Uma leitura de "O quase fim do mundo", de Pepetela
O romance O quase fim do mundo, de Pepetela, pode ser lido, a nosso ver, a partir da catástrofe nele presente, a saber, a utilização de uma arma de destruição em massa que elimina da Terra quase todos os seres humanos e outras espécies animais. A partir dessa hecatombe, inaugura-se então uma nova era, com condições e modos de vida diferentes dos atuais, o que permitiria o surgimento de uma sociedade comunista. No entanto, esta não é completamente realizada – se possui indícios positivos, como a igualdade social, também apresenta elementos contrários, como preconceitos étnicos e um provável retorno das classes sociais. Assim, a obra em questão, acreditamos, permite ser vista como a instauração de uma utopia, mas que, desde o princípio, está fadada à sua negação.
O objetivo do presente artigo é expor uma análise do romance O quase fim do mundo (2008), de Pepetela, a partir da catástrofe nele presente: seu tipo, seus motivos e suas consequências, de modo que possamos também perceber as concepções do autor em relação à humanidade e a seus rumos, pois, como consabido, a literatura pós-independência nos países africanos de língua portuguesa revela-se como um espaço propício para se discutirem tópicos da ordem do dia.1
Antes de passarmos à nossa leitura, sucintamente, temos que, em Pepetela, o dito quase fim do mundo ocorre propositadamente e por meio de artefato possibilitado pela evolução tecnológica (o denominado “Feixe Gama Alfa”). Somos remetidos, inevitavelmente, ao nazismo, pois que os motivos são os mesmos: exterminar todos os membros considerados não-dignos da espécie humana e, assim, recomeçar sua história sem “falhas”, a partir de “brancos puros”.
No entanto, o resultado do extermínio programado da maior parte da humanidade tem efeito um pouco adverso: os mortos incluem os previstos e os não-previstos (mentores, executores e protegidos), salvando-se apenas os esquecidos, a saber, sintomaticamente alguns seres humanos de parte de África. Serão eles, os ignorados, que repovoarão não só seu continente, mas até mesmo o europeu.
A trama aborda como seria a vida desses poucos indivíduos sobreviventes em um mundo em que muitas das regras anteriores não fazem mais sentido. Além disso, há reflexões constantes acerca do futuro da humanidade a partir daquele reduzido grupo e suas novas condições de vida.
Escatologia e milenarismo
A catástrofe presente no romance faz com que a obra possa ser inserida no bojo dos discursos escatológicos, na medida em que instaura uma nova era para a humanidade. De acordo com Le Goff, essa corrente “pensa o tempo como tendo um fim ou divide-o em períodos que são outros tantos ciclos, cada um com o seu próprio fim. Este limite de tempo pode ser concebido como um retorno às origens, à primeira idade, que foi o da felicidade, ou, pelo contrário, como um fim, senão do mundo, pelo menos do mundo tal como é”. (LE GOFF, 2003, p.323)
Em O quase fim do mundo, o próprio título já nos remete a tal concepção.
O novo período da humanidade, para aqueles que o pensaram, também teria seu aspecto de milenarismo, já que, ao mesmo tempo em que se tem um fim do mundo tal qual o temos hoje, também teríamos a instauração de uma época de felicidade, como que uma Idade de Ouro (tradicionalmente relacionada a um intervalo de tempo com duração de mil anos) – somente os “puros” resistiriam à hecatombe e então viveriam um momento pleno. Ainda que os sobreviventes tenham sido outros, os “impuros”, uma outra forma de sociedade, com outros valores e modo de vida, foi instaurada – se se concretizou melhor ou pior, é o que adiante discutiremos.
O elemento pepeteliano divisor de eras é o “Feixe Gama Alfa” (arma de destruição em massa que volatiza animais de qualquer espécie), para cuja realização coadunaram-se fanatismo religioso, objetivos neonazistas e elevados conhecimentos científico-tecnológicos.
