Aerogramas de José Rubira: Guiné Bissau / Montemor-o-Novo 1971-1973
Com o apoio do ICNOVA e no seguimento de uma residência de investigação no Cineclube e Filmoteca de Montemor-o-Novo, disponibilizamos imagens vernaculares recolhidas nesta região do Alentejo Central. Nesta série apresentamos fotografias da década de 1970 remetidas por José Joaquim Rubira, ex-combatente montemorense, a seus familiares.
Este conjunto de imagens é composto por 51 fotografias (a preto e branco) que viajaram da Guiné-Bissau para Montemor-o-Novo e é rematado por 2 (a cores) que realizaram o caminho inverso. Todas elas foram remetidas dentro de aerogramas, à época popularmente conhecidos como bate-estradas, meio de comunicação gratuito para os militares que se vulgarizou durante o período da Guerra Colonial / Movimentos de Libertação (1961-1974). Estima-se que nessa época tenham circulado mais de 2 milhões de bate-estradas por ano entre os territórios africanos então ocupados pelo regime colonial e as mais remotas aldeias de Portugal.
A primeira fotografia desta coleção foi remetida por José Rubira no dia 22 de Outubro de 1971, desde Bolana, e endereçada à sua mulher e filha que residiam em Montemor-o-Novo. Foi perto dessa data que José, aos 22 anos, foi enviado para a Guiné onde, depois de efectuar um treino operacional na ilha de Bolana, esteve destacado em cinco localidades: Bajope, Calequice, Ponte Alferes Nunes, Bassarel e Teixeira Pinto. Segundo José, como ele, outros montemorenses também estiveram destacados nas mesmas regiões. “Éramos uns 50, talvez, da cidade e aqui das aldeias próximas”. Entre essa data e 26 de Novembro de 1973, e como podemos ver através das mensagens manuscritas por si no verso das fotografias, além de Bolana, José remeteu para a sua cidade natal fotografias desde Teixeira-Pinto, Bajope e Bissau. No verso de algumas das fotografias enviadas a partir de 9 de Março de 1973 encontramos ainda, além da sua caligrafia, carimbos dos estúdios FOTO BARBOSA, de Teixeira Pinto, e FOTO SERRA, de Bissau. Estes vestígios também podem indiciar pistas sobre a produção destas imagens já que, com a exceção dos retratos dos seus pais que aparecem no final da série e cuja autoria é do fotógrafo montemorense Joaquim Chapa, José não se recorda do nome de quem as capturou.
[Ofereço esta fotografia à minha mulher e filhinha como prova de amor e amizade, com muitos beijos e abraços deste que nunca as esquece e que está cheio de saudades. Adeus Beijos. Esta fotografia é tirada com a garotada cá do sítio, e com a minha pupila ao cólo, no meu carro. Adeus Amores] 24 de 24 DE DEZEMBRO DE 1971 (VERSO) Teixeira-Pinto
[Isto era uma aldeia que eu estava lá e andava sempre com os filhos deles. Porque a mim nunca ninguém me tocava. Estava com os filhos deles! Os filhos dos terroristas, que a gente chamava de terroristas, mais terroristas éramos a gente, mas isso é outro assunto. E eu andava sempre com os filhos, ia a Bolana lá buscar as coisas de comer para eles, com elas, sempre, e os gajos não me faziam nada. Eu podia ir para o mato, ia assim, sem armas, sem nada, uma faca de mato por causa dos bichos, nunca me faziam mal. Mas isto era… eu estive lá, eu era contra a guerra. Era e sou. A gente agora anda da falar muito do Putin e destes e daqueles, mas a gente também fez a mesma coisa, ou pior. Mas pronto. Invadimos Angola, fizemos em Angola o que fizemos. No Brasil, 500 anos, Moçambique, Guiné, São Tomé e Príncipe, todo o lado a gente andou, não fez só bem. Mas isso são situações… eu fui para lá, fui obrigado. Fui para lá porque o meu pai foi preso em Caxias, como comunista. Aqui em Montemor houve quem denunciasse que ele era comunista e foi preso. E eu fui sempre considerado filho de um activista comunista, tanto que no meu cartão de identidade tinha um sinal vermelho. E assim que foram as mobilizações, Guiné! Para o pior sítio da Guiné que era lá para ver se me limpavam o sarampo. Mas ainda cá estou e já morreram muitos mais desses que fizeram mal. E então foi assim. E eu quando abalei para lá tinha uma filha com seis meses. A minha filha que vai fazer 52 anos. Isto foi um sofrimento.]
Com o intuito de evidenciar o caráter também epistolar e material destas fotografias, partilhamos, além de uma digitalização da imagem nelas contida, o outro lado destes objectos fotográficos e organizamo-los cronologicamente pela data de envio. Propomos assim um debruçar sobre a sucessão de imagens e palavras que José Joaquim Rubira remeteu, ao longo de quase três anos, aos seus pais, aos seus tios e primos, à sua esposa e à sua filha Clara, que tinha apenas 6 meses quando José partiu de Montemor-o-Novo.
