Em Moçambique, antes de mais a paz
Desde a sua independência, em 1975, são raros em Moçambique os movimentos sociais “clássicos”. As razões para esse facto parecem ter mais a ver com condições históricas do que com um qualquer particularismo cultural.
Durante o regime de partido único que se estendeu até 1992, a FRELIMO (no poder desde 1975 até hoje) implantou na sociedade “organizações de massas” sob controlo partidário que cobriam praticamente todas as situações de género, idade, profissão e local de residência. Com o multipartidarismo, tais organizações perderam importância social mas mantiveram-se sob um controlo do poder instituído que restringe a sua capacidade representativa e reivindicativa. Em contrapartida, a transformação em partido político da RENAMO (a força de guerrilha que se opôs ao governo da FRELIMO na guerra civil de 1976/1992) não foi acompanhada pela criação de organizações ou movimentos sociais dentro da sua área de influência, que pudessem atuar como contrapoder ou canalizar descontentamentos populares. Por seu lado, as muitas associações da chamada “sociedade civil” que entretanto foram criadas são quase sempre de âmbito muito sectorial e limitado, seguindo a lógica e formas de financiamento internacional das ONG e, na sua larga maioria, também elas têm relações de dependência com o poder ou com figuras a ele ligadas1.
Bem entendido, sendo a sociedade moçambicana marcada por grandes desigualdades e por graves problemas sociais e económicos, as razões para protestar existem e os protestos acontecem. Só que, não existindo associações que os organizem e nas quais as pessoas se reconheçam, tais protestos tendem a ser inorgânicos, bastante espontâneos e sem outra forma de expressão possível a não ser a violência.
Segundo Christian Geffray2, a própria guerra civil pode ser encarada dessa forma, a partir do momento em que a RENAMO deixou de ser uma mera criação dos serviços secretos rodesianos e sul-africanos, para passar a ser adotada, por uma parte das populações rurais, enquanto instrumento de protesto e resistência contra uma agenda estatal modernizante que era considerada abusiva e insultuosa. Também as recorrentes ondas de linchamentos urbanos3 e de “vigilantismo”4 coincidiram com momentos de particular tensão social e podem ser interpretados, à luz das referências simbólicas locais, como modos de ação coletiva que têm como móbil a precariedade das condições de vida quotidianas, expressando quer o protesto contra essa situação, quer a tentativa de alcançar algum controlo sobre tal incerteza de vida5. De forma ainda mais clara, os letais motins populares ocorridos na capital – Maputo - e noutras grandes cidades em 2008 e 20106 constituíram não só reações contra decisões governativas que ameaçavam as condições de subsistência da população periurbana, mas também protestos contra uma forma de exercício do poder político que desrespeitava o delicado equilíbrio dos direitos e deveres que compõem a visão popular de “contrato social”.
Também nos últimos anos, o protesto violento voltou a ser a principal forma de expressão de reivindicações localizadas. A implantação de projetos extrativos de capital transnacional provocou a deslocação e realojamento de populações rurais para áreas que estavam antes livres por serem pouco adequadas à prática de agricultura familiar com as condições tecnológicas a que essas pessoas têm acesso. Esse facto e discordâncias com as indemnizações pagas pelas grandes empresas extrativas conduziram a reclamações que, particularmente na região de Moatize (província de Tete) assumiram a forma de cortes de estradas e de linhas férreas, acompanhados de confrontos com forças policiais fortemente repressivas e violentas.
Sendo este movimento social muito relevante, não deixa de apresentar as características habituais em explosões reivindicativas passadas. Também por isso, preferi destacar neste artigo um outro movimento recente, muito contrastante com os anteriores e inesperado na sua forma e impacto: as marchas e outras ações pacíficas e apartidárias exigindo a manutenção da paz, num país que, 24 anos depois de uma longa e traumática guerra civil, a sente de novo ameaçada. Deveremos, no entanto, começar por compreender os contornos, natureza e dinâmica dessa estranha situação atual, que não é de guerra nem de paz.
O que é, esta paz podre?