Um dos idealizadores dessa arma explica a relação do movimento a que pertence, a denominada Frente Nacionalista Europeia, cujo “primeiro objectivo era impedir a imigração de gente dessas raças inferiores [árabes, judeus, ciganos e africanos] para os países europeus”, com a Igreja dos Paladinos da Coroa Sagrada: “Mais tarde, uma crença religiosa (…) começou a ter cada vez maior influência sobre a Frente. (…) Acabei por aderir a esta Fé verdadeiramente nova, com um discurso completamente diferente de tudo o que era antes. Um discurso religioso, sem dúvida, mas muito mais próximo do nosso tradicional, científico. Para qualquer projecto resultar, é preciso que as pessoas acreditem, tenham fé. A crença na Coroa Sagrada dá essa força espiritual às pessoas de poderem seguir os seus líderes sem porem objecções e patéticas dúvidas que só fazem atrasar os processos de pesquisa”. (PEPETELA, p.340-1)
Em suma, assim como em discursos milenaristas em geral, a instauração de um novo tempo decorre de um elemento religioso; no caso em questão, esse aspecto está aliado a um intento político. Na sequência da exposição do “cidadão dos Estados Unidos, de origem europeia (…), um dos inventores do ‘Feixe Gama Alfa’”, temos ainda:
A minha vida mudou desde que conheci os ensinamentos de Pak-To, deixei de ter dúvidas, sei estar incumbido da missão de redenção da raça branca, raça tão vilipendiada através do século XX, como a culpada de todos os males. As grandes guerras foram imputadas aos interesses brancos, até mesmo as Cruzadas contra os árabes apareciam como empresas criminosas, a colonização dos povos arcaicos e selvagens do chamado Terceiro Mundo é apresentada como obra de facínoras e alguns espíritos puros que tentem defender racionalmente os valores brancos são acusados de racismo, xenofobia, até mesmo ódio ao Homem. Como se o verdadeiro Homem não fosse branco! Trabalhamos para defender esse Homem verdadeiro, forte, empreendedor que criou a Civilização. E devemos eliminar tudo que seja espúrio, que traga ao espírito humano os cromossomos da ignomínia, do vício, da preguiça e da estupidez. (p.341)
O romance traz-nos, portanto, reminiscências de uma sociedade de crenças colonialistas e nazistas como o fundamento para a “limpeza” da raça humana. A respeito desses meios para tal justificativa, no caso de África, Fanon explica: “É preciso destruir os seus [da população autóctone] sistemas de referência. A expropriação, o despojamento, a razia, o assassínio objectivo, desdobram-se numa pilhagem dos esquemas culturais ou, pelo menos, condicionam essa pilhagem. O panorama social é desestruturado, os valores ridicularizados, esmagados, esvaziados (…) Não é possível subjugar homens sem logicamente os inferiorizar de um lado a outro. E o racismo não é mais do que a explicação emocional, afectiva, algumas vezes intelectual, desta inferiorização”. (FANON, s/d, pp.37 e 44)
Na obra em questão, no entanto, faz-se o reverso: os ditos “selvagens” é que dominariam e repovoariam o mundo, incluindo a Europa…
Nova era e utopia
Os resultados da hecatombe geram uma nova era, ali delineada com elementos utópicos.
Entendemos aqui o sentido de utopia como a não-aceitação do status quo da sociedade. Nas palavras de Pepetela, por uma personagem sua de A geração da utopia, temos uma definição: “(…) a nossa geração se devia chamar da utopia. (…) Pensávamos que íamos construir uma sociedade justa, sem diferenças, sem privilégios, sem perseguições, uma comunidade de interesses e pensamentos, o Paraíso dos cristãos, em suma” (1992, p.202). Para além de sua atuação ficcional, conhecemos, por meio de entrevistas e de seu histórico de vida, seus valores objetivados: uma sociedade justa e igualitária.