José Rubira aparece retratado em todas as imagens. Em 12 delas está acompanhado por outros militares e noutras 4 por crianças e mulheres locais, mas na grande maioria das fotografias (33/51) aparece só, quase sempre vestido à civil, e em poses diversas: a conduzir viaturas militares (José era chofer), ostentando armas, ao lado de elementos da flora local, ao lado de animais (vêmo-lo a abraçar vacas, um cão, um macaco) ou ainda a realizar actividades de lazer: “a beber, a jogar voleibol, lá no banho, dentro da canoa, lá no rio, tenho várias dessas”. Nesta colecção existem ainda duas foto-montagens: uma que combina um retrato seu, um de sua mãe e a inscrição de “Feliz Aniversário”; outra que conjuga uma imagem sua, fardado, e um postal ilustrado com votos natalícios.
Por vezes (mas quase nunca) a mensagem escrita no verso das fotografias convoca a imagem com a qual viaja: “esta fotografia é tirada com a garotada cá do sítio, e com a minha pupila ao cólo, no meu carro.” Ou: “esta é tirada na fonte de Teixeira-Pinto onde vamos à água, o pessoal que se vê são as mulheres a lavar a roupa, espero que gostes” (24 de Dezembro de 1971). Outras vezes (quase sempre) as palavras escritas, tal como as poses e os enquadramentos retratados, repetem-se sucessivamente, carta após carta, independentemente do conteúdo da imagem fotográfica. Locuções como “ofereço esta fotografia aos meus paies, como prova do meu amor, com um grande abraço e muitos beijos deste seu filho amigo, que nunca se esquece de vocemecês” (12 de Fevereiro de 1972) ou como “à minha querida mulher e filhinha como prova do meu amôr com muitos beijos amorôsos e um grande abraço muito apertado, deste que não as esquece um só momento” (9 de Março de 1973) são ligeiras variações de uma fórmula que se repete em todos os aerogramas.
[Ofereço esta fotografia a minha querida mulher e filhinha como prova de amizade deste que nunca as esquece nem um só momento,
com muitos beijinhos e abraços. José Joaquim Rubira] 22 de outubro de 1971, verso
A expressão “ofereço esta fotografia”, repetida em quase a totalidade das missivas, remete estas imagens e as mensagens que as acompanham para a esfera da dádiva e das trocas (cf. Mauss 2001). Quando lemos, no aerograma que José Rubira escreveu a 24 de Dezembro de 1971 aos seus pais, “esta fóto é tirada com as garrafas que me mandaram e com uns colegas, espero que gostem”, entendemos que estas missivas fotográficas integraram uma assemblagem que incluiu também múltiplas outras coisas que foram oferecidas entre José e os seus familiares. Também elas foram “objectos” cuja circulação “no espaço e no tempo” (Edwards e Hart 2002) contribuíram para a manutenção, à distância, destas relações sociais, reiterando os seus afectos. Nesta esteira, relembramos pesquisas como as de Loretta Baldassar (2008) ou de Olena Fedyuk (2012) que demonstraram o papel que a circulação de fotografias, em conjugação com outros objetos e práticas, pode desempenhar na criação de uma co-presença em quotidianos de pessoas fisicamente apartadas. Esta constatação convida-nos a olhar para o objecto fotográfico perspectivando-o “na vizinhança com outras práticas culturais, nomeadamente associadas ao quotidiano” (Medeiros 2010: pp. 57-58) e, tendo isto em mente, torna-se particularmente interessante apontar para duas imagens desta colecção que contêm, conjugadas com outros elementos, fotografias fotografadas.
Na imagem remetida por José Rubira a 12 de Setembro de 1972, desde Bajope, a seus pais, este encontra-se retratado junto a um serviço de louça chinesa, adquirido para oferecer à sua esposa, e a uma moldura com um retrato da sua mãe, da sua filha e da sua mulher. Estas encontravam-se então em Montemor-o-Novo. Inversamente, numa imagem enviada pelos seus pais a José Rubira, estes encontram-se retratados ao lado de uma composição de objectos, como uma taça de um concurso de columbofilia e outros troféus, e uma moldura com uma fotografia de José em uniforme militar. Ambas as imagens, num mise en abyme, contêm em si outras imagens, que por sua vez contêm pessoas e coisas que estão, para o destinatário da fotografia, num lugar distanciado. Estes objetos fotográficos situam-se, então, no seio de uma rede complexa que põe em contacto estas coisas, estas pessoas e estes lugares.
Embora seja evidente o papel que estas fotografias tiveram, à época da sua produção, envio e receção, na sustentação das relações familiares entre aqueles que as trocavam, não é esta dimensão que é hoje exaltada quando José as revisita.
Interessa realçar o seu gesto de colecionador: depois de as resgatar aos seus destinatários (aos seus pais, tios, primos, mulher e filha) José compilou estas imagens às quais hoje se refere, com alguma devoção, mas não sem sentido de humor, como “relíquias”, considerando-as como documentos que testemunham o período que passou no “Ultramar”.