Em finais de 2012, o presidente do maior partido da oposição, Afonso Dhlakama, retirou-se para a histórica base de guerrilha da RENAMO em Satungira, reivindicando mudanças na lei eleitoral e o cumprimento de cláusulas do Acordo de Paz firmado 20 anos antes, que previam a integração no aparelho de Estado dos antigos oficiais das suas forças. Esse aco foi interpretado publicamente como mais uma das recorrentes exigências musculadas de negociações com o governo, tendo agora em vista o acesso aos benefícios da futura exploração das reservas de gás natural, há pouco descobertas. No entanto, 2013 assistiu a diversos recontros armados num troço da principal estrada do país, a que se seguiu um cerco e ataque a Satungira, ordenado pelo então presidente da república Armando Guebuza. Dhlakama conseguiu fugir, mas manteve-se em parte incerta até às eleições parlamentares e presidenciais de 2014, em que todos os partidos participaram, na sequência de conversações para cuja realização terá sido bastante importante o movimento popular pela paz, de que adiante falarei.
Eleito como novo presidente da república o candidato da FRELIMO, Filipe Nyusi, esperava-se que o seu declarado empenho em resolver as tensões por via negocial conduzisse à resolução da crise político-militar. Não obstante, 2015 ficou marcado por emboscadas a comitivas de Dhlakama, pela sua exigência de governar as províncias onde o seu partido fora mais votado, por cercos e assaltos policiais a casas suas e a sedes da RENAMO (alegando buscas de armas) e por ataques a populações que ambas as partes atribuem aos seus adversários. As ações policiais e atentados continuaram em 2016 e, enquanto o parlamento funciona com a presença dos deputados eleitos pela RENAMO, o seu líder está de novo escondido em parte incerta. Foram reatadas conversações mas, se o país não está em guerra, tão-pouco vive em paz.
Mesmo se as escaramuças de 2013 provocaram vítimas e representavam uma forte provocação ao poder e soberania do Estado, a decisão presidencial de atacar Satungira suscitou espanto entre as populações urbanas, por estadistas experientes tomarem uma opção com riscos tão altos para os interesses de toda a gente, incluindo das próprias elites. A possibilidade de o ataque dar início a um conflito em larga escala era bem real e isso não afetaria apenas as futuras vítimas de confrontos armados. Mesmo quem nunca ouvisse um tiro sofreria com a ruptura de atividades económicas básicas, resultante dos impedimentos à circulação. Mais do que isso, uma guerra acarretaria a suspensão de fundos internacionais imprescindíveis ao funcionamento da economia urbana, levando ao colapso das condições de subsistência e impossibilitando a obtenção de riqueza por parte das elites político-económicas.
De facto, com reduzida atividade produtiva, à exceção de um setor primário largamente familiar e de algumas grandes empresas intensivas em capital estrangeiro, a vida económica monetarizada e os florescentes comércio e serviços citadinos tornam-se viáveis devido à recirculação do enorme caudal de meios financeiros vindos do exterior – no qual a contribuição anual de países estrangeiros para 50 a 60% do orçamento de estado representa apenas 20 a 25% de todos os fundos externos para “apoio ao desenvolvimento”. Assim, não apenas o suprimento de bens de consumo e as atividades económicas urbanas dependem desse influxo, como também a acumulação financeira das elites económicas nacionais passa pela captação desses fundos.
Como pode, então, ser racional uma opção belicista que ponha tudo isto em perigo? Para encontrarmos a resposta a esta questão, que nos diz também qual a natureza desta crise moçambicana, teremos que compreender as relações entre riqueza e poder, neste país.
De onde é que isto vem?
In short, a acumulação de riqueza em larga escala tem como fonte fundamental (mesmo quando indiretamente) os fundos externos, mas aceder-lhes implica deter o Estado ou, pelo menos, integrar as redes político-económicas que têm como fulcro quem o detém. A transformação da elite política em (também) elite económica recorreu a vários instrumentos. Inicialmente, aos processos de privatização7; depois disso, à captação imediata de recursos públicos (direta ou através de comissões, de garantias bancárias ou de empréstimos não-reembolsáveis); mais recentemente, com a canalização de fundos externos para o orçamento de estado e o aumento quer do controlo exterior sobre esses fundos públicos, quer da antecedência com que é definida a sua aplicação, à informação privilegiada que permite a criação antecipada de empresas com quem venham a ser contratados os projetos adstritos a esses fundos8.
Cada vez mais, não basta pertencer à elite política para se tornar e manter rico. É necessário pertencer ou ter relações privilegiadas com a parte da elite que, em cada momento, ocupa o topo do poder político – que, por imperativo constitucional, muda a cada dois mandatos presidenciais. A rápida substituição das figuras empresariais de topo no início das presidências de Guebuza demonstra como isso é fulcral; mas antecipa que também ele e a sua entourage poderiam ser marginalizados do acesso à riqueza, precisamente quando as descobertas de gás natural a aumentavam exponencialmente.
