Um ecrã em mil tons de branco
Da representatividade às representações, o cenário étnico-racial da televisão portuguesa permanece maioritariamente branco. Os profissionais comprovam-no e os dados também.
Discriminação é um sinónimo de violência. É uma violência de contornos específicos, focada na diferença entre um sujeito e o outro, e o espaço que fica reservado a cada um. Esta operação premeditada de diminuir alguém com base na sua pertença está presente em quase todos os recantos da sociedade portuguesa. Estas dinâmicas de opressão estão bem entrelaçadas na estrutura do sistema, mas é na comunicação que são validadas e disseminadas.
“Fui crescendo e vendo que pessoas como eu não estavam representadas na televisão.” – Foi perante este cenário que Helena Vicente, hoje investigadora do Instituto de Ciências Sociais (ICS), decidiu estudar a presença negra na televisão portuguesa para a sua tese de mestrado. É uma pesquisa cujo foco é praticamente inédito em Portugal. Além de quantificar e caracterizar a presença negra na televisão portuguesa ao longo de 25 anos, traça também as perceções dos profissionais sobre o meio e os seus percursos.
Entre 1992 e 2017, foram identificados apenas 36 profissionais negros em posições de presença regular na programação televisiva em Portugal. Se excluirmos a RTP África, sobram apenas 16. Estas posições são maioritariamente compostas por apresentadores, pivôs e repórteres, mas inclui outras, como comentadores ou analistas políticos. Neste ponto, é de realçar a prevalência de posições ligadas ao entretenimento, algo que Helena Vicente reconhece ser um retrato do mercado, uma vez que existem mais oportunidades nesta área do que na informação.
Apesar do aumento notório face aos primeiros anos da década de 90, estamos perante uma presença volátil e residual - as oscilações são constantes e só no ano de 2015 foi ultrapassada a marca de uma dezena de profissionais negros na televisão nacional, um número que diminuiu logo no ano seguinte.
Os canais em que aparecem, bem como os formatos (informação ou entretenimento) e horários em que surgem também foram examinados. A informação sistematizada permite uma perspetiva alargada sobre um problema sistémico em Portugal: uma estrutura social em que os lugares de destaque estão reservados a uma maioria branca e em que todos os outros permanecem invisíveis. O gráfico abaixo ilustra a distribuição dos programas com presença de profissionais negros no período em análise - em média, cada profissional identificado participou em menos de dois programas.
Estes dados não permitem determinar a representatividade negra (ou falta dela) na televisão portuguesa por comparação. Primeiro, porque não se conhece a divisão étnico-racial da população portuguesa – um tema ao qual regressaremos um pouco mais à frente neste texto. Segundo, porque não se sabe quantos profissionais constituem o universo dos apresentadores e pivôs de televisão em canais nacionais. Quando Helena Vicente contactou as diferentes estações televisivas para obter essa informação, expondo o propósito da sua pesquisa, “muitas delas não responderam e quem respondeu disse que não fazia distinção entre profissionais negros e profissionais brancos”, afirma. Mais tarde, insistiu no pedido sem revelar a finalidade e uma das estações acabou por permitir o acesso ao seu arquivo mediante o pagamento de €30 por hora visionada – um valor incomportável para uma aluna de mestrado a tentar escrutinar mais de duas décadas de transmissões. Dos arquivos da RTP à internet, passando pelos depoimentos de alguns profissionais com quem conseguiu entrar em contacto, a investigadora reconhece que a metodologia a que se viu obrigada a recorrer para a recolha dos dados pode ter deixado alguns profissionais de fora, mencionando o caso de um jornalista da TVI de quem não encontrou qualquer registo (além dos testemunhos de dois dos entrevistados). E até os arquivos são omissos: o nome da jornalista da RTP África Edna Bragança Neto não constava no arquivo da estação pública.
Carlos Pereira é uma das caras que não surge na contagem do estudo, por estar fora da linha temporal de análise. Chegou à televisão a título regular em novembro do ano passado, com um convite de Inês Lopes Gonçalves para integrar a equipa residente do 5 Para a Meia-Noite (5PMN), na RTP1. Antes disso, já tinha participado no Levanta-te e Ri, na SIC em 2019, mas a maior parte do seu repertório está espalhado pelas redes sociais e pela RDP África. Natural de São Tomé e Príncipe, foi lá que passou a infância e parte da adolescência. Para si, a questão da representatividade na televisão portuguesa não se colocou durante muitos anos. “Eu cresci com o Carlos Daniel, o Paulo Catarro e a Cecília Carmo. Quando vim para Portugal, há mais brancos… Então, sempre achei «é mesmo assim». Mas à medida que vais crescendo, vais percebendo que há uma massa que está a ser desleixada – na escola, nos meios de comunicação… É bastante curioso, porque também quase não tens malta negra nas rádios. Tens nas rádios jovens, mas fora desse espectro não tens. Nas rádios de informação, não tens. Mesmo a RDP África é composta maioritariamente por pessoas brancas”, refere.
