Ser curandeiro em Moçambique: uma vocação imposta?
Em Moçambique, como em vários outros países de diferentes continentes, os “médicos tradicionais” ou “curandeiros” assumem um papel central quer na prestação de cuidados de saúde, quer na regulação da incerteza e dos problemas sociais dos seus utentes.1
Esses terapeutas são normalmente chamados tinyanga (sing. nyanga) no sul do país e, de acordo com as teorias locais, devem os seus poderes curativos, divinatórios e de eficácia ritual ao facto de serem possuídos por espíritos de defuntos, que com eles formam uma simbiose profissional e ontológica (Honwana 2002).
Serão ainda estes espíritos que os forçarão a abraçar a profissão, através de uma doença de chamamento que é, simultaneamente, uma declaração de intenções por parte dessas entidades espirituais e uma ameaça de morte caso recusem submeter-se-lhes.
No entanto, a partir do momento em que um deles inicia a sua formação, orientada por um(a) nyanga experiente, a profissão passa a ser o fulcro da sua existência, a que todos os restantes aspectos da vida se subordinam, e objecto de um forte investimento emotivo, intelectual e valorativo.
A actividade e percurso profissional dos tinyanga aparenta, assim, constituir uma forma de “vocação” imposta, mesmo se os próprios não recorrem a essa noção quando equacionam o assunto. No entanto, a realidade observável é bastante mais complexa e ambígua do que aquilo que essas duas palavras poderiam conter, e isto quer a analisemos a partir dos conceitos e princípios explicativos que são dominantes nesse contexto sócio-cultural, quer recorramos àqueles que são património das ciências sociais.
Este texto parte, por isso, do desafio de verificar em que medida a ideia de vocação é adequada e pertinente para compreender a relação dos tinyanga com a sua actividade e de que forma pode ela ser útil para clarificar as dinâmicas do chamamento e do seu exercício profissional.
Para o fazer, irei apresentar sumariamente as características dos tinyanga, suas práticas e pressupostos subjacentes, discutindo em seguida os dados que se revelem pertinentes, tanto a partir da perspectiva conceptual dos próprios praticantes, quanto a partir de critérios externos próprios às ciências sociais,2 procurando potenciar uma clarificação mútua de ambos.
Esse percurso permitirá colocar algumas hipóteses plausíveis e sustentadas acerca do processo de acesso à profissão e, particularmente, da importância que nele assume a criação de consensos sociais que atribuam, à pessoa que apresenta sintomas passíveis de serem diagnosticados como doença de chamamento, características excepcionais e desviantes.
Permitirá, também, constatar que estes avanços na compreensão do fenómeno são bastante mais suscitados por uma das acepções comuns da palavra vocação – a de uma predisposição de capacidades e carácter para o exercício profissional – do que pelas definições sociológicas que ligam o sentido da palavra à centralidade emocional (Weber 1979) ou valorativa (Bellah 1985) da profissão na vida dos indivíduos.
Aliás, sendo a centralidade da actividade profissional experienciada e concebida pelos tinyanga em termos ontológicos (e não apenas emocionais e valorativos), essas definições revelam-se limitadas e culturalmente situadas.
I. Os Tinyanga e a sua profissão
Na maioria dos contextos sociais (se não em todos) coexistem diferentes modelos destinados a interpretar os infortúnios, a incerteza e os acontecimentos aleatórios de forma a dar-lhes um sentido que supere a sua aparente absurdidade e, de preferência, submetê-los a acções humanas que os influenciem na direcção desejada. Por outras palavras, coexistem diferentes sistemas de domesticação do aleatório e da incerteza (Granjo 2004), de que as diversas pessoas conhecem pelo menos alguns traços essenciais e que podem seleccionar conjunturalmente, consoante cada sistema se lhes afigure mais ou menos pertinente para a interpretação do caso específico com que se confrontam.
Moçambique não é excepção. Também aqui são conhecidos e utilizados diferentes sistemas explicativos conforme as circunstâncias (Granjo 2008a) mas, tal como acontece no resto do mundo, também aqui existe um modelo dominante de interpretação do infortúnio, que serve de matriz a vários aspectos da vivência social e, particularmente, constitui a base da actividade e do papel social dos tinyanga.
O seu pressuposto de partida é que o acaso não existe, e muito menos existirão coincidências casuais. Assim, os acontecimentos que prejudiquem ou beneficiem alguém pressupõem a existência de causas que lhe estejam subjacentes, mas que não substituem a causalidade material nem lhe são antagónicas. Considera-se, de facto, que o mundo está repleto de ameaças materiais e naturais, reguladas por causas materiais; mas considera-se também que esses perigos apenas poderão atingir uma pessoa específica em resultado de causas sociais.
Perante um infortúnio, a primeira explicação equacionada será a possível inabilidade, ignorância ou recorrente negligência por parte da vítima.
Mas, se esta era capaz de reconhecer os perigos, conhecia os cuidados a ter para os evitar e, excepcionalmente, não tomou as precauções necessárias ou, tomando-as, foi apesar disso atingida, são mobilizadas duas outras causas possíveis: a feitiçaria, que atrairá a pessoa para o perigo ou a distrairá da sua existência e iminência;3ou uma falta de protecção por parte dos antepassados da vítima, que a deveriam desviar do perigo e alertá-la em relação a ele, não o tendo feito.4 Essa suspensão da protecção não é, entretanto, uma punição. É, antes, a única forma que os antepassados têm de chamar a atenção para a sua necessidade de contactarem com um seu descendente, pois perderam, com a morte, a capacidade de comunicar directamente com os vivos e apenas o conseguem fazer através da adivinhação, sonhos ou transe.