É fato que sua conhecida posição política é de linha marxista – o próprio autor já afirmou que continua “a julgar válida a análise de Marx sobre o sistema capitalista” (PEPETELA, 2010) – o que nos faria já de antemão negar o termo “utopia” para tratarmos do romance. No entanto, se ainda assim o fazemos é por estarmos com teóricos como Coelho: “Fascinados por aquilo que o século XIX acreditava ser a essência e o traço positivo da ciência, isto é, a objetividade, Marx e Engels viam na utopia e na ciência dois conceitos opostos e irreconciliáveis. Mas seria suficiente apresentar a oposição como sendo entre utopia e revolução (como fizeram no Manifesto), uma vez que era disso que se tratava; sua preocupação era, basicamente, evitar que as propostas utópicas impedissem a revolução. (…) Entende-se que, à época, essa fosse uma opção válida, dadas as circunstâncias e a premência da realização dos programas apresentados por Marx. O resultado dessa opção – a condenação da utopia em nome da revolução – talvez não fosse exatamente o desejado por Marx e Engels. O fato é que uma revolução autêntica não pode dispensar a imaginação utópica, se é que se pretende ter em revolução um outro nome para eutopia”. (COELHO, 1992, pp.63 e 67)
Ressaltamos ainda que o termo “utopia” é entendido aqui como plasmado em “eutopia” e “distopia”, a saber, respectivamente, o lugar bom e o da distorção (Id., Ibid., p.45). Explicitando “distopia” a partir de Nunes, temos a aceitação de que “a idealização de um estado não corresponde necessariamente, na história humana, à perfeição desejada e possível (…). A tradição distópica (…) sublinha não só a insuficiência dessas condições [de satisfação coletiva] para a realização de ideais de felicidade, mas também a ameaça do colectivismo sobre as liberdades individuais, sociais e de participação política. Ao exercerem a sua crítica, os distopistas situam-se, pois, numa base agostiniana e adoptam um ponto de vista realista perante a persistência do mal e de usuais carências ou insuficiências que comprometem a realização humana”. (NUNES, 2010)
Elementos eutópicos
Então
num novo catálogo
mostrar-te-ei o meu rosto
coroado de ramos de palmeira
E terei para ti
os sorrisos que me pedes.
Agostinho Neto (Sagrada Esperança, 1985, p.45)
Em O quase fim do mundo, o autor escolhe Calpe e seus arredores como a única região que permaneceu com vida animal após a hecatombe. Assim, pela escolha do espaço do romance, já podemos nos considerar numa utopia em termos etimológicos: ainda que seu continente seja conhecido, trata-se de uma região “sem existência geográfica real”.2 No entanto, a obra mostra-se utópica essencialmente por outros sentidos e elementos, na medida em que “particulariza e corrige os mecanismos sociais que regem as relações entre os indivíduos e a coletividade” (PAQUOT, 1999, p.6).
A mais saliente dessas correções é quanto à igualdade social, já que se passa a viver em um mundo onde tudo está ao alcance de todos e fartamente. Assim, as personagens alimentam-se nos melhores restaurantes, moram nas melhores casas, passam estadias nos melhores hotéis, têm o carro e as roupas que querem e podem viajar para os destinos turísticos que mais lhe apetecem.
Também a questão do dinheiro em si e das riquezas em geral, como as joias e diamantes puros, é saliente desde o início do romance, culminando em uma reflexão sistematizada já ao seu fim.
Uma das primeiras atitudes realizadas por Simba Ukolo, o médico do romance, quando encontrou-se sozinho em sua cidade, foi adentrar um banco e recolher as divisas dos caixas, a mesma ação de Geny, a fanática religiosa, em um outro pelas redondezas. Ao longo da obra, outros vão tendo atitudes semelhantes até aperceberem-se de que estavam agindo com valores ultrapassados: “Agora o mundo parecia ser deles apenas, eram mais ricos que Cresus, todos os bens materiais a repartir por uns poucos. No entanto, de nada valia o ouro, os diamantes, os rubis, nem os euros ou os dólares, nada havia para comprar, tudo estava ali para ser consumido sem esforço. Estava como o náufrago numa ilha só com um coqueiro e uma arca de joias. Se a partir deles houvesse uma nova humanidade, essas riquezas ainda seriam consideradas riquezas? Uma boa questão. A nova humanidade era capaz de considerar joias uma folha seca de árvore rara ou o esvoaçar de uma pena pavão. Quem poderia pressagiar os novos valores?” (PEPETELA, p.330)
Finalmente, já no último capítulo, tal questão e seus derivados, como a propriedade, são lançados à tona por Joseph Kiboro, o ex-ladrão, devido a um grosso anel com pedra preciosa descoberto por ele: “Sei que não me pertence e por isso esperei por vocês. É de todos, não é só meu. (…) Tenho o direito de ficar com ele? Queria perguntar isso” (p.361). Janet engata o questionamento: “A Europa inteira, para não dizer o mundo, pertencem-nos. Mas ao colectivo que nós somos ou a cada um individualmente?”.