A televisão é, de longe, o meio de comunicação preferido dos portugueses e nem a invasão digital travou a sua influência. O estudo “As Novas Dinâmicas do Consumo Audiovisual em Portugal” da ERC revelava que “99% dos inquiridos vê televisão de forma regular, não se observando diferenças significativas em termos etários e de género”. E se os últimos anos abrandaram ligeiramente o seu consumo pelas camadas mais jovens, a pandemia veio provar que continua irredutível. Assim, o seu papel de construção social é fundamental em quase todas as dimensões da população nacional. As pessoas que aparecem, bem como a forma como são retratadas, são amplificadas, alimentando perceções do mundo que nos rodeia. Para quem nunca se revê no ecrã, resta o eco de um lugar que aparentemente não lhe pertence.
“A ausência de profissionais negros na televisão obviamente tem consequências muito grandes na confiança de quem vê e partilha a tez com quem não está lá – tem consequências na tua autoestima e na tua autoconfiança. E quando vais escolher certas áreas, tu paras e pensas «por alguma razão não estão lá aquelas pessoas». Mas não tendo a possibilidade de refletir, de fazer o exercício ao contrário e pensar «por que é que não estão lá essas pessoas?»– Não estão lá porque não deixam. Pensas só «por algum motivo não estão ali pessoas como eu», então paras ali. Escolhes a porta ao lado e sais.”
– Carlos Pereira, humorista e repórter do 5 Para a Meia-Noite
Mesmo com muitas horas de produção estrangeira, a emissão de mais de duas dezenas de canais ao longo de 25 anos (pese embora nem todos existirem durante a totalidade desse período) traduz-se em milhões de horas de conteúdo e, no mínimo, centenas de profissionais. O mapeamento de apenas 36 profissionais negros revela uma clara insuficiência na representatividade deste grupo demográfico na televisão nacional, com particular expressão em canais de acesso aberto, bem como generalistas e especializados. Em novembro de 2020, o Secretário de Estado do Cinema, Audiovisual e Media, Nuno Artur Silva, anunciou que a RTP África passaria a incluir o serviço aberto da Televisão Digital Terrestre, mas não disse quando.
Para Carlos Pereira, esta falta de representação “resulta de todo o processo de descolonização que falta fazer no país. Há um processo que falta fazer na forma como certas pessoas olham para as outras pessoas, como olham para as capacidades de outras pessoas, porque ainda há muito essa resistência: uns são mais e outros são menos”. A descolonização que ainda não aconteceu, enfatiza Helena Vicente, converte-se numa ideia errada da população negra como alguém que não é de cá, mas “a população negra faz parte do tecido social português não apenas como imigrante, mas como portuguesa. Esta visão é muito presente e acaba muitas vezes a constituir um conflito e uma marginalização”.
Invisíveis, mas só até ao preconceito
Não é só a população negra que se mantém invisível no ecrã por onde o mundo chega à maior parte dos lares nacionais. A falta de gráficos sobre a representação da população cigana na televisão portuguesa neste artigo não é premeditada, antes um sintoma deste apagamento. As pessoas ciganas quase nunca aparecem na televisão nacional. Nas raras ocasiões em que essa tendência é invertida, os contextos são regra geral pejorativos ou discriminatórios.
No estudo de caso sobre “brasileiros e ciganos no prime-time português”(2006), Catarina Valdigem examinou as emissões da televisão portuguesa generalista em horário nobre, procurando quaisquer representações destes grupos demográficos. No que respeita aos conteúdos informativos, o estudo referia que a etnia cigana era representada apenas em 0,52% dos planos, mas em 80% dos casos, o tom das peças era negativo.