Este modelo interpretativo geral aplica-se também ao caso específico da doença. A saúde é considerada o estado normal dos indivíduos mas, para se manter, exige harmonia entre os vivos, o seu ambiente social e ecológico, e os antepassados. Na doença, as causas materiais combinam-se, assim, com uma das causas sociais que mencionei, ou com duas outras que lhe são específicas: a acção de defuntos errantes que tenham sido inadvertidamente trazidos de um local desconhecido pela vítima (e que irão ter um comportamento semelhante ao de antepassados descontentes, para chamarem a sua atenção), ou a acção de espíritos que «querem trabalhar» como nyanga e provocam na pessoa escolhida uma doença de chamamento, para que ela aceite a sua reivindicação. Dessa forma, mesmo se é reconhecida a existência de «doenças de hospital» e se as teorias locais acerca da etiologia das doenças são muitas vezes paralelas das académicas (Green 1999), não basta tratar a manifestação física de enfermidade. Para que o problema não volte a aparecer, por não ter sido resolvida a sua causa última, é também necessário restaurar o equilíbrio social e a harmonia com os antepassados – o que, no caso do chamamento, implica aceitá-lo ou negociar com os espíritos uma pessoa alternativa que assuma esse papel.5
Contudo, trate-se de doenças ou de problemas sociais (que, assim, surgem amalgamados numa mesma lógica de causalidade, tornando-se indiferenciadamente objecto de intervenção dos tinyanga), a correcta detecção da sua causa subjacente e a tomada das medidas mais adequadas não garantem necessariamente os efeitos desejados. De facto, as próprias teorias locais reconhecem que o diagnóstico adivinhado num determinado momento não constitui o futuro, mas antes aquilo que acerca dele indica a conjuntura presente. Uma conjuntura que pode ser alterada através da acção sobre as suas causas passadas e que, doravante, será influenciada pela complexa interacção entre todas as entidades envolvidas na vida social, vivas ou mortas mas sempre dotadas de agência. O resultado acaba, assim, por ser incerto e a acção humana desenvolve-se, afinal, num contexto de caos determinístico e não de mera determinação por parte dos factores que se consideram adivinháveis.6
Ser e tornar-se nyanga
O papel e função do nyanga é, neste quadro, ser um prestador de serviços terapêuticos e rituais, ser um intermediário junto das entidades espirituais (recorrendo à adivinhação ou transe) e ser um gestor da incerteza. Isto faz com que, para além de curar doenças, possa ver-se obrigado a desempenhar tarefas tão díspares como combater feiticeiros ou servir de conselheiro matrimonial e familiar.
A capacidade para desempenhar estas tarefas advir-lhe-á de ser possuído por espíritos (chikuembo) – ou seja, por entidades espirituais que, ao contrário dos antepassados e defuntos comuns, adquiriram poderes especiais em virtude do estatuto, acções ou excepcional força espiritual que tiveram em vida, ou devido a circunstâncias negativas na sua morte. Com efeito, não é suposto alguém escolher ser nyanga, mas antes ser escolhido(a) para essa tarefa por espíritos que mantêm algum tipo de ligação familiar com a pessoa e «querem trabalhar» através dela (ou, mais precisamente, com ela e nela), após um acto de possessão.
Em casos excepcionais, que apenas detectei em famílias onde um dos pais herdou uma grande quantidade de espíritos, a escolha pode ser anunciada (por sonhos, adivinhação ou transe) mesmo antes do nascimento da criança, juntamente com o género e o nome a atribuir ao bebé.
Habitual, contudo, é que a exigência de trabalho por parte dos espíritos assuma a forma de uma «doença de chamamento» que, a par de sintomas físicos individualizados e/ou de acidentes frequentes e insólitos, incluirá uma fraqueza geral e fortes dores (em particular nas articulações), para as quais a biomedicina não encontrará aparente explicação. Normalmente, o enfermo irá recorrendo a todos os prestadores de cuidados de saúde a que puder ter acesso, até que um nyanga lhe diagnostique uma possessão por espíritos, revelando a identidade destes e os acontecimentos que, no passado e na genealogia, legitimam o seu chamamento.
A família poderá nunca ter ouvido falar dessas histórias e, por isso, recusar validade à sua exigência. Pode também, caso elas tenham acontecido há várias gerações sem que os espíritos alguma vez tenham chamado familiares seus, alegar que as razões invocadas já prescreveram e negociar uma outra forma de compensação. Contudo, se as exigências são consideradas legítimas mas o doente não reconhece a presença dos espíritos, se recusa a cumprir o chamamento ou tenta adiá-lo sem razões válidas, espera-se que sistemáticas doenças, desgraças e mortes o venham a atingir a si e à sua família.
Tal como aflorei relativamente à suspensão de protecção dos antepassados, este comportamento violento por parte dos espíritos não é atribuído a maldade, mas antes às limitações que eles enfrentam na sua actual forma de existência. Embora poderosos, eles são «o que sobra» da pessoa que em tempos foram. Não são, por isso, capazes de comunicar aos vivos o que querem, vendo-se limitados a chamar a atenção deles de forma indirecta, propiciando acontecimentos anormais e indesejados até serem ouvidos através da adivinhação ou transe de especialistas.
Daqui resulta uma dinâmica que apresenta uma morfologia semelhante à da noção de culto de aflição proposta por Victor Turner (1968) e que, embora corresponda a uma ínfima minoria dos pacientes tratados pelos tinyanga,7
assegura a sua reprodução social enquanto grupo: a vítima de uma doença de chamamento procurará solução junto de um(a) nyanga e, uma vez diagnosticada como tal, só poderá superar o problema aceitando tornar-se ela própria nyanga. O paciente tornar-se-á então um terapeuta, e o vago crente, frequentemente semi-céptico acerca de tais assuntos, tornar-se-á um divulgador e reprodutor da crença.
Entretanto, ter acesso a todas as capacidades de que um nyanga pode dispor implica que se seja possuído por, pelo menos, três tipos diferentes de espíritos: por membros falecidos da família (tinguluve, cuja principal especialidade é a cura de doenças, embora também façam adivinhação), por espíritos vaNguni (os invasores de origem zulu que estabeleceram o império de Gaza no século XIX,8 cujas especializações são inversas das anteriores) e por espíritos vaNdau (os mais longos resistentes à expansão Nguni, então integrando já nas suas tropas os anteriores habitantes do sul de Moçambique, que têm como principal especialidade o kufemba, processo de detecção e eventual expulsão de espíritos que adiante referirei).
No seu chamamento dos vivos, os espíritos familiares podem, simplesmente, reclamar qualquer um dos seus descendentes. Já a legitimidade da exigência de um espírito “estrangeiro” para possuir alguém deriva da relação que terá mantido com antepassados da família. Normalmente, os espíritos vaNguni seriam senhores ou amigos de um antepassado que auxiliaram a família e já não têm descendência, enquanto no caso dos vaNdau poderá tratar-se de uma mulher trazida da guerra como escrava e concubina, dos seus parentes chacinados (a cujos espíritos ela mostrou o caminho para a casa da família que a manteve cativa), ou de um guerreiro morto antes de casar, que por isso exigiu à família do seu oponente uma esposa viva e acabou por decidir trabalhar, quando a sua raiva se apaziguou ao longo do tempo.
