Tragicômico retrato dos filhos de Angola

sobre o livro de contos Filhos da Pátria, do angolano João Melo.

“Angola pós-independência, com seus conflitos e contradições, sua conturbada construção de uma identidade, as feridas abertas no período colonial e as dores e violências de uma guerra civil fratricida, os sonhos e pesadelos antagônicos de gerações, é o pano de fundo dos contos de Filhos da Pátria (Editora Record, 2008), do jornalista, poeta e professor universitário João Melo, editor da importante revista África 21”, escreve Salim Miguel, na edição de sábado (15) do Diário Catarinense.
“Os 10 contos que compõem o volume revelam um autor preocupado com seu tempo e sua gente, o que se constata já a partir do primeiro texto, “O elevador”, em que acompanhamos a rendição de Pedro Sanga, acicatado pelo desprezo da mulher, ao canto de sereia de um antigo camarada de luta pela independência, agora chamado por seus subordinados de “Camarada Excelência”. A subida no elevador - avanço tecnológico - torna-se, de fato, uma descida aos infernos. Pedro aceita a “mamata”, porém, com resquícios tênues de ética, vomita. O conto termina numa nota de humor corrosivo, que não encobre o trágico da situação”, na leitura do autor do artigo.
O trecho a seguir - escreve Salim Miguel - é um exemplo da proposta do autor: “Como é que este gajo ficou assim? O tipo sempre foi o mais radical de nosso grupo, defendia que na Angola do futuro as classes deveriam ser abolidas e a exploração do homem pelo homem, extinta para todo o sempre - como é que se transformou assim num novo-rico nojento?”

fotografia de Sérgio Pinto Afonsofotografia de Sérgio Pinto Afonso
“Duas vertentes marcam as 10 narrativas: a visão neo-naturalista e a interferência constante do narrador, que discute a inter-relação entre a fabulação apresentada e a realidade sociopolítica. Sua linguagem é sempre direta e desataviada, faz do leitor seu parceiro, e ele logra uma eficiente cooperação entre a objetividade jornalística e a sensibilidade poética”, avalia o escritor e crítico literário do Diário Catarinense.
“Tio, mi dá só cem aborda a condição da infância abandonada, principal vítima da insânia dos adultos, num quadro que, infelizmente, não é exclusivo de Angola; o piá protagonista que perambula pelas ruas, não fosse a crueza por vezes excessiva da linguagem, poderia ser um dos personagens de Capitães de Areia, de Jorge Amado”.
As palavras são de Salim Miguel: “O efeito estufa nos apresenta Charles Dupret. Apesar de ter este nome, claramente anglo-afrancesado, ele era o mais acérrimo defensor da autenticidade angolana. Angola é um país de pretos! Esta frase contundente e absoluta estava presente em todos os discursos que fazia, mesmo quando falasse apenas do estado do tempo.”
O conto nos revela a ars poética de João Melo, ao mesmo tempo em que satiriza um certo “nacionalismo” estreito e vesgo. A certa altura, o protagonista afirma sem rebuços, durante um desfile de modas, que as pretas e os pretos autênticos de Charles são imunes ao efeito estufa.

fotografia de Sérgio Pinto Afonsofotografia de Sérgio Pinto Afonso
“Não tenho a intenção de examinar todos os contos, pois é sempre melhor deixar que o leitor tire suas próprias conclusões na plena fruição de suas descobertas”, opina o crítico.
E, mais adiante, escreve: “João Melo estabelece um diálogo permanente com a literatura, temos um exemplo no texto em que retoma com audácia a história de Romeu e Julieta, ambientada na Angola de hoje, Shakespeare ataca de novo; ele nos faz ver que embora o amor seja um sentimento vindo de priscas eras, é modulado pelo espaço e pelo tempo”.
Salim Miguel aborda um outro conto. “Abel e Caim nos apresenta dois amigos de infância que se afastam e passam a se odiar, um no MPLA de Agostinho Neto e outro no Unita de Savimbi; não nos é revelada a escolha de cada um. O narrador conclui, transferindo para o leitor o encargo de achar um fecho para o conto, com as seguintes palavras: “Resta-me, portanto e - confesso - muito convenientemente, sugerir aos leitores que, se acharem que tal vale a pena, resolvam com a própria cabeça como deverá acabar a estória [ou história?] de Abel e Caim [ou Caim e Abel, como decidirem].”
O escritor brasileiro, autor de Jornada com Rupert, lembra que “desde tempos imemoriais, as gentes contam e ouvem histórias, passadas de geração a geração; nas sociedades ágrafas, a tradição oral tem papel decisivo na constituição de sua identidade, importância que passa a ser compartilhada com os escritos nas sociedades letradas”.
“Angola tem uma rica herança recebida das várias etnias que a constituem e que tem servido de material literário; não se pode separar a luta pela independência de Angola da produção de seus escritores, basta citar Antonio Jacinto, Viriato da Cruz e Luandino Vieira, este, felizmente, ainda em plena atividade. João Melo é de nossos dias, e o quadro que nos traça da realidade angolana é amargo, onde se pergunta que pátria e que futuro terão seus filhos; a indignação que perpassa seus escritos é uma ferramenta para a reafirmação da esperança”.

 

originalmente publicado no Diário Catarinense

15/11/2008

por Salim Miguel
A ler | 22 Julho 2011 | literatura angolana