Nos espaços de entretenimento e ficção, a única representação encontrada na amostra em análise (2004) foi no programa de humor Malucos do Riso: Lelo (interpretado por Camacho Costa), um cidadão cigano que surgia sempre em tribunal respondendo por crimes de pouca gravidade. A personagem tornou-se uma das mais populares do formato de sketches pela sua candura e afabilidade. No entanto, sendo esta a única representação da etnia em todo o horário nobre televisivo nacional à altura, importa questionar o reforço do estereótipo de criminalidade e, até, o seu nome. “Lelo” é um termo depreciativo para pessoas ciganas, logo racista. Olga Magano conta que, na altura, chegou a escrever à SIC contestando esta representação, por considerar que alimentava uma visão estereotipada. A socióloga e professora da Universidade Aberta, com décadas de investigação focada na população cigana, denota que a mudança das últimas décadas é evidente, mas há ainda um longo caminho a percorrer. Realçando os convites para programas que preenchem o horário diurno, explica que muitos dos depoimentos que lhe chegam de pessoas convidadas denunciam uma franca falta de preparação dos apresentadores. Perante perguntas estereotipadas, não é possível desconstruir o preconceito, nem ilustrar uma realidade que é profundamente heterogénea.
Para lá de certas personagens humorísticas tipicamente construídas à volta de estereótipos, seriam necessários mais de dez anos para que a população cigana voltasse a aparecer com regularidade em horário nobre para lá dos noticiários. Em 2017, a TVI estreou “A Herdeira”, uma telenovela criada por Maria João Mira para a Plural Entertainment, com personagens ciganas a assumirem o protagonismo do enredo. Pedro Barroso acabaria elogiado em várias publicações cor-de-rosa pela sua preparação da personagem Roni, tendo trabalhado com famílias ciganas nesse processo. Durante as gravações, o ator ajudaria a catapultar Nininho Vaz Maia para o estrelato, assumindo-o como a grande inspiração para a sua representação e garantindo-lhe um lugar na banda sonora da novela (ainda que não conste no alinhamento dos temas oficiais) numa das cenas mais emblemáticas da trama – o casamento de Roni e Luz. O cantor de etnia cigana participou na execução dessa cena enquanto músico e consultor.
Sendo o formato de ficção com maior audiência em Portugal, as telenovelas acabam por ter um papel particularmente relevante na construção social. Conforme sublinha Olga Magano, a centralização de parte da narrativa no espaço do acampamento reforça uma imagem que não corresponde à da maioria da população cigana em Portugal. Esta opinião é confirmada no testemunho do ator Vicente Gil, num artigo do Gerador publicado no ano passado: “eu, como cigano, assim como a minha família, sentimo-nos atacados; é um ataque termos de ser representados daquela forma sistematicamente.” Na mesma reportagem, a sua mãe, a também atriz Maria Gil, denunciava a “visão estereotipada do trabalho” dos atores ciganos que prevalece em companhias de teatro, fazendo com que dificilmente consigam papéis fora dessa descrição. Em 314 episódios, nenhum dos atores que interpretaram personagens ciganas em “A Herdeira” pertenciam à comunidade.
Mais uma grande oportunidade perdida
A aferição da pertença cultural, étnica ou racial é um trabalho que está por fazer.Realizado a cada dez anos, o Censos é o levantamento mais extensivo sobre a população residente no território nacional, servindo de base para as políticas públicas da década subsequente. Ao longo dos últimos anos, especialistas, ativistas e cidadãos defenderam a inclusão de uma questão que colmatasse esta falta de dados. Apesar da maioria do grupo de trabalho responsável pela avaliação do assunto aprovar a incorporação dessa pergunta, o INE acabou por chumbá-la. A proposta era que fosse opcional, à semelhança do que já acontece com a questão relativa às crenças religiosas.
Olga Magano classifica esta omissão no Censos como “mais uma grande oportunidade perdida”. A socióloga, que fez parte do Estudo Nacional sobre as Comunidades Ciganas, detalha que os levantamentos feitos por amostragem até aqui têm um enorme viés, porque “a tendência é usar as câmaras municipais como fontes e aí só se conhecem os visíveis”, uma vez que “os técnicos das câmaras e ligados ao apoio social conhecem a população com que trabalham, mas não conhecem todos os outros – os que não auferem o RSI, os que não moram em acampamentos ou habitação social, os que vão à universidade, etc. Ou seja, as pessoas ciganas que não se dirigem aos serviços sociais são desconhecidas.” Assim, considera que os números que hoje existem sobre este grupo da população portuguesa são uma subrepresentação da realidade. Em 2017, o Alto Comissariado para as Migrações estimava que a comunidade cigana em Portugal compreendesse cerca de 37 mil pessoas, Já o Conselho da Europa aponta para números entre 40 a 70 mil cidadãos, aproximadamente 0,52% da população nacional.
A promessa de um inquérito posterior ao Censos para o levantamento dos dados étnico-raciais da população voltou a ser confirmada em março deste ano pela Secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade. Rosa Monteiro afirmou que o Inquérito às Condições, Origens e Trajetórias da População Residente (ICOT) avançará no último trimestre de 2021. Segundo o Expresso, o projeto-piloto será realizado na Área Metropolitana de Lisboa, com população residente de idades compreendidas entre os 18 e os 74 anos.