Independentemente da origem do espírito, contudo, as consequências ontológicas da possessão serão no essencial as mesmas. Tanto ele quanto o indivíduo possuído deixarão de ser as entidades separadas e independentes que antes eram, para se tornarem num ser simbiótico, com uma identidade nova e comum. Adaptando-se à coexistência durante o processo de preparação e aprendizagem para se tornarem um nyanga, o espírito e a pessoa viva influenciam o comportamento e a identidade um do outro - o que pode levar, por exemplo, a alterações dos hábitos alimentares, de preferências diversas, de temperamento ou até de religião, caso a que foi professada em vida pelo espírito mais importante não seja a mesma da pessoa que é possuída.
Com o início da actividade profissional, após provas públicas em que o aspirante a nyanga demonstra as suas capacidades, novas mudanças acontecem. O território doméstico torna-se um local público e a sua organização espacial passa a subordinar-se às necessidades de implantação e uso das edificações necessárias para a consulta (preferencialmente, construídos em forma circular) e para os tratamentos. Dado o receio que os tinyanga suscitam nas outras pessoas, casar tende a tornar-se um projecto difícil, ao passo que casamentos anteriores podem desagregar-se e, no caso das mulheres, a estabilidade das relações matrimoniais costuma implicar a escolha de parceiros com um comportamento mais modesto e contido que o habitual, a par de uma cuidadosa gestão da sua auto-estima (Granjo 2009a). Também várias restrições alimentares se passam a colocar, devido à relação com os espíritos ou a pontuais necessidades rituais decorrentes de práticas profissionais específicas, que em vários casos impõem também períodos significativos de abstinência sexual. As rotinas familiares ficam, por sua vez, submetidas às necessidades profissionais e à permanente disponibilidade de tempo para atendimento aos clientes. Por fim, também os códigos de vestuário e as regras de comportamento em público se alteram, em função daquilo que é considerado digno ou denotativo do exercício profissional.
Os recursos terapêuticos que irão utilizar são variáveis e em expansão, mas incluem um conjunto generalizado de técnicas, que passarei a referir.
Em qualquer caso, no entanto, o primeiro passo é sempre o diagnóstico, feito por adivinhação. O sistema mais utilizado na região sul do país, e cuja leitura e interpretação ocupa uma parte significativa do tempo e esforço durante o processo de aprendizagem,
é o “tinhlolo”, um conjunto de ossos, búzios, carapaças de tartaruga, pedras, moedas, invólucros de sementes e vários outros objectos acrescentados individualmente por cada nyanga, e que é complementado por dois outros conjuntos de adivinhação que podem ser utilizados autonomamente – um deles composto por seis escamas dorsais de crocodilo e o outro por seis cascas de sementes de nulu (lat. carissa arduina).9Não é atribuído a estes objectos um poder autónomo ou uma vida própria, sendo até considerados inúteis quando utilizados por alguém que não integre em si espíritos que através deles se expressem e ajudem a interpretar a complexidade da mensagem. No entanto, o seu papel é essencial no processo terapêutico, pois a adivinhação cumpre, aí, um triplo objectivo: (1) descobrir qual o problema do paciente, seja ele uma doença ou não; (2) descobrir a causa subjacente a esse problema e, se esta for de carácter espiritual, quem a provocou e o que deseja; (3) definir a terapia a aplicar.
Este percurso de descoberta é também um processo de diálogo com o paciente, que terá de reagir às informações que lhe são dadas e às perguntas que lhe são feitas, confirmando ou infirmando as linhas de leitura e interpretação do nyanga e permitindo dessa forma o seu progressivo aprofundamento, até o próprio tinhlolo se tornar secundário na consulta.
Em resultado disso, a adivinhação produz (conforme já sugeri) uma conjuntura de quadros de causas e relações que deixa significativo espaço para a acção do nyanga e do paciente, mas que será também influenciada pela agência de muitas outras pessoas, vivas ou mortas. Assim, o resultado nunca está assegurado à partida, mas é deste diagnóstico que resultará a linha de tratamento, recorrendo às restantes técnicas disponíveis.
Se o problema que aflige o paciente é diagnosticado, quanto às suas causas sociais, como resultante da vontade dos antepassados, haverá que definir e executar as medidas compensatórias para com eles e para com os vivos eventualmente lesados pela falta social que lhes desagrada.
Se a causa apontada é a feitiçaria, haverá, antes de mais, que afastar as entidades ou forças que lhe servem de veículo. Normalmente, isso poderá ser feito através de duas das formas de kufemba, ou expulsão de espíritos: a fumigação com incensos específicos para o efeito e o bafo, uma espécie de sauna em que o paciente se senta, tapado, junto de uma panela em que ferve uma mistura de produtos vegetais e animais em que normalmente antes se banhou.
Se a causa é atribuída à acção de espíritos abusivos, poderá ser necessário, para além dos anteriores, efectuar um kufemba de xizingo, em que o nyanga usa o seu tchova (uma cauda de gnu que tem na pega pelos de cauda de hiena – o xizingo) para detectar, em transe e pelo cheiro,10 o espírito a afastar. Dependendo do diagnóstico e daquilo que na altura encontrar, poderá então limitar-se a expulsá-lo, ou então deixá-lo falar através de si, para que possa expor as suas razões ou exigências.
Trate-se de espíritos ou de feitiçaria, medidas de protecção deverão depois ser tomadas, mas estas são bastante semelhantes em todos os casos, sejam eles de saúde, de propiciação ou de protecção social.
Na sequência destas acções (ou sem recurso a elas, caso a sua necessidade não tenha sido diagnosticada), as enfermidades específicas poderão ser tratadas de formas muito diversas. Uma delas é de novo o bafo, neste caso com farmacopeia botânica específica para cada doença. Outras formas de administração de fármacos são a ingestão, a inalação, os banhos e a sua aplicação em incisões na pele, na chamada vacina. Neste último caso, a aplicação é muitas vezes feita em simultâneo com o tratamento de protecção para “blindar” o corpo, sendo os cortes efectuados nos pontos considerados mais vulneráveis à agressão externa, espiritual ou física: a cabeça, as costas e peito, a zona dos rins e as articulações dos membros.
