Sim, europeus e afro-descendentes
Quand on parle de Noir, on pense “Africain”.
Quand on dit “Européen” on pense “Blanc”.
(Rokhaya Diallo)1
Pela primeira vez, em 2018, o Parlamento Europeu dedicou uma semana ao conhecimento e reconhecimento das especificidades dos cerca de 15 milhões de europeus afrodescendentes a viver na Europa.2. A primeira People of African Descent Week (PAD Week) teve uma organização conjunta de várias instituições da União Europeia3 e contou com a participação de académicos, ativistas, artistas, jornalistas, entre outros, com o intuito de discutir questões fundamentais para os europeus afrodescendentes. Este acontecimento alinha-se com a Década Internacional de Afrodescendentes (2015 a 2024), proclamada pela ONU, e abre um novo caminho na discussão destas questões, quer dentro das instituições da União Europeia quer nos seus países constituintes.
Salvo exceções de pioneirismo, só nos últimos anos se começa a ouvir e ler o prefixo “afro” nos diferentes fóruns europeus, com uma conotação positiva: das artes à academia, do associativismo e ativismo aos média e às redes sociais, das associações locais comunitárias às políticas europeias. Serão estes alguns indicadores de uma Europa a tentar re-imaginar-se e a re-imaginar as suas memórias, o seu passado, numa perspetiva mais democrática? Há cerca de cinquenta anos, a ONU dava início a um programa determinado de conferências e ações contra o racismo, mas isso não impediu que durante mais de 20 anos evitasse reconhecer os afrodescendentes como vítimas contemporâneas da truculência da escravatura e do colonialismo (Conferência de Durban)4.
Ao clarificar o que o conceito afrodescendente inclui e exclui percebe-se, em alguns discursos, uma amálgama e uma visão historicamente amorfa ou trancada no passado. Segundo Garcia (2015), e em sintonia com o definido na Conferência de Durban, afrodescendente é um coletivo de pessoas que nasceram fora do continente africano ou que dele saíram, e que herdam noutras geografias a opressão, a violência e a vulnerabilidade da ancestralidade histórica imposta por ideologias racialistas. Visto por este prisma, o conceito de afrodescendente comporta uma história familiar entrelaçada com as histórias coloniais. Ainda de acordo com este autor, a diáspora que resulta do movimento global dos impérios, e de onde emerge o conceito de afrodescendente, revela uma “similitude transfronteiriça”, “um núcleo comum”, o “sentimento de ter participado numa experiência política, económica e cultural idêntica, que transcende individualidades e gerações”5. Esta aceção possibilita a passagem da heterogeneidade dos europeus de ascendência africana à categoria de afro-europeus enquanto sujeito histórico, enquanto sujeito coletivo. As singularidades incorporam-se em afro-lisboetas, afro-portugueses, afro-europeus, afrodescendentes. Veja-se então a afrodescendência como um coletivo heterogéneo, como uma identidade política e politicamente situada, que exige uma mudança epistemológica na leitura da história e das memórias dos países. Memórias que reconheçam a presença de África fora de África. Memórias que reconheçam a herança da escravatura e do colonialismo num sentido lato, que incluam a história geral das guerras anticoloniais, a história das resistências, o panafricanismo, a negritude, o afrofeminismo, entre tantos outros movimentos sociais, políticos e culturais, como parte constitutiva da Europa. E este reconhecimento é revelador do quanto a história europeia também se passou fora da Europa, no chamado ultramar/ oversea / outre-mer. É urgente a reescrita da história entre a Europa e a África pelas gerações contemporâneas de europeus.
Para estas novas gerações, como refere Amzat Boukari-Yabara (2018), já não se coloca a questão do retorno6. Contudo, a afirmação de Rokhaya Diallo, em epígrafe, revela ainda a dificuldade da Europa em lidar com o seu passado. As ações de movimentos ativistas, a PAD Week, a Década Internacional de Afrodescendentes, entre outros movimentos e eventos, colocam atualmente estas questões nos grandes centros europeus, em espaços privilegiados, e que exigem à Europa a descolonização das suas fantasias coloniais, da fantasia da origem, da “outridade”7, da pertença. Sim Europa, europeus e afrodescendentes.
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Artigo produzido no âmbito do projeto de investigação MEMOIRS– Filhos de Império e Pós memórias Europeias, financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (nº648624), Programa Eu
- 1. Rokhaya Diallo é escritora, jornalista e ativista francesa e esteve presente na mesa redonda “Black Lives Europe” da People of African Descent Week.
- 2. Número apontado pela European Network Against Racism. A ENAR é uma rede europeia fundada em 1998 e que resulta da organização de diferentes movimentos associativos antirracistas de vários países europeus. É uma rede que dá voz aos movimentos antirracistas na Europa e que tem como missão pressionar e aconselhar os estados membros da União Europeia em relação às suas políticas no domínio da (des)igualdade racial. Esta organização tem o apoio do Rights, Equality and Citizenship Programme da União Europeia, da Open Society Foundations, da Joseph Rowntree Charitable Trust e da Sigrid Rausing Trust. Para mais informações: https://www.enar-eu.org/
- 3. European Parliament Anti-Racism and Diversity Intergroup (ARDI), Transatlantic Minority Political Leadership Conference (TMPLC), Each One Teach One (EOTO), e European Network Against Racism (ENAR).
- 4. As duas primeiras Conferências Mundiais Contra o Racismo decorreram em Genebra, em 1978 e em 1983, e a terceira em Durban, em 2001. Nesta última conferência destaca-se também o pedido, à Comissão das Nações Unidas para os Direitos Humanos, de criação de um grupo de trabalho ou de outro mecanismo da ONU dedicado às questões da descriminação racial específicas dos afrodescendentes. Em 2002 é criado, pela Comissão citada, o Grupo de Trabalho de Especialistas sobre Povos Afrodescendentes (resolução 2002/68).
- 5. Garcia, Alejandro Campos (2015), “Introducción”, in Silvia Valero, Alejandro Campos García, Identidades políticas en tiempos de la afrodescendencia: auto-identificación, ancestralidad, visibilidad y derechos. Buenos Aires: Ediciones Corregidor, 20.
- 6. Ver texto de Amzat Boukari-Yabara, “Contornos pan-africanos das memórias pós-coloniais”, no jornal Memoirs disponível em: http://memoirs.ces.uc.pt/ficheiros/4_RESULTS_AND_IMPACT/4.3_NEWSLETTER/M....
- 7. Mata, Inocência (2006), “Estranhos em Permanência: A Negociação da Identidade Portuguesa na Pós-Colonialidade”, in Manuela Ribeiro Sanches, Portugal não é um País Pequeno. Contar o ”Império” na Pós-colonialidade. Lisboa: Livros Cotovia: 293-294.