Trump no Portugal dos Pequenitos
Decididamente não da melhor forma, Donald Trump tem contribuído para alargar o debate público sobre o racismo, ao mesmo tempo que se enchem caixas de correio com notificações de notícias e mensagens de alerta de colegas que nos perguntam: ‘Já viste a última dele?’ Assim saem de cena os despejos no Bairro de Santa Filomena e no 6 de Maio pela Câmara da Amadora, onde se foram abatendo paredes em cima de histórias de vida tão precárias e no pico do Inverno, contrariando as normas das Nações Unidas. A violência racista na esquadra de Alfragide e em bairros da periferia, e um número desproporcional de jovens negros mortos pela polícia em Portugal sem uma única condenação. E a petição pela concessão da nacionalidade aos filhos de imigrantes que nascem em território português e que nunca conheceram outro país. Nada disto parece gerar os mesmos anticorpos que o racismo do outro lado do Atlântico.
Diagnosticado à distância como narcisista maligno, Donald Trump parece refastelar-se em toda esta atenção. Pergunto-me porque é que tem tanta, sobretudo quando o interesse público com o seu racismo não parece ser semelhante ao suscitado aquando da morte do adolescente Trayvon Martin na Flórida, às mãos de um vigilante de bairro (se nos lembramos hoje dele é devido às grandes manifestações contra a absolvição de George Zimmerman, na origem do movimento Black Lives Matter).
A popularidade do entretanto todo-poderoso Presidente foi sendo analisada à exaustão nos media; porém, o relevo que este adquiriu nos debates sobre racismo foi uma questão menos explorada. Entre as várias razões para tal proeminência está a forma como nos debates em torno de Trump se evoca um entendimento do racismo que nos é muito familiar: designadamente, o racismo como um fenómeno excepcional e marginal nas sociedades democráticas e, portanto, manifesto em personalidades autoritárias e desviantes ou em grupos políticos extremistas (daí a proliferação de metáforas da doença para o abordar; por exemplo, como um cancro no corpo político da nação). O preconceito é a formulação favorita desta enunciação, que invoca uma certa história da Europa – a do Holocausto – e obscurece a historicidade dos diversos projectos coloniais que lhe antecederam e consagraram raça como categoria-chave na concessão de direitos sociais e políticos. Esta concepção não é nova: nas décadas de 1950 e 1960, as várias intervenções da UNESCO em torno da legitimidade científica do conceito de raça marcaram os debates políticos e académicos até hoje, tornando dominante uma noção de racismo como ignorância e os preconceitos que residem ‘na mente das pessoas’. Privilegiando estruturas cognitivas ao invés de estruturas de poder, é esta concepção que permite tal fascínio por esta figura autoritária dos nossos tempos, e que se assemelha a outra figura emblemática do racismo de outros tempos. Note-se que este entendimento do racismo foi sempre contestado: na primeira metade do século XX, várias foram as intervenções que nos mostram que o centro da atenção dos intelectuais negros – como W.E.B. Du Bois e Carter G. Woodson – eram as estruturas de poder que geravam uma distribuição desigual de recursos (materiais e simbólicos), associada a preconceitos e hierarquias raciais. No entanto, esta outra concepção de racismo, que aponta para a sua dimensão institucional e a questão do poder, nunca conseguiu a mesma aceitação – porque mexe, precisamente, no que está instituído. Neste sentido, centrar-nos mais na figura do ‘racista’ do que na continuidade das políticas que sustentam o racismo deixa de poder constituir um acaso ou um acto ingénuo: ao fazê-lo, obliteram-se outras formas de entender e confrontar este processo e, sobretudo, legitimam-se as estruturas mais amplas de distribuição de poder e privilégio. Enquanto focamos a nossa atenção e nos indignamos com as medidas tomadas por Trump – muitas vezes até mais pela forma desbocada de as comunicar do que pelo seu conteúdo –, estamos a deixar passar, ao nosso lado, discursos e práticas políticas que têm a mesma natureza excludente e racista, sem que tenham direito a capa de jornal, notificações de alerta ou a tantas entradas em blogs.
Falemos de muros e de fronteiras, de imigração e refugiados, e também da escravatura. O muro de Beja. O chamado ‘muro da vergonha’ no Bairro das Pedreiras que separava a população cigana da restante. Erguido em 2006, denunciado publicamente em 2010, objecto da condenação do Estado português pelo Comité Europeu dos Direitos Sociais em 2013, e mesmo assim teve de ser derrubado pela própria comunidade cigana em 2015, porque as boas intenções não derrubam pedras. As fronteiras. O Mediterrâneo, esse fosso tão policiado pela Frontex em que todos os anos naufragam milhares de vidas e torna desnecessário erguer mais muros. A construção dos ‘bons’ e ‘maus imigrantes’ pelo centrão partidário, para justificar políticas restritivas da imigração e se desresponsabilizar pela discriminação racial. Os refugiados, umas escassas centenas até 2015, num país que se auto-declara campeão da tolerância. E que os portugueses ‘preferem’ aos imigrantes, como indicava a European Social Survey publicada em 2016. Os escravos comparados a imigrantes. Em incalculáveis momentos solenes, discursos políticos, monumentos e exposições, panfletos e manuais, para mostrar como Portugal colonial foi pioneiro da globalização e da interculturalidade. E o Portugal dos Pequenitos, quando vamos falar do Portugal dos Pequenitos?
Artigo originalmente publicado no jornal Público, 31 Março 2017.