Os tratamentos de saúde poderão ainda envolver processos rituais e purificações, incluindo abluções ou o sacrifício de animais, com cujo sangue o paciente é lavado.
O encerramento do processo implica, contudo, duas outras acções: por um lado, assegurar a protecção futura, normalmente através de vacina, mas que também poderá incluir banhos, bafos, defumações e amuletos; por outro, uma nova adivinhação, para verificar se o tratamento foi totalmente eficaz, tanto nos seus resultados físicos quanto na resolução dos problemas que os originaram.
Contudo, se este conjunto de recursos é comum a todos os profissionais que integrem espíritos adequados a cada um deles, o trabalho de um nyanga nunca virá a constituir uma mera rotina repetitiva de discursos e práticas “tradicionais” e aprendidas. De facto, em contraste com as imagens normalmente formadas acerca deste tipo de figuras, os tinyanga não se encontram manietados pelo passado ou pela consideração exclusiva dos conceitos e explicações etiológicas locais. Em regra, interessam-se de forma entusiástica tanto pelo reconhecimento externo da qualidade do seu trabalho, quanto pelas explicações e práticas curativas e mágicas vigentes noutros contextos, integrando facilmente na sua actividade (por vezes reinterpretando-os) inputs oriundos quer de outras regiões e países, quer de outros sistemas de cura, incluindo a biomedicina. A sua prática é, assim, personalizada e diversificada, incluindo, para além do património comum da profissão, experiências, especulações e inovações.
Uma “vocação imposta”?
De entre as muitas dezenas de tinyanga com quem tive oportunidade de conviver ao longo dos últimos anos, nunca algum deles utilizou a palavra “vocação” ao discutir a sua actividade ou o seu percurso profissional.
Não que essa ideia, ou mesmo a palavra, lhes sejam desconhecidas. Antes porque o discurso dominante acerca da profissão enfatiza uma outra imagem que, longe de se limitar a ser um recurso retórico, é interiorizada como uma faceta inerente à condição de nyanga: sê-lo é uma “obrigação” para com a comunidade e os antepassados, um “fardo” a carregar, uma “missão” que é imposta e acarreta quer sacrifícios, quer a renúncia a aspirações que seriam legítimas para qualquer outra pessoa.
Contudo, se juntarmos a esta afirmação identitária o empenhamento que investem e o prazer que quase sempre retiram do seu exercício profissional, o quadro que encontramos aproxima-se de forma notável do de outras actividades abordadas neste livro e encaradas pelos seus praticantes como vocações.
Também seria fácil descortinar, nas práticas dos tinyanga, características que correspondem às mais citadas tentativas de definição sociológica de vocação: um empenhamento emocional com a actividade que torna o seu exercício uma necessidade pessoal e uma prioridade central (Weber 1979), ou uma valoração dessa actividade que torna o seu exercício inseparável da vida do indivíduo, um valor em si mesmo e não apenas um meio para obter retribuição económica (Bellah et all 1985). Poderíamos ainda acrescentar-lhes o chamamento extra-humano ao qual Weber (1979) atribui a origem da ideia de vocação, ou até, de forma mais polémica, levantar a hipótese de uma predisposição de carácter e de capacidades, que quase sempre surge associada às acepções comuns dessa palavra e que as ciências sociais têm sido mais tentadas a contornar do que a esclarecer.11
Justifica-se, assim, questionar até que ponto serão estes aspectos relevantes, independentemente da importância que lhes atribuam os próprios indivíduos. Ou, ainda, em que medida a actividade e percurso dos tinyanga corresponderá à ideia de vocação e, sendo esse o caso, em que medida se tratará de uma vocação imposta, conforme sugere o interrogativo título deste artigo.
De facto, se a vocação não é, enquanto tal, objecto de reflexão dos tinyanga acerca de si próprios, isso não quer dizer que não valha a pena indagar se as interpretações locais lhe correspondem, ou se essa palavra e essa noção poderão ser úteis à compreensão das dinâmicas locais.
Tendo em conta as semelhanças que salientei alguns parágrafos atrás, poderá parecer, à primeira vista, que a resposta às perguntas que formulei será simples e inequívoca. Não o é, contudo, para um observador distanciado, nem tão pouco o seria se procurássemos adoptar o ponto de vista e as explicações locais.
Espíritos e homens
É verdade que, no quadro destas últimas, é atribuída aos espíritos a escolha dos futuros tinyanga, esperando-se que a decisão dessas entidades se imponha violentamente aos vivos, ameaçando a sua saúde ou mesmo a sua vida. À pessoa escolhida – independentemente da vontade que ela tivesse de abraçar, ou não, uma tal profissão e papel social – não restará mais do que submeter-se, tentar negociar uma alternativa, ou sofrer as graves consequências da sua recusa.
Mas é também verdade que tal escolha não é considerada aleatória, ou sequer arbitrária. De entre um leque relativamente vasto de candidatos possíveis (pelas suas diferentes relações familiares com o defunto que os antecedeu, e sem que tais relações tenham que obedecer às regras de descendência dominantes),12 os espíritos deverão escolher para nyanga quem for mais adequado ao desempenho da profissão, devido à sua personalidade e potencialidades.
Ou seja, considerando-se embora que essa actividade é imposta a quem se torna nyanga, o próprio processo de imposição pressupõe, reconhece e ratifica uma prévia predisposição de carácter e a posse de capacidades intrínsecas para o exercício profissional. Pressupõe, afinal e na acepção mais corrente do termo, uma vocação que o chamamento declara e institucionaliza (com toda a autoridade que lhe advém de ser provocado pelas entidades mais aptas a detectá-la), mesmo que tal vocação não seja consciencializada ou sequer desejada por quem a possui.
No entanto, ao mesmo tempo que as interpretações locais e a ideologia profissional reforçam a ideia tanto de uma vocação quanto da sua imposição por parte de entidades exteriores ao praticante, não excluem a possibilidade de dois acontecimentos capazes de relativizar bastante essa imagem: que os espíritos possam não ter outra alternativa senão escolher a “menos má” das pessoas genealogicamente disponíveis; ou que a sua escolha possa ser errada.
