Africanas!
Submissão, independência, mulheres negras nuas, mulheres brancas de véu, rituais de sacrifício, mulheres solteiras, casamentos poligâmicos, aids, amor: durante uma viagem pela África conheci mulheres de culturas completamente diferentes mas que vivem conectadas em seus espaços e tempos.
A partir destes encontros surgirá um documentário longa-metragem dando voz a estas mulheres e falando sobre o choque cultural entre estes vários mundos: esta é a proposta que está sendo financiada coletivamente via movere.me. E só quando o financiamento começou a avançar nos por centos (ele já ultrapassou os 60%: viva!) é que me dei conta de como o conteúdo e a forma de bancá-lo estão intimamente interligadas… me explico:
Comecei os sete meses de viagem com um desejo bonito - inocente mas genuíno - de encontrar raízes. No Brasil sou branca mas tem um bisavô da minha vó que era negão. Nunca soube muito dele: só que teve um filho com uma índia, que deixaram pra algum branco criar. E sempre gostei de samba, fiz capoeira e cresci achando que era neguinha lá dentro. Mas logo que cruzei o Atlântico entendi que este sentimento não se refletia de forma alguma na imagem que os negões com quem cruzava faziam de mim. Em muito lugar eu era só uma branquinha: “de onde?”, “do Brasil”, “ah… Brazil, na Europa”… Este meu Brasil virou qualquer coisa entre França e Noruega, um pedaço da Península Ibérica, por ali; eu era só meu avô italiano, minha tataravó portuguesa. Assim a viagem seguiu por algum tempo no movimento exatamente contrário ao sonhado. Quanto mais eu entrava na África, mais me identificavam com a Europa; mais eu me sentia, por assim ser vista, como do continente de cima.
Até que a viagem acabou e eu subi. Fui apresentar o projeto do documentário gravado no caminho no DocsBarcelona. Tinha ganho uma bolsa para participar, estava muito orgulhosa e um inglês quis falar comigo sobre o projeto. Ele achou muito interessante a história naife da brasileira que vai buscar suas raízes na Mama África. Expliquei que o doc pretendia ir um pouco para um outro lado. Que ele pretende discutir como que nossa cultura Ocidental, ao não se ver no Outro, no diferente, cria uma incompreensão que gera preconceitos e justifica relações tão cruéis como a que o mundo Ocidental criou com a África: escravidão, colonialismo. “Ou seja”, concluí, “o documentário é o choque da visão de uma ocidental viajando pela África”. O inglês então me olhou com uma cara que nunca tinha visto e disse assim mesmo - mas em inglês, claro: “mas como que você vai nos convencer de que você é Ocidental?”.
Meu Deus… eu que acabava de deixar de ser neguinha acabava de descobrir que também não fazia parte do mundo dos não orientais: arigatô. Perguntei para muitos outros europeus depois: “sou Ocidental?” e a resposta era unânime: “não…”. “Sorry?” foi o que respondi para o inglês e nem sei mais o que disse depois porque demorei uns dois meses para processar esta nova negação identitária. Para os europeus que lêem o texto e não conseguem entender como que um dia uma brasileira ousou se considerar Ocidental, saibam que também passei dois meses perguntando aos sul americanos se eles se sentiam Ocidentais – incluindo os uruguaios e argentinos que historicamente eliminaram indígenas e africanos se assemelhando mais a algum lugar entre Espanha e Itália que cerca da Bolívia e Chile – e todos, sem exceções, responderam que “claro” e também se assustaram com a exclusão de nós ‘brancos de segunda mão’ do lado esquerdo do Globo.
E foi então que entendi que sou este “povo novo” como diria Darcy Ribeiro, um dos sociólogos ícones da explicação da formação/identidade brasileira. Este povo que mistura o português com os africanos, com os nativos e chama a todos de “nós”. Este povo que mistura todas as raças – muito mais que supõe parte dos africanos que conheci e de forma muito menos pacífica e natural de que têm a certeza boa parte dos europeus que conheço - mas, sem dúvida, uma outra coisa. Ou, como diria uma amiga frente a minha inicial indignação: nem Ocidente, nem Oriente, Oxente!
E depois de entender que os europeus talvez não fossem dar dinheiro para uma não-ocidental discutir o choque de cultura do Ocidente, nem os brasileiros para uma brasileira que não encontrou suas raízes no continente mãe fui apresentada pela Senhora Internet ao tal do financiamento coletivo*.
Cansada de enterrar documentários antes de pari-los decidi apostar. Coloquei o Africanas no movere.me. Quando cheguei nos 10 por cento do financiamento começou o milagre. Além de suspirar pensando que poderia – poderei! – alcançar os recursos para editar o sonhado documentário, comecei a receber e-mails. Mensagens de pessoas que sonham como eu: uma se oferecendo para ajudar na legenda, outro para criar a página facebook para o doc, outro perguntando o que ele e o Centro de Direitos Humanos onde trabalha podem fazer para ajudar, assessor de imprensa oferecendo para divulgar… Gente com quem nunca falei e que completamente desconheço apoiando meu sonho, e apoiando em cash!
E agora que me dei conta: o que estou fazendo é usando a tecnologia e uma ferramenta do norte – dos Ocidentais legítimos -, o tal do crownfunding*, e recebendo respostas numa estrutura de economia informal bem africana – em que a solidariedade vai nutrindo e contribuindo para que a coisa funcione…. Nada mais brasileiro!
Para conhecer o projeto, ajuda-lo a tornar real, doar e ganhar prêmios acesse aqui.