A conclusão é explicitada pelo médico:”(…) não é preciso regras para as coisas materiais. Há demasiada pouca gente no mundo para todas as riquezas. Se quisermos podemos dividir. Eu fico com Moscovo, tu ficas com Berlim, a Ísis com Paris e Jan com Amsterdão, Julius com Londres, etc. Ou podemos dividir os países. Ou até os continentes. Quem fica com a Ásia Oriental, quem fica com a África do Norte ou a América do Sul? Mas não é preciso. Acho que devíamos viver juntos no mesmo sítio, sobreviveremos mais facilmente. Foi o que andámos a fazer este tempo todo, a encontrar-nos, a juntar-nos… Acho que a única regra necessária é a do bom senso (…)” (p.363)
Tratar-se-ia do fim das classes sociais e da consequente extinção do Estado. Acrescentemos a eliminação da mais-valia e da exploração. Temos aí, grosso modo, o cenário de uma sociedade comunista, de acordo com a teoria marxista.
Há ainda outros elementos eutópicos, como a unidade africana e o ressoerguimento de África com sua devida importância no cenário internacional, os quais serão discutidos oportunamente em outros textos.
Elementos distópicos
Seria criado “um homem novo”, que teria a missão de edificar o socialismo científico, o regime mais avançado da história da humanidade, onde todos os homens são iguais (…) [Mas] A partir dos anos 90, na nossa terra bem amada, (…), o socialismo esquemático foi implacavelmente substituído pelo capitalismo mafioso.
João Melo (Filhos da pátria, 2008, pp.15 e 18)
Ainda que com ganhos, porém, a nova comunidade não está completamente relacionada a um Paraíso na Terra – existem relações interétnicas negativamente postas e radicalismo religioso, além de armas de destruição em massa. Abordaremos aqui a questão das relações entre diferentes grupos em mesmo território.
Esse tema já ocupava a atenção do autor em outros livros, como em Mayombe (1980), momento em que o autor estudava, como o próprio afirma (apud SERRANO, 1999, p.136), “o fenômeno do tribalismo (…) de uma forma empírica”. Além disso, há-de se levar em consideração que Pepetela julga “O fato de as pessoas se considerarem realmente angolanas, antes de serem kimbundos ou umbundos, do Kuanza Norte ou Kuanza Sul” (apud MARCON, 2005, p.274) um elemento fundamental para distinguir a nação angolana, ainda em processo de estabelecimento.
Em O quase fim do mundo, embora não pareça ser a tônica, há problemas dessa natureza. A despeito dos esforços para a criação de um grupo coeso, sem distinções ditas tribais, existe a personagem Geny, que dificulta sua coesão. Em diversos momentos, ela relembra a questão, como em “E Kiboro, aquele ladrão de grupo rival – julgava que ela esquecia?” e “Queres que a moça morra ou fique paralítica? Claro, dá para entender, ela não é do teu grupo. Que te importa se cair lá de cima com a sua estúpida teimosia? Só te preocupas com os do teu grupo” (Pepetela, pp.173 e 218).