A primeira possibilidade é evidente, visto que o leque de possíveis candidatos, embora largo, é limitado.
A segunda deriva do facto de, sendo embora reconhecidos aos espíritos vastos poderes e a capacidade de conhecerem profundamente os vivos, eles não serem considerados omniscientes ou infalíveis. Por um lado, enquanto “partes sobrantes” dos seres humanos que foram em vida, eles podem enganar-se; por outro, sendo membros de uma rede de relações sociais com vivos e mortos, os espíritos têm que negociar as suas escolhas e não dependem apenas da sua vontade para influenciarem o mundo – também dependendo, para esse efeito, dos acontecimentos materiais que vão ocorrendo e da complexa e mutável interacção entre a agência de todos os seres envolvidos (Granjo 2007).
Por fim, segundo uma das interpretações possíveis da perspectiva erudita local, poder-se-ia mesmo sustentar que não é correcto equacionar um tema como a vocação focando-nos apenas na pessoa viva que se vem a tornar nyanga – pois o nyanga não é, em rigor, apenas essa pessoa.
De facto, a ideologia da possessão localmente vigente sustenta, conforme referi, que a pessoa viva e os espíritos que a possuem deixam de ser entidades autónomas, para se tornarem um ser simbiótico, com uma identidade nova e comum.
Desse ponto de vista, falar de vocação seria quase uma redundância, visto que os seres que forçam a opção profissional (e que garantem o sucesso futuro da nova entidade que é criada) disporão, à partida, da experiência, dos poderes e dos conhecimentos necessários ao exercício da actividade, a par da vontade e necessidade quase compulsivas de os aplicar. A pessoa que eles possuem para que seja nyanga, entretanto, não é um mero instrumento; integrará no seu “eu” em transformação essa vocação e capacidades, à medida que ela e os espíritos aprenderem a viver e a trabalhar em conjunto. Assim, e ainda segundo esse ponto de vista, poder-se-á especular acerca do processo de escolha do futuro nyanga e das razões que o orientaram mas, uma vez esta escolha feita e aceite, a eventual vocação (autónoma e/ou prévia) da pessoa viva deixa de ser particularmente relevante.
Sintetizando, os princípios ontológicos e interpretativos partilhados pelos tinyanga apresentam-nos a questão do chamamento e da vocação de uma forma complexa e multifacetada, mas que só na aparência é paradoxal: os espíritos escolhem, de entre as genealogicamente possíveis, a pessoa que consideram mais vocacionada para ser nyanga e forçam-na a aceitar a sua escolha; esta escolha poderá até não ser a melhor, mas tal não põe em causa a futura eficácia do seu trabalho comum, pois o mais elevado grau de vocação será sempre fornecido pelos próprios espíritos.
Existe, no entanto, uma segunda razão para que os tinyanga não equacionem a vocação, entendida agora na acepção de centralidade emotiva e valorativa da actividade profissional na vida dos indivíduos, que lhe é atribuída por Weber e por Bellah.
São evidentes, mesmo no registo discursivo sóbrio e contido que é esperado destas pessoas, o orgulho, prazer e entusiasmo com que falam e reflectem acerca da sua profissão, das suas particularidades e dos sentidos que lhes subjazem, acerca das áreas em que se consideram especialistas, das técnicas que utilizam e daquelas que o interlocutor possa conhecer de outras regiões ou países, ou ainda acerca das razões e dinâmicas das doenças e infortúnios com que mais trabalham.
A par disso, é também saliente a subordinação às exigências da profissão de aspectos tão centrais da vida corrente como a ocupação do espaço residencial, as estratégias matrimoniais, a alimentação e a actividade sexual, as rotinas familiares, os códigos de vestuário, as regras de comportamento em público ou uma permanente disponibilidade de horários.
Por outras palavras, a vida de um(a) nyanga está organizada em função da sua actividade profissional, que é simultaneamente o aspecto mais relevante da sua identidade e que, mais do que constituir um valor em si própria, se torna objecto de um investimento emotivo e intelectual continuado, sendo assumida como a sua razão de existência enquanto pessoa viva e o seu futuro quando defunto.
Esta vivência e visão, que poderíamos considerar uma forma hiperbólica de vocação, é no entanto entendida num registo diferente, que talvez não o seja menos: nyanga não é uma actividade que se faz, mas aquilo que se é. Nyanga é uma natureza que se aceita e se assume, acarretando isso uma existência inerentemente excepcional (no poder que fornece, nos desafios que cria e nas restrições que implica) e na qual, tal como no caso das profissões industriais perigosas (Granjo 2004), as limitações que nos são impostas e as ameaças que enfrentamos, superando-as, são simultaneamente um fardo e um motivo de orgulho e auto-estima. Ou seja, a actividade profissional é equacionada a um nível ontológico e não a um nível emocional ou valorativo, por muito que estes dois últimos aspectos sejam salientes para qualquer observador externo.
Pessoa e comunidade
Entretanto, as questões que inicialmente coloquei acerca do carácter de vocação imposta que podemos vislumbrar nesta profissão não passam a ter respostas mais simples e inequívocas quando nos afastamos dos quadros conceptuais autóctones para adoptarmos princípios ontológicos e analíticos mais familiares aos cientistas sociais e aos seus leitores habituais.
Efectivamente, da mesma forma que a fenomenologia local da possessão nos diz (de forma ambivalente e na sua própria linguagem) que a vocação é desejável a priori mas pode ser interiorizada por quem não a possua, dificilmente se poderá afirmar com segurança, em relação a várias características e capacidades recorrentemente observáveis nos tinyanga, em que medida elas resultam de predisposições anteriores ou foram desenvolvidas no processo de aprendizagem e de exercício profissional.
Conforme já sugeri, os tinyanga são bastante diversificados em termos de carácter e comportamento. Há-os ensimesmados e extrovertidos, assertivos e defensivos, arrogantes e modestos, generosos e calculistas, reservados e abertos à discussão, conservadores e modernistas na sua visão dos valores e relações sociais, mais lestos ou mais cuidadosos na atribuição aos acontecimentos de causas espirituais ou mágicas, mais seguros ou temerosos em relação a actos de feitiçaria por parte dos colegas e de outras pessoas.
Não obstante, apresentam características recorrentes, que são neles esperadas ou se revelam imprescindíveis ao seu sucesso profissional.