Neste quadro, torna-se muito plausível a hipótese de que a decisão de atacar Satungira, ameaçando mergulhar o país numa guerra desastrosa para todos, não fosse afinal irracional. Não o seria, caso o seu objetivo fosse pressionar a própria FRELIMO a, face à possibilidade do caos, usar a sua maioria parlamentar qualificada para alterar o limite constitucional de mandatos presidenciais, adiando transições de poder e mantendo ao leme um político forte e experimentado.
Essa alteração constitucional, cuja possibilidade chegou a ser comentada publicamente, não veio a acontecer – e, mais uma vez, o movimento social exigindo a paz não será estranho a esse desenlace. No entanto, desenvolvimentos posteriores vieram reforçar a validade da hipótese que formulei. A FRELIMO escolheu como candidato presidencial uma figura sem grande capital histórico e exterior ao conjunto de dirigentes mais influentes, Guebuza procurou manter-se como presidente do partido e estatutariamente superior hierárquico do novo presidente da república e, a partir do momento em que este declarou o seu empenho na via negocial, essas suas palavras e esforços parecem ter sido repetidamente desautorizadas pelo aparelho de Estado – o que seria anteriormente impensável e pressupõe apoios aos mais altos níveis.
Dessa forma, foi-se tornando bastante evidente que continua em curso uma luta de poder dentro do partido governante e que a imposição ou de uma saída negocial ou de uma saída belicista para a actual crise político-militar é, simultaneamente, um instrumento fulcral dessa luta e um resultado que será por ela decidido. Isto, mesmo que a hipótese que formulei se viesse a revelar incorreta; mas, caso ela esteja certa, tal quererá dizer que, desde o primeiro momento de grande crescendo desta crise, os seus contornos, dinâmicas e enjeux terão sido definidos em função das lutas de poder internas a um dos aparentes contendores – aquele que detém o Estado.
Antes de mais nada, a paz
Se os jogos de poder internos à FRELIMO decidem a atitude estatal para com a crise político-militar, isso quer também dizer que, caso a maioria dos seus grupos dominantes convergirem no reforço do poder real de Nyusi a fim de encerrar a ameaça bélica, será provavelmente simples encontrar um plano de entendimento aceitável para esse partido e para a RENAMO. E isso quer dizer que, caso o atual presidente não se venha a conseguir afirmar como o efetivo detentor do poder, é previsível um reforço da via belicista.
No entanto, nem a FRELIMO está sozinha na sociedade e em tais processos de decisão, nem tão-pouco está sozinha com a RENAMO. Um dos atores relevantes neste processo é, precisamente, o atípico movimento social pela paz.
Se há uma atitude que, ao longo de 18 anos, sempre ouvi ser expressa em uníssono por moçambicanos urbanos e periurbanos das mais diversas condições sociais, é que ninguém quer aceitar uma nova guerra. Este profundo sentimento partilhado permite compreender porque é que, face ao autoexílio de Dhlakama e às escaramuças de 2013, a reação popular predominante insistisse na ideia de que os poderosos da FRELIMO negociassem com os poderosos da RENAMO uma “fatia do bolo” do gás natural. Ou seja, as pessoas têm consciência dos mecanismos de acesso à riqueza, consideram-nos injustos e um latrocínio, pressupõem que é esse acesso que move as elites políticas nas suas ações, mas estão dispostas a tolerar ou incentivar a apropriação privada de bens públicos, desde que essa seja a forma de salvaguardar a paz.
Ao medo da escalada bélica resultante do assalto a Satungira vieram juntar-se, nas cidades, fenómenos de insegurança pública com antecedentes noutros períodos de transição de poder: movimentos espontâneos de “vigilantes” e a ocorrência de atos criminosos de grande visibilidade – deste vez, uma onda de raptos para obtenção de resgates, perante a inoperância ou cumplicidade da polícia.
O sentimento geral de insegurança e incerteza, a noção de que o governo de Guebuza decidira privilegiar uma via bélica que tornaria impossível a vida de todos, ao mesmo tempo que não protegia os cidadãos, criaram o caldo de cultura para algo inédito. Primeiro, a multiplicação nos media e no espaço público de discursos anti-belicistas e críticos da governação, apesar de um clima intimidatório por parte do poder. Depois, a rápida convergência de um largo número de organizações sociais, de figuras públicas e académicas, de líderes religiosos, em torno da urgência de pressões públicas contra a ameaça de guerra e a insegurança pública.