Por outras personagens, a remissão a essa questão é mais sutil e menos frequente, aparecendo enquanto reminiscência, como com o médico Simba: “Ainda por cima lhe parecia traição a um amigo por simpatizar sinceramente com ele e ser do seu grupo étnico, um quase parente, em suma” (p.154). Ainda assim, forçados pela referida Geny e por questionamento do etíope Riek, comandam uma explicação a esse respeito “para acabar de vez com o tabu. São coisas do passado, agora não têm o menor sentido de existir, se alguma vez tiveram…” (p.220). A conclusão está na fala do mesmo Ukolo para a jovem Jude: “Claro que não és de nenhum grupo, já não és. E ninguém mais é. Só a Geny” (p.221).
A par da discórdia causada por Geny, há-de se referir a preconceitos e suspeitas entre as personagens, como a “tese janetiana de racismo” (p.193) em relação a Dippenaar, o sul-africano branco, que acaba por mostrar-se inválida, e a luta, ainda que velada, por parceiros sexuais.3
Seja por conflitos de posição étnica, de preconceitos ou disputas, o fato é que a união do grupo é fissurada, ainda que apenas temporariamente em alguns casos. Para Pepetela, conforme entrevista de 2008, “No fundo é uma pergunta: que raio de pessoas são essas para começar uma humanidade? Ora, a nossa humanidade atual, como é que começa? Com um irmão a matar o outro, Caim a matar Abel. E essa nova humanidade começaria da mesma maneira como a outra acabou”.
Vale lembrar que se Angola não conseguiu colocar em prática todos os seus anseios da pré-independência, em partes foi devido a problemas dessa sorte. Um exemplo pode ser encontrado dentro do MPLA (Movimento Popular para a Libertação de Angola), em 1962: Viriato da Cruz ocupa a presidência do Movimento quando Agostinho Neto retorna, após exílio, e é escolhido para substituir aquele, o que acabou gerando uma certa insatisfação interna e consequentes desligamentos. O resultado que elevou Neto parece ter sido fruto de uma tentativa de “equilibrar de facções em que se misturaram a cor, a tribo, a religião também” (PEREIRA, 2005, p.94), que colocavam em risco a sobrevivência do MPLA.
Nova humanidade
Em princípio, a nosso ver, a nova humanidade que adviria dos sobreviventes ao quase fim do mundo tenderia ao comunismo, entendido como “o estágio da sociedade humana onde não mais existiriam exploradores e explorados, onde a exploração do homem pelo homem tivesse chegado a seu fim. O homem, a sociedade e a natureza formariam um todo harmônico; o sonho do Homem Integral estaria realizado” (SPINDEL, s/d:136).
No entanto, tal conquista deu-se por vias negativas e indiretas, e não pela tomada de consciência, ação e construção gradativa dos valores comunistas na etapa intermediária do socialismo, elementos necessários para seu sucesso. Nem mesmo o primeiro deles parece ter havido – quando aparece, é já pós-hecatombe e sem consequências práticas. Nas palavras do sociólogo Castro a respeito da “utopia revolucionária”, é essa conscientização que a permite: “La toma de conciencia supone el acto de conocimiento de la realidad material en su compleja relación de necesidades y potencialidades existentes para satisfacerlas, así como los obstáculos que se oponen al acto de satisfacción, y de este conocimiento del punto de partida material nace el proyecto de la transformación necesaria” (CASTRO, 1981, p.124)
Sem tais características, o advento de uma nova humanidade trilharia os mesmos, ou muito semelhantes, passos da atual, de tal forma que os membros do grupo resistente e as próximas gerações retomariam a existência de classes e suas lutas:
– Temos de pensar em agricultura – disse ele.
– O casal [encontrado por Riek fora da cidade e enviado para lá] já começou umas lavras aqui na cidade – disse o pescador. – Também estou a pensar fazer uma. Já que não há peixe…
– Há sementes?
Havia o suficiente. Deviam ser multiplicadas, antes que estragassem. O que implicava mão-de-obra.
– É mesmo bom que o Riek convença as pessoas a virem – disse Julius. – Para produzirem comida…
– Enquanto nós mandamos e comemos – disse Janet, em voz sumida.