Entre as primeiras, destacaria a habitual postura corporal contida e algo prostrada que é mantida em contexto profissional, como se as suas responsabilidades e conhecimentos lhes pesassem sobre os ombros. Uma postura que pode, no entanto, transformar-se facilmente em demonstrações de flexibilidade, expressividade e alegria, caso a situação o permita.
Quanto ao segundo aspecto, predominam nesta profissão indivíduos com uma capacidade muito apurada de observação e análise da linguagem corporal, dos indícios comportamentais e dos sentidos subjacentes ao que lhes é dito, a par de um raciocínio rápido e de uma particular mestria para identificarem as expectativas e motivações dos seus interlocutores e as utilizarem para, de forma pouco conspícua, os conduzirem às decisões e comportamentos que desejam.
É ainda uma sua característica recorrente a dificuldade de interpretarem situações, atitudes e problemas (e, portanto, de lhes atribuírem causas) fora dos quadros normativos e valorativos localmente dominantes, que em grande medida naturalizam e tendem a considerar universais, mesmo quando sabem que outros existem, podendo até conhecer a lógica que lhes preside.13
Se os dois parágrafos anteriores poderiam ter sido retirados de um texto acerca de psicanalistas “ocidentais”, confesso que as características e capacidades neles referidas me parecem ser bem mais marcadas, evidentes e generalizadas no caso dos tinyanga. A recorrência com que isto pode ser constatado, entretanto, incita o observador a questionar-se em que medida essas capacidades – raras entre o conjunto da população – resultaram do processo de aprendizagem e socialização profissionais, já lhe pré-existiam ou, pré-existindo enquanto potencial, foram apuradas por esse processo.
Sem ter ainda uma resposta cabal a esta dúvida, os casos de aprendizagem que pude observar levam-me a inclinar-me para a última hipótese.
De facto, os tinyanga não ensinam explicitamente aos seus aprendizes princípios ou técnicas de observação, análise ou manipulação. É não obstante comum que, após o atendimento de um cliente na presença (também ela habitual) da pessoa que está a aprender, comentem com ela um ou outro pormenor que permite, a um ouvinte atento, aperfeiçoar essas capacidades.14
Por outro lado, as sessões de adivinhação que servem de base ao diagnóstico do problema do cliente, e daquilo que o causou, possuem uma dinâmica de comunicação biunívoca, na qual essas capacidades desempenham um papel relevante (Granjo 2007 e 2010). Ao acompanhar as sessões a partir de determinada fase da sua formação, até passar a ter um papel activo nelas, o(a) aspirante a nyanga não desenvolve apenas a sua capacidade de leitura do conjunto de peças de adivinhação (tinhlolo), mas também as competências que temos vindo a discutir. Entretanto, basta acompanhar as suas tentativas de intervenção ao longo de algumas semanas para notar uma clara evolução, tanto na confiança com que estas são feitas, quanto na sua eficácia junto dos clientes. Isto faz igualmente suspeitar da prévia existência de um potencial para o desempenho das funções, tanto mais que, nos casos em que pontualmente isso não acontece, o processo de aprendizagem acaba por se arrastar bastante no tempo, podendo mesmo o mestre vir a pressionar o seu pupilo no sentido de desistir de parte das tarefas habitualmente atribuídas aos tinyanga, limitando-se a realizar tratamentos diagnosticados e prescritos por outros colegas.
Assim sendo, também o processo de chamamento deverá merecer uma análise mais aprofundada a partir de critérios próprios às ciências sociais, tanto no que concerne a sua dinâmica, quanto o seu eventual carácter impositivo para o indivíduo que o experiencia.
De facto, se o discurso dos tinyanga acerca de si próprios apresenta o acesso à profissão como uma evidente imposição externa a que têm de se submeter a contragosto, há aspectos observáveis na realidade social que põem em causa um tal consenso.
Antes de mais, eles próprios referem a existência de indivíduos que, não tendo sofrido a doença de chamamento nem apresentando antecedentes familiares, compraram a tinyanga ou a feiticeiros espíritos que os possuíssem, a fim de poderem satisfazer o seu desejo pessoal de exercerem a actividade.15
Esta apetência pelo exercício da profissão, apesar dos constrangimentos que esta impõe, é menos estranha do que poderá parecer.
Um factor relevante é de carácter económico. Num contexto em que a oferta de emprego é rara e a sua remuneração muito baixa, ser nyanga traz proventos financeiros que, embora irregulares, não são de forma alguma negligenciáveis e superam bastante as alternativas a que a maioria da população pode aspirar.
Por outro lado, a actividade de nyanga confere a quem a exerce um estatuto social, uma autonomia de decisão e um poder sobre os outros que coloca os seus praticantes numa posição bastante superior àquela a que, de outra forma, poderiam aceder. Este aspecto, que pode constituir por si só um importante factor de atracção para as pessoas que mais o valorizem, torna-se particularmente sensível no caso das mulheres, devido à sua habitual situação de subalternidade numa sociedade marcada por uma forte dominação masculina.
Mas isto quer também dizer que estes factores podem ser igualmente relevantes e atractivos para a entrada na profissão de pessoas que o fazem de forma “clássica” e sofrida. Combinando-os com as características recorrentes dos tinyanga que antes referi e com a forma confortável como estes vivenciam o seu ascendente sobre as outras pessoas, entretanto, justifica-se até equacionar em que medida esta profissão constituirá (a par de tudo o resto) um “nicho” para a integração socialmente útil de indivíduos com características que são consideradas excepcionais e passíveis de criar tensões e problemas, caso os seus possuidores se vejam limitados às ocupações e às regras gerais vigentes para as outras pessoas. A ser esse o caso, tratar-se-ia aliás de uma situação relativamente comum e detectada em sociedades diversas, desde que esta questão foi abordada por Ruth Benedict (1934).
Revertendo estas hipóteses sobre a última questão que inicialmente levantei (em que medida estamos perante uma vocação imposta), deveremos antes de mais salientar que o reconhecimento social de que um determinado conjunto de sintomas constitui uma doença de chamamento não é automático.
