are you for real?
Retomamos a visita pelos cinemas queer africanos, prolongando o ciclo Queer Focus on Africa integrado no festival Queer Lisboa do ano passado. Desta vez saímos de África para o mundo americano e britânico, reiterando, assim, uma das premissas da extensão que “o africano”, a “africanidade”, ocupam no AFRICA.CONT – uma força cultural que anda pelo mundo como uma corrente marítima num oceano: faz parte dele mas tem os seus próprios movimentos e temperaturas, na bela imagem de Achille Mbembe. Ficamos certamente com vontade de conhecer as configurações que essa corrente toma nas suas diásporas centro e sul-americanas, europeias e asiáticas.
Passamos de um mundo, a África, onde os géneros e as sexualidades dissidentes vivem em sociedades africanas e maioritariamente negras que mais frequentemente os excluem; para um outro em que as formas queer de vida dos afrodescendentes estão envolvidas por uma sociedade onde foram definidos, e percorridos, os movimentos e as próprias designações dessas sexualidades e géneros dissidentes a partir da segunda metade do século passado: de “homossexual” e os movimentos de homofilia, para “gay” e as frentes de libertação gay, gay e lésbicas depois, e para “queer” e as múltiplas formas de agência e de subjetividades queer até hoje. Que os processos de globalização tornaram mais ou menos conhecidos e utilizados por todo o mundo, por nós também; o que não torna mais fácil a tarefa de entender as complexidades dos contextos em que os filmes e outras formas expressivas são realizados e vistos, nem de fazer sentido destas e destes que vamos ver.
“Eu apanho com porcaria dos dois lados. Não sei se uma dói menos do que a outra, quando por um lado se é discriminado pela raça e depois te fazem sentir um pária num clube gay, ou ao tentar entrar em algum”. É uma declaração do escritor e ativista afro-britânico Vernal Scott, em comentário a um inquérito realizado pela organização FS e publicado agora na sua revista FS Magazine. As pessoas lésbicas e gay negras estão efetivamente sujeitas a várias formas de discriminação: racial por parte dos brancos hegemónicos, homofóbica pelos mesmos, mas também são estigmatizados pelos seus irmãos negros heterossexuais; e a discriminação racial existe também da parte da comunidade lésbica e gay de maioria branca. É importante considerar as duas dimensões, sexual e racial, como uma interseção. A que se podem acrescentar outras dimensões que também se cruzam: o género, a classe, a etnicidade, a espiritualidade.
Os nossos curadores, a Ricke Merighi e o Pedro Marum, propõem-nos uma viagem queer por algum cinema negro americano e inglês dos trinta anos que vão de 1970 a 2000. Uma viagem queer porque nos dá a ver imagens queer, mas também porque a sua conceção do programa adota ela própria uma posição queer – meticulosamente crítica de todas as formas de normatividade, de todas as identidades e fronteiras que limitam a experiência humana. A eles, bem como ao João Ferreira, queremos deixar o nosso agradecimento.
Um conjunto de documentários experimentais e vídeo-ensaios relaciona, horizontalmente, produções de dois movimentos culturais negros de vanguarda, com origem americana, ambos sem nome quando nasceram na primeira metade dos anos 1970. Num deles, Blaxploitation, propriamente cinematográfico embora com uma fortíssima presença musical, realiza-se o primeiro cinema negro independente nos Estados Unidos. Em que os personagens se representam adotando picarescamente os mais fortes estereótipos dos brancos sobre os negros – o “Macho Black”, “proxeneta”, “bandido”, “perigoso”, “infantil”, “feiticeiro”, e a negra uma “Jezabel” sexualmente descontrolada, promíscua e imoral. O outro estabelece relações entre música, moda, ciência, ficção científica e histórica, fantasia, espiritualidade, artes visuais, e cinema é claro; produzindo um dos modos mais imaginativos de re-definir e re-imaginar a experiência negra atlântica – do deslocamento forçado, da alienação cultural, de ser o Outro americano, no passado, no presente e no futuro, trabalhando-os através de uma linha temporal que questiona qual veio primeiro. No centro desta sensibilidade cultural a que se chama Afrofuturismo, uma equivalência inesperada e surpreendente entre o “navio negreiro” e a “nave espacial”.