, estructuras de poder, e cultura caboverdeana na construção da identidade nacional. Ambas as obras contribuem, de maneira decisiva, para o campo dos estudos caboverdeanos na medida em que atualizam o debate em torno da identidade nacional proporcionando mais profundidade e nuance. Fernandes conclui a sua discussão com uma análise do debate da identidade caboverdeana, na era da política multipartidária e da economia global de mercado, enquanto que a obra de Gomes dos Anjos fornece um olhar incisivo sobre os vários atores que participaram na saga da construção do estado caboverdeano pós-colonial. José Carlos Gomes dos Anjos (2002) e Gabriel Fernandes (2002)

  • 2. Refere-se ao movimento claridoso, em torno da revista Claridade.
  • 3. Para mais informações sobre o papel de intermediação caboverdeana no quadro do império colonial português, ver o trabalho do historiador Alexander Keese (2007).
  • 4. Os termos “badiu” e “sampadjudu” no kriolu de Cabo Verde designam respetivamente os habitantes da ilha de Santiago (incluindo a Cidade da Praia) e os habitantes de todas as outras ilhas do arquipélago.
  • 5. O massacre de Batepá na ilha de S. Tomé foi perpetrado por milícias portuguesas em 1953 contra os nativos que eram acusados de uma possível insurreição contra o trabalho serviçal.

    Hoje em dia, após investigação exaustiva nos arquivos da PIDE (polícia secreta portuguesa) e junto de sobreviventes, acredita-se que tanto o governo colonial da ilha como roceiros e comerciantes, fabricaram a suposta insurreição com a possível conivência do regime salazarista. Estima-se que tenham sido chacinados mais de mil nativos (ver edição do jornal Expresso Online de 18/5/2002).

  • 6. Esta definição em termos gerais coincide com o espaço histórico-cultural e simbólico de “nação crioula” que constitui o nó dramático do romance homónimo do escritor angolano José Eduardo Agualusa, centrado nos últimos anos do trâfico de escravos (ilegal) entre Angola e o Brasil no final do século XIX. O historiador brasileiro Luiz Felipe de Alencastro, por sua vez, postula a formação a-territorial do Brasil no Atlântico sul através do tráfico de escravos, argumentando que o Brasil colonial foi totalmente dependente da mão-de-obra escrava fornecida pelas feitorias de Angola.

    Tanto Angola como o Brasil seriam partes simbióticas de um “mesmo sistema de exploração colonial.” O historiador partilha, pois, da opinião expressa pelo Padre António Vieira no século XVII de que sem Angola não teria havido Brasil (ver Trato dos viventes, 2000).

  • 7. No seu ensaio, “Angolanidade: o conceito e o pressuposto” (1998), Luís Kandjimbo recusa a definição de angolanidade apresentada por Mário António baseada numa identidade crioula, e em seu lugar postula uma identidade bantu comum a toda Angola, com base no facto de a esmagadora maioria da população ser de origem negro-africana de macro-etnia e língua bantu. Kadjimbo não admite uma crioulidade que negue o substrato maioritariamente bantu da identidade nacional angolana, preferindo uma definição defendida por Mário Pinto de Andrade que vê Angola como um todo heterogéneo, constituído por diversos particularismos (21).
  • 8.

    Anos mais tarde, Charles Boxer (1963) oferece uma abordagem histórica sistemática, tentando elucidar a prática das relações inter-raciais no império português entre os séculos XV e XIX. Após uma narrativa recheada de exemplos, o historiador conclui que os factos históricos no terreno contradizem o ideal lusotropical postulado por Freyre e assumido retoricamente por Salazar. Por seu lado, numa altura em que o pensamento gilbertiano é fortemente questionado pela intelectualidade dentro e fora do Brasil, Roger Bastide (1972) destaca a ahistoricidade do lusotropicalismo, a não-aplicabilidade dos pressupostos luso-tropicais ao espaço cultural africano e o carácter ideologicamente sentimental do aparelho pretensamente científico de Freyre.

    No seu ensaio, Bastide apresenta uma série de exemplos de práticas religiosas comuns no Brasil (embora mais raros em Angola), argumentando que o sincretismo religioso verificado responde a uma estratégia de resistência cultural que visa adaptar-se ao quadro de relações sociais criado pelo sistema colonial.

  • 9.

    Novas leituras em torno do lusotropicalismo têm chamado a atenção para os diversos paradoxos verificados entre a teorização e mitologia lusotropicais e as práticas no campo social. Por exemplo, o escritor angolano Arlindo Barbeitos (1997), baseado na sua própria leitura da obra gilbertiana e na sua experiência da Angola colonial como sujeito mestiço, confirma a flexibilidade (na nossa opinião, relativa) na distância em certas instâncias inter-raciais no quotidiano entre dominadores e dominados, em contraste com outros colonialismos. Mais concretamente, Barbeitos refere-se ao valor simbólico contrastante da cama e da mesa na dinâmica de proximidade e afastamento no seio de casais e famílias mestiços; a cama unia-os no espaço privado, enquanto que a mesa separava-os no espaço público.

    Por seu turno, a historiadora angolana Maria da Conceição Neto (1997) sublinha a contradição profunda a partir da década de cinquenta entre a adopção pelo regime salazarista de um discurso colonial de integração e assimilação entre as raças (derivado da teorização lusotropical) e o reforço da segregação racial em Angola e Moçambique em virtude do fluxo migratório maciço de europeus.

  • 10. Ver Piñeiro Íñigo (248).
  • 11. Ver a tese de doutoramento de Joshua Lund, “The Muse and the Scientific Method: Hybridity and the Rise of Anthropological Discourse in Early 20th-Century Latin American Writing” (2002).

por Fernando Arenas
A ler | 28 Junho 2010 | Gilberto Freyre, lusofonia, lusotropicalismo