Quanto ao Plano Nacional de Combate ao Racismo e à Discriminação 2021-2025, em consulta pública até ao dia 10 de maio, a sua ação está prevista em dez áreas de intervenção, da saúde à habitação, do mercado laboral à educação. Neste capítulo, a implementação de quotas de acesso ao ensino superior é uma das medidas propostas. Olga Magano admite não ser apoiante de quotas, mas reconhece que são um mecanismo necessário para corrigir os atuais desequilíbrios na igualdade de oportunidades. Para a socióloga, uma das claras vantagens deste avanço será o florescimento de uma nova geração de cientistas ciganos que investiguem e dirijam os estudos sobre as suas comunidades. A questão é mais profunda, contudo. Afinal, “os percursos escolares de muitos alunos são peneirados pelo sistema ao longo dos anos de formação obrigatória”, refere – uma ideia corroborada no trabalho da socióloga Cristina Roldão, que tem investigado este tema com foco na população afrodescendente. Apesar de não ser exclusivo a estas comunidades, o afunilamento de opções ao longo da vida escolar acaba por ser mais evidente, precisamente porque as dinâmicas de exclusão social destes grupos são mais acentuadas.
Ser português para lá do rap e do desporto
Para lá da televisão, muito do trabalho ativista negro que tem sido desenvolvido com vista a uma melhor representatividade prende-se com a criação de plataformas de valorização profissional. Nas palavras de Helena Vicente, “plataformas que dizem que os profissionais negros existem, que mostram ao público (seja negro português ou branco português) que temos profissionais competentes de várias áreas, para que não fique só na imaginação que o negro faz parte da população portuguesa, ou do imaginário do que é português. Nós temos que desconstruir e reconstruir este imaginário do que é ser português. Dar visibilidade a estas pessoas. Estas pessoas existem e podem ser advogadas, médicas ou que quer que seja. Não pode ser só rap e desporto.”
Da portugalidade não reconhecida à instrumentalização, são vários os desafios de equilibrar uma balança que pende sempre para o lado branco. Tanto Helena Vicente como Carlos Pereira aplaudem o pivô Cláudio Bento França, mas reconhecem que a altura em que surgiu como novo rosto da SIC Notícias coincidiu com o rescaldo dos protestos Black Lives Matter, na sequência da morte de George Floyd, sugerindo uma certa instrumentalização por parte da estação, ainda que a formação de um jornalista e pivô requeira alguns anos. A investigadora recorda igualmente o caso do jornalista Adriano Parreira, que apareceu na RTP ainda durante os anos 60, período que marcou precisamente “o início da agitação dos países das ex-colónias que queriam as suas independências”. Helena Vicente está a planear prosseguir os estudos com um doutoramento. Apesar de ainda não ter certeza sobre se tal será possível, admite que gostava de trabalhar a instrumentalização do corpo negro na televisão enquanto tema de tese.
“Não sei se [a situação] está a mudar, mas acho que há uma maior consciencialização das coisas, uma maior sensibilidade. As pessoas já pensam duas vezes. Acho que hoje em dia era impensável um sketch como o do Eduardo Madeira em black face a fazer de Serena Williams, por exemplo. Hoje em dia estamos num lugar em que se faz white face. Custou, mas chegámos lá. (risos)” - diz Carlos Pereira numa alusão ao sketch que fez para o 5PMN, em que pintou a cara de branco para um casting de Vasco da Gama.
O humorista está, neste momento, a trabalhar em Barman, uma série em que se desdobra entre co-argumentista e protagonista. A realização está a cargo de Luís Almeida, também negro. “Caramba, conseguimos. Vamos ter um programa em Portugal realizado por um negro e protagonizado por um negro. Não somos nós que estamos a fazer disto uma questão, mas nós sabemos o país em que vivemos e sabemos o quão anormal é isso. E é sempre uma notícia, porque o país real é este. Tens jovens negros com sonhos e ambições, que ligam a televisão e não estão lá pessoas como eles. E se nós não nos vemos, temos dificuldade em posicionar-nos naquele lugar e excluímo-nos à partida.” Barman deverá chegar à RTP Play entre setembro e outubro deste ano.
Notas Metodológicas
Os gráficos produzidos para este artigo resultam dos dados recolhidos por Helena Vicente para a sua tese de mestrado, “Presença e perceções dos profissionais negros nos programas de informação e entretenimento na televisão portuguesa” (ISCTE, 2019).
*Artigo originalmente publicado em Interruptor a 30.04.2021