Dippenaar ouviu-a, no entanto. Apoiou com a cabeça, é isso mesmo que vai acontecer, sempre foi assim, uns trabalham, outros mandam. Ele estava bem, tinha uma profissão útil, piloto de avião. Simba também, como médico podia exigir a comida que outros produziam em troco de terapia.
– Seremos a classe dominante – disse o sul-africano. – Há dúvidas?
Tanta crueza inibiu qualquer palavra ou gesto discordante. Abaixaram as cabeças, rendidos ao inevitável. Fazia ali falta Kiboro para protestar contra a formação de classes sociais, com o seu comunismo nascente; ou então para lançar uma gargalhada sarcástica a tanta seriedade. (PEPETELA, p.378)
A questão das posses também retorna, como na regressão quanto à posição da mulher. A personagem Dippenaar faz um “negócio” para conseguir uma parceira:
– Agora é minha mulher. Dei um saco com coisas ao tipo que parece mandar na aldeia, vendeu-ma.
– Ele vendeu a moça? – quase gritou Simba Ukolo, desconcertado.
– É uma maneira de dizer. Nem tinha o direito de a vender, ela não lhe pertencia. Enfim, estava na casa dele, deve-a ter apanhado sozinha e meteu-a lá dentro. Ficou todo satisfeito com os fósforos e o sal e as outras coisas, deixou que eu a trouxesse em troca. Não é bonitinha? Foi um bom negócio. (p.380) 4
Enfim, essa nova era parece não conseguir assegurar a aspirada sociedade justa.
Considerações finais
Face ao exposto, podemos afirmar que o quase fim do mundo pepeteliano – ocasionado por uma catástrofe gerada por um grupo de fanáticos neonazistas, a qual permite à humanidade viver um novo período da sua História, ainda que seus membros não fossem os desejados para tal – possui indícios da criação de uma utopia: os indivíduos têm à sua disposição fartura nos requisitos para um viver bem, com alimentação, moradia, vestimentas à escolha… Em relação ao trabalho, há pouco o que fazer, pois a profusão material existe em termos de qualidade e quantidade para todos. Assim, não existem mais diferenças sociais nem a exploração dos seres pela mais-valia.
No entanto, a sociedade criada não possui apenas elementos positivos; coexistem alguns negativos. Daí termos selecionado os termos “eutopia” e “distopia” para tratarmos da obra. Ao lado de características daquele, acima lembradas, existem as deste, como os resquícios de oposições étnicas e o radicalismo religioso.
Ao lado deles, podemos colocar itens que poderiam estar presentes nas futuras gerações a partir do grupo sobrevivente à hecatombe, já que, de forma geral, não são positivos: a recrudescência das conquistas das mulheres e o resgate das classes sociais e suas lutas.
Acreditamos que a ressalva no discurso do autor para uma sociedade perfeita encontra-se no fato axial de, além de a catástrofe ter ocorrido devido a valores morais obtusos (o etnocentrismo persistente e que se permite realizar um genocídio), sua maior consequência, a possibilidade da criação de uma sociedade comunista, ainda que desejada, não é dada pela tomada de consciência, pela luta e pela mudança de valores, mas pelo erro do erro de outrem.
Uma vez que os valores não mudaram, apenas as condições do entorno passaram a permitir uma igualdade entre os homens, um novo modo de viver é difícil de ser instaurado.
Como sabido, Pepetela possui uma posição político-ideológica de linha marxista, dado seu envolvimento e formação no movimento pela independência de Angola, declaradamente de cunho socialista. Sua participação, efetiva durante e após as lutas, e a de outros companheiros, no entanto, não garantiu a efetivação dos objetivos visados. O país não conseguiu instaurar um socialismo de fato para depois, gradualmente, chegar ao comunismo; em grande parte, o insucesso foi devido aos próprios indivíduos que estavam no poder, a ex-combatentes que, quando compuseram os quadros do governo, decaíram para disputas de poder e corrupção, ou seja, quando do combate, suas falas, talvez, fossem apenas ecos dos discursos em voga.