Excepto quando tal situação era esperada numa determinada família, ou quando se criou um consenso inicial (na família e vizinhança) acerca da provável natureza do mal, o processo de reconhecimento costuma ser longo, desde logo quanto à passagem da tentativa de cura do espaço dos hospitais para o das cabanas de tinyanga. Em seguida, é frequente que vários tinyanga se recusem a diagnosticar a doença como sendo um chamamento, até que um deles se sinta suficientemente seguro para o fazer – tendo esse diagnóstico que ser ainda objecto de consenso familiar para vir a ser aceite. Entretanto, sintomas semelhantes aos que afligiram alguns tinyanga durante o seu chamamento nunca chegaram a ser, no caso de outras pessoas, diagnosticados como tal.
Há, assim, um processo de negociação social a vários níveis para que um determinado quadro patológico possa ser apontado publicamente como uma possessão por espíritos que «querem trabalhar» e para que tal recolha aceitação.
Nunca tive oportunidade de observar um destes processos no contexto familiar e vicinal do próprio doente, e temo que as descrições que deles são feitas a posteriori sejam pouco úteis para esclarecer com total segurança o ponto que irei sugerir em seguida.16
No entanto, parece-me bastante plausível que a criação de consensos sobre a origem dos sintomas seja fortemente influenciada pela paralela criação de um consenso acerca da adequação entre, por um lado, a imagem colectiva acerca da personalidade e especificidades comportamentais do doente e, por outro, as características esperadas numa figura social particular e desviante como é o nyanga. Por outras palavras, sugiro que pessoas a quem já antes eram reconhecidas características pouco habituais (pelo intensidade de capacidades que possuem, ou por se comportarem de forma desviante daquilo que é considerado normal) são mais facilmente apontadas e aceites como estando a ser chamadas, quando apresentam uma doença sem outra explicação evidente.
Aliás, vários tinyanga me confidenciaram (sobretudo se o seu chamamento foi precoce, vivessem eles em contextos rurais ou urbanos) que já eram considerados “estranhos” e “diferentes” antes de terem passado por episódios de transe ou doenças que pudessem sugerir uma possessão por espíritos.
Nos casos em que já existia esse consenso acerca de um carácter excepcional e potencialmente inadaptado daqueles que se vieram a tornar tinyanga, em que medida pode ele tomar os contornos de uma pressão social (mesmo que não deliberada) para que assumissem uma vocação mais adaptada às características que lhe eram atribuídas? E, tendo esses indivíduos consciência das avaliações de excepcionalidade que acerca deles eram feitas, de que forma poderia esse facto interagir com eventuais expectativas pessoais de se virem a reger por regras de excepção, como as aplicáveis a um nyanga? Em última instância, poderá uma conjugação de factores deste tipo explicar, nalguns casos, a própria emergência doença de chamamento?
Independentemente da resposta à última pergunta, estaríamos, caso as duas anteriores fossem pertinentes, perante uma vocação simultaneamente imposta (agora, por parte da família e da comunidade) e construída pelo indivíduo, enquanto solução mais desejável para si.
Seguranças e dúvidas
Confirmar ou infirmar esta hipótese através de meios discursivos implicaria, contudo, que os interlocutores locais a considerassem merecedora de ser discutida com seriedade. A minha experiência diz-me que não é assim. Para um nyanga (presente ou futuro) ou para alguém que se viu envolvido no seu chamamento, o facto de este resultar da acção dos espíritos é um dado adquirido. Discutir uma interpretação que os exclua é, por isso, um absurdo que não merece o esforço, o resultado de uma ignorância que urgirá colmatar através da explicação da interpretação local, ou um abuso que pretende impor a uma realidade evidente critérios que lhe são estranhos.
Ficamos, dessa forma e acerca deste assunto, limitados à especulação intelectual e à vaga e improvável esperança de que, no futuro, alguém possa ter a possibilidade de, tendo em mente as perguntas que formulei, acompanhar um processo de chamamento desde antes da sua ocorrência formal.
Estas dúvidas não impedem, contudo, que possamos apontar algumas respostas seguras para as questões que nortearam o nosso percurso ao longo deste artigo.
Prendiam-se elas, recordemos, com a eventual correspondência da actividade e percurso dos tinyanga à ideia de vocação (e o carácter de imposição que esta apresentaria), com a relação entre vocação e as interpretações locais e, por fim, com a eventual utilidade que essa palavra e noção poderiam apresentar para a compreensão das dinâmicas de chamamento e exercício profissional dos tinyanga.
Pudemos verificar que são observáveis na actividade dos tinyanga as características atribuídas à vocação, tanto no sentido sociológico da sua centralidade emocional e valorativa na vida dos seus praticantes, quanto no sentido mais comum de predisposição de carácter e potenciais capacidades para o seu exercício.
Vimos também que, numa perspectiva interna ao sistema de pensamento que serve de sustentáculo a esta actividade, a questão da vocação tanto pode ser considerada redundante como, simultaneamente, servir de base à demonstração quer do seu carácter impositivo, quer da esperada predisposição daqueles que são chamados.
Esta predisposição de características pessoais adequadas e necessárias à actividade (que tudo indica venham a ser refinadas e desenvolvidas nos processos de aprendizagem e exercício profissional) é, por sua vez, também reconhecível a partir de uma perspectiva exterior que restrinja a análise aos factores sociais observáveis, excluindo da equação a putativa acção dos espíritos.
Ela permite-nos, aliás, explorar e aprofundar as dinâmicas do chamamento numa direcção que, se não é habitualmente equacionada pelas próprias pessoas envolvidas, faz sentido para elas: a forma como a prévia imagem pública da pessoa que vem a ser chamada (como sendo alguém com comportamento e capacidades que fogem, de forma algo inquietante, às normas correntes) parece facilitar a identificação e aceitação do seu problema de saúde como sendo um chamamento. Um mecanismo que, em última instância, se pode transformar numa pressão social para que o indivíduo em causa assuma o papel de nyanga – e, nesse sentido, numa imposição da vocação.
Desta forma, a utilidade de termos importado para este contexto profissional uma noção que lhe costuma ser extrínseca acaba, afinal, por ser muito mais marcada no caso das acepções correntes da palavra vocação do que quanto às suas definições sociológicas, que pouco mais nos permitiram que a constatação de que podem ser aplicadas a esta realidade, embora não lhe correspondam com exactidão.
Esse “pouco mais” é, no entanto, relevante.