Esse movimento informal e apartidário, mas muito abrangente, teve a sua face mais visível nas marchas pacíficas que atravessaram as cidades de Maputo, Beira e Quelimane em Novembro de 20139. Apesar do receio de que essas manifestações fossem reprimidas pela polícia, foram contabilizados em Maputo 30.000 participantes (um número raríssimo, mesmo em ações com intensa mobilização partidária e utilização de meios estatais), expressando exigências que responsabilizavam diretamente as políticas governativas e o presidente, um facto também ele raro.
O impacto político e público foi ainda reforçado pelo fracasso de uma manifestação de apoio a Guebuza, organizada pouco depois pelo aparelho da FRELIMO10. Em claro contraste com ações partidárias anteriores, esta apenas juntou poucas centenas de pessoas, fragilizando em vez de reforçar a posição do então presidente.
Ficou afirmada uma imagem de repúdio urbano, da “sociedade civil” e dos próprios apoiantes da FRELIMO para com soluções bélicas, que foi mantida e reatualizada por recorrentes declarações mediáticas de diferentes atores sociais, incluindo de dirigentes históricos do partido no poder.
Um efeito imediato foi que o discurso da FRELIMO e da RENAMO passou a ter que reclamar intuitos pacíficos e a atribuir ao oponente todas as intenções belicistas. Também as suas operações no terreno, progressivamente alvo de criticismo público, se tiveram que tornar mais esparsas, moderadas e discretas. A ligação de Guebuza à escalada da crise, por sua vez, levou a que a pressão popular pela paz contribuísse para gorar as suas eventuais veleidades de perpetuação no poder – primeiro, pela ausência de mudanças constitucionais; depois, pela indigitação de um candidato presidencial que não era a sua primeira escolha; por fim, já em 2015, pelo seu tenso afastamento da presidência do partido.
Por seu lado, a posterior descoberta de uma enorme dívida pública oculta, contraída no final do anterior mandato presidencial sob a forma de garantias estatais a empréstimos contraídos por empresas-fantasma ligadas a altas figuras políticas, parece ter vindo a contribuir para fragilizar o poder de influência do ex-presidente. Por efeito do impacto das movimentações pela paz e do escândalo público suscitado por esta sua desagradável surpresa (que já está a mergulhar as áreas urbanas numa situação de crise económica), Guebuza surge cada vez mais às restantes elites da FRELIMO como um problema, e não como uma possível solução.
Dessa forma, fragilizam-se as pressões belicistas e aumentam as probabilidades de uma saída negociada para a crise político-militar. Mas talvez nada disso fosse possível, caso o movimento social pela paz não se tivesse criado e afirmado em finais de 2013, condicionando a atuação dos partidos em contenda e os instrumentos da competição entre as elites políticas.
- 1. . As principais exceções situam-se nas áreas do feminismo, do ambientalismo e da monitoria de direitos humanos e corrupção.
- 2. Geffray, C. (1991). A causa das armas em Moçambique: antropologia da guerra contemporânea em Moçambique. Porto: Afrontamento.
- 3. Granjo, P. (2015). Entre Maputo e Lisboa: reflexos de um antropólogo na blogosfera. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais; pp. 67-79.
- 4. http://www.mozambiquehistory.net/crime.php
- 5. Granjo, P. (2009). “O linchamento como reivindicação e afirmação de poder em Moçambique”, Revista Angolana de Sociologia, 3; pp. 21-44.
- 6. Granjo, P. (2010). “Sortant «de la bouteille»: raisons et dynamiques des émeutes au Mozambique”, Alternatives Sud, 17 (4) ; pp. 179-185 et Granjo, P. (2015); pp. 107-135.
- 7. West, H. (2008). “«Governem-se vocês mesmos!» - democracia e carnificina no norte de Moçambique”, Análise Social, 187; pp. 347-368.
- 8. Cortês, E. (2001). Mais de (quase) o mesmo: o apoio directo ao orçamento e a apropriação dos bens públicos em Moçambique. Lisbonne, ISCTE-IUL, tese de mestrado disponível em https://repositorio.iscte-iul.pt/handle/10071/2515
- 9. http://opais.sapo.mz/index.php/sociedade/45-sociedade/27644-30-mil-cidad...
- 10. http://www.dn.pt/globo/cplp/interior/centenas-de-pessoas-em-manifestacao...