Angola e outros países africanos de independência semelhante, assim como em O quase fim do mundo, conseguiram condições para a criação de uma nova sociedade. Aqueles poderiam ter criado um socialismo, estes já no comunismo, mas nenhum obteve sucesso, pois faltou a indispensável formação de fato.
Ainda assim, acreditamos que Pepetela não deva ser visto como um desiludido que desistiu de lutar por seus ideais; sua posição é antes realista. Além do que se conhece sobre ele, suas obras e do que aqui analisamos, temos dois outros motivos: i) o próprio romance criado e posto em circulação pode ser visto como um alerta para a necessidade, ao menos, de nossa reflexão sobre os caminhos da humanidade, e ii) a afirmação de persistência deixada pelo autor em entrevista de 2008: “De utopia em utopia. Até a encontrarmos vamo-nos contentando com o presente possível”.
Referências Bibliográficas
AGOSTINHO NETO. Sagrada esperança. São Paulo: Ática, 1985.
CASTRO, Ignacio Fernández de. “La utopía filosofica en el pensamiento alemán”. In: COTARELO, Ramón García (org.). Las utopías en el mundo occidental. Guadalajara: Universidad Internacional Menendez Pelayo,1981. pp. 115-130.
COELHO, Teixeira. O que é utopia. São Paulo: Brasiliense, 1992.
FANON, Frantz. Em defesa da revolução africana. Lisboa: Sá da Costa, s/d.
MARCON, Frank Nilton. Leituras transatlânticas: diálogos sobre identidade e o romance de Pepetela. Florianópolis, 2005. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catarina.
MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. Trad. Luís Claudio de Castro e Costa. Introd. Jacob Gorender. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
MELO, João. Filhos da pátria. Rio de Janeiro: Record, 2008.
PAQUOT, Thierry. A utopia: ensaio acerca do ideal. Rio de Janeiro: DIFEL, 1999.
PEPETELA. A geração da utopia. Lisboa: Dom Quixote, 1992.
PEPETELA. O quase fim do mundo. Lisboa: Dom Quixote, 2008.
PEPETELA. Pepetela, o artista das palavras. Disponível em <http://www.opais.net/pt/dossier/?id=1904&det=8212>. Entrevista concedida ao jornal O País. Acesso em 21/09/2010.
PEPETELA. Um fim do mundo africano. Disponível em <http://www.buala.org/pt/cara-a-cara/um-fim-do-mundo-africano-entrevista-.... Entrevista concedida a Cláudia Fabiana Cardoso. Acesso em 21/09/2010.
PEREIRA, Moutinho. “Um homem nos alicerces do mundo”. In: BARRADAS, Acácio (ed.) Agostinho Neto: uma vida sem tréguas. Lisboa/Luanda: 2005. pp. 91-113.
SERRANO, Carlos. O romance como documento social: o caso de Mayombe. Via Atlântica, São Paulo: Revista da Área de Pós-Graduação em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa/FFLCH/USP, nº3, pp. 132-139, 1999.
SPINDEL, Arnaldo & CATANI, Afrânio Mendes. O que é capitalismo; O que é socialismo; O que é comunismo. São Paulo: Círculo do livro, s/d.
- 1. Todas as citações relativas a O quase fim do mundo foram retiradas da edição de 2008, editora Dom Quixote.
- 2. Utopia, do grego ou (negativa) + tópos (lugar), ou seja, o “não-lugar”.
- 3. No romance, dissimuladamente Kiboro e Ukolo disputam Ísis, assim como Jude vê nesta uma inimiga para sua conquista do médico.
- 4. A julgar pelo início da relação entre eles, deveríamos substituir “parceira” por “futura escrava”: [a primeira forma da propriedade], o seu germe, reside na família onde a mulher e os filhos são escravos do homem. A escravidão, certamente ainda muito rudimentar e latente na família, é a primeira propriedade, que aliás já corresponde perfeitamente aqui à definição dos economistas modernos segundo a qual ela é a livre disposição da força de trabalho de outrem.” (MARX, 1998, p.27)