Este ensaio resulta de alguns momentos em que José me mostrou, um a um, cada um destes aerogramas. Nestes momentos, apenas ocasionalmente José se referiu ao conteúdo das imagens ou das mensagens escritas no verso das fotografias (as poucas referências que apontou estão descritas nas legendas das imagens digitalizadas). Ao contrário, José convocou, sobretudo, memórias e considerações que não estão representadas nestes quadros.
“Isto faz quase 50 anos… e só há dois anos é que eu comecei a falar alguma coisa disto. Porque comecei-me a enervar com pessoas que falam de coisas que não sabem e dizem coisas do arco da velha e eu em certos aspectos defendi-os sempre muito, porque a gente é que fomos para a casa deles. Eu estive lá, eu era contra a guerra. Era e sou. A gente agora anda da falar muito do Putin e destes e daqueles, mas a gente também fez a mesma coisa, ou pior. Mas pronto. Invadimos Angola, fizemos em Angola o que fizemos. No Brasil, 500 anos, Moçambique, Guiné, São Tomé e Príncipe, todo o lado a gente andou, e não fez só bem! Mas isso são situações… eu fui para lá, fui obrigado. Fui para lá porque o meu pai foi preso político em Caxias, como comunista. Aqui em Montemor houve quem denunciasse que ele era comunista e foi preso. Foi preso para Caxias, levou porrada, veio de lá, disseram que foi engano… E eu fui sempre considerado filho de um ativista comunista, tanto que no meu cartão de identidade tinha um sinal vermelho. E assim que foram as mobilizações, Guiné! Para o pior sítio da Guiné que era para ver se me limpavam o sarampo. Mas ainda cá estou e já morreram muitos mais desses que fizeram mal. E então foi assim. E eu quando abalei para lá tinha uma filha com seis meses. Isto foi um sofrimento.”
“Deixei lá eu amigos meus, até me estão a vir as lágrimas aos olhos… ficaram lá. (…) O meu colega condutor ficou cortado ao meio com uma bazucada. Cortaram-no ao meio, com duas filhinhas que ele já tinha quando foi para lá. Dois dias depois de já estar morto, recebeu lá as fotografias das filhas.”
Ao partilhar comigo a sua coleção de bate-estradas, estes objetos fotográficos foram para José “gatilhos de memória que fizeram disparar relatos antigos, enredando imagem, biografia e história” (Antunes 2021), incluindo histórias que não estão representadas por imagens. Mas gostaríamos de realçar que estas memórias foram reinterpretadas à luz do, ao mesmo tempo que fundamentaram opiniões sobre o, actual contexto político nacional e mundial. Mergulhar mais profundamente nestes documentos e nas múltiplas dimensões que eles podem evocar (da esfera particular da circulação de coisas e afectos à esfera macro-política que estimulou as suas trocas) pode revelar micro-narrativas em confronto com as narrativas hegemónicas sobre o período dos Movimentos de Libertação dos países colonizados por Portugal em particular, mas também em torno de conflitos armados das disputas geo-políticas contemporâneas.
Bibliografia
Antunes, Maria José Lobo 2021, “Provas de vida: fotografia da guerra colonial num arquivo digital vernáculo” in Flores, T. M., Correa, . S. M. de S., & Vasconcelos, S. (Eds) Imagens & Arquivos. Fotografias e Filmes, Lisboa: Instituto de Comunicação da NOVA - ICNOVA, pp.73-81
Baldassar, Loretta 2008, “Missing Kin and Longing to be Together: Emotions and the Construction of Co-presence in Transnational Relationships” in Journal of Intercultural Studies, vol. 29, no 3, pp. 247-266.
Edwards, Elizabeth e Janice Hart 2002, Photographs, Objects, Histories. On the Materiality of Images, Nova Iorque: Routledge
Fedyuk, Olena 2012, “Images of transnational motherhood: The role of photographs in measuring time and maintaining connections between Ukraine and Italy” in Journal of Ethnic and Migration Studies, vol. 38, no 2, pp. 279–300
Mauss, Marcel 2001, Ensaio sobre a Dádiva, Lisboa: Edições 70
Medeiros, Margarida 2010, Fotografia e verdade: Uma História de Fantasmas, Lisboa: Assírio e Alvim
Outras Fontes:
“Guerra Colonial - A Sociedade e a Guerra - Apoio Moral”, em Centro de Documentação do 25 de Abril, Universidade de Coimbra: https://www.cd25a.uc.pt
Esta série é uma extensão de uma pesquisa realizada em residência de investigação no Cineclube e Filmoteca do Município de Montemor-o-Novo e tem o apoio do ICNOVA.
Agradecemos a José Joaquim Rubira pela partilha da sua história e destas imagens.
Artigo e trabalho publicados no Foto-síntese. Veja as restantes fotografias.