Centrando-se essas definições na experiência subjectiva da actividade profissional (por muito socialmente formatada que essa experiência possa ser), é no seu confronto com experiências subjectivas concretas que se revela a sua pertinência e limitações. Ora pudemos verificar que, se a centralidade da profissão na vida dos tinyanga apresenta os traços emocionais e valorativos esperados, estes são apenas aspectos de uma experiência subjectiva cujo âmbito os ultrapassa: ser nyanga não é apenas uma paixão altamente valorizada pelo próprio, mas uma condição ontológica.
As noções de vocação com que costumamos trabalhar são, então, insuficientes – mesmo que as complementemos com acepções comuns da palavra.
São também, tudo o leva a crer, culturalmente situadas.
Bibliografia:
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- 1. O presente artigo resulta do projecto de investigação «Nyangas e Hospitais – lógicas e práticas curativas Moçambicanas», financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia. Para uma exposição mais aprofundada do papel social dos tinyanga e das noções locais de saúde, doença, infortúnio e cura, veja-se Granjo (2009). Note-se que a aparentemente respeitosa designação de “médicos tradicionais” (que, aliás, é retomada nas designações das suas associações representativas) tende a remeter as suas práticas para uma imagem de localismo tradicionalista que não corresponde à realidade, nem no norte do país (West 2005), nem no sul. A carga semântica de ambas as traduções portuguesas faz com que utilize neste texto a designação original de tinyanga para me referir a eles.
- 2. Ou seja, utilizando o actual jargão antropológico, recorrerei a abordagens tanto émica quanto ética.
- 3. Acredita-se ainda que a feitiçaria possa agir directamente sobre factores materiais, mas tais diagnósticos são relativamente raros e, em geral, limitados a situações de tensão social de excepcional intensidade.
- 4. Os princípios gerais deste sistema são, então, similares aos da clássica interpretação de Evans-Pritchard (1978 [1937]) acerca da bruxaria Azande, excepto no que concerne o papel activo dos antepassados. Este último aspecto está, entretanto, presente em vários outros países africanos (Janzen 1992, Campbell 1998, Dijk et el 2000, Binsbergen 2003), incluindo alguns bastante longínquos da região austral do continente (Westerlund 2000).
- 5. Veja-se, por exemplo, o caso estudado por Polanah (1987). Note-se, contudo, que esta negociação só é supostamente possível nos casos em que a reivindicação dos espíritos é feita pela primeira vez numa determinada família.
- 6. Para aprofundar esta questão e os seus paralelos com actividades tecno-científicas como a análise probabilística, veja-se Granjo (2007 e 2008).
- 7. Note-se, contudo, que muitos tinyanga estão genuinamente preocupados, com uma possível “epidemia” de possessões durante a próxima geração, quando os soldados sobreviventes da guerra civil moçambicana começarem a morrer, pois a submissão destes a rituais de limpeza (Granjo 2007a) tê-los-ão protegido de exigências das pessoas que mataram em situação de guerra, mas uma tal protecção não é extensiva aos seus descendentes.
- 8. Acerca deste Estado africano e dos diversos aspectos da sua ascensão e derrocada, veja-se Clarence-Smith (1990 [1985]), Liesegang (1986), Neves (1987 [1878]), Pélissier (1994) e Vilhena (1996).
- 9. Acerca deste processo divinatório, veja-se Granjo (2007; 2007b).
- 10. Considera-se que os espíritos não têm cheiro, para os vivos. A justificação para esta forma de detecção reside, então, na simbiose entre o nyanga e os seus espíritos – que, eles sim, conseguem cheirar os seus semelhantes.
- 11. Note-se que existe ainda um outro sentido corrente para a palavra, aplicado com mais frequência pela negativa, quando alguém não consegue exercer uma actividade que elegeu com o grau de mestria comummente esperado, apesar do seu empenho e da eventual “paixão” do seu relacionamento com ela. Nesta sua utilização, o sentido de “vocação” aproxima-se bastante do de “talento”, uma outra palavra polissémica e de difícil definição, normalmente restringida às actividades artísticas e (curiosamente) desportivas. Ela sugere, contudo, que o campo semântico da palavra só fica esgotado se acrescentarmos, aos critérios anteriores, a capacidade de exercer a actividade com elevada competência.
- 12. De facto, podem “herdar-se” espíritos por via patrilinear ou matrilinear, em linha directa ou colateral e em diferentes combinações entre esses quatro princípios. É, para além disso, normal que o conjunto de espíritos que alegadamente possuem um(a) nyanga tenha sido recebido de diferentes defuntos, com quem mantinha ligações familiares muito diversas.
- 13. A título de exemplo, um nyanga meu conhecido e muito respeitado deixou chocada uma cliente europeia ao diagnosticar, como causa de todos os seus males, o facto de ela ser solteira e não ter filhos – o que não conseguia conceber como uma opção deliberada de vida, mas apenas como uma situação contra natura para a qual a cliente tinha sido empurrada por falta de alternativas e, consequentemente, como uma fonte de desarmonia e problemas.
- 14. Num contexto profissional que é bastante menos tradicionalista do que se costuma imaginar e que, nalguns aspectos, o é mesmo menos que a sociedade circundante, os tinyanga mais auto-reflexivos e seguros de si tendem a deplorar o grau de humilhação, abuso psicológico e criação de dificuldades com que se confrontaram no seu próprio processo de aprendizagem, adoptando, quando mestres, uma atitude aberta e pedagógica para com os seus aprendizes.
- 15. Esta situação suscita preocupações entre os tinyanga que seguiram um percurso habitual e “clássico” pois, para além de dificultar a auto-regulação profissional, pode suscitar perigos maiores do que os da incompetência. Isto porque se considera que o pagamento desses espíritos não cessa com a sua compra ao dono anterior, tendo depois eles próprios que ser pagos regularmente «em sangue», isto é, com a morte de parentes ou vizinhos da pessoa para a qual trabalham.
- 16. Levanto esta dúvida porque os relatos feitos pelos tinyanga ou pelos seus familiares só muito raramente referem por moto próprio que foram equacionados, nos debates, o comportamento e a personalidade do doente. Quando pergunto explicitamente se tal aconteceu, é frequente que os meus interlocutores o confirmem; mas não tenho condições para garantir em que medida tal confirmação se pode ficar a dever a uma reinterpretação coerente dos factos, suscitada pela minha pergunta.