Cinéfilos & Literatus: da palavra à imagem. Da ação à ficção
(Ao André Gomes pela ousadia, dedicação e servidão)
Convém, desde já, atestar que, até a atualidade, a literatura angolana ainda não vive o seu momento glorioso. Há muitos aspetos, quer a nível da ficção, quer a nível teórico, que deveriam merecer especial atenção e organização, bem como estudos devidamente orientados. Isso não significa que as coisas andam desorganizadas ou desestruturadas; pelo contrário, requer-se atualização, racionalidade crítica e bom senso dialético. Apesar disso, deve reconhecer-se que muito trabalho se tem feito. Há atividades distintas a serem realizadas, facto que permite perceber o alvedrio de inversão da situação atual. É notório o engajamento juvenil em matérias ligadas à crítica literária, novas obras de diferentes géneros literários, são, gradativamente, publicadas e outras aguardam a publicação. Outra atividade interessante é a tentativa de melhor perceber a relação entre cinema e literatura; ou seja, avaliar como o cinema pode beneficiar-se da literatura; particularmente, a narrativa de ficção. Neste último caso, salienta-se o projeto Cinéfilos & Literatus. O escopo fulcral desta abordagem é descrever a importância deste projeto cultural atrativo.
O que o espaço angolano ganha com o Cinéfilos & Literatus? Que contributo será dado no âmbito do cinema e da literatura? Que impacto e significado terá este projeto a curto, a médio e a longo prazo? Cinéfilos & Literatus é um projeto cultural, cujo interesse é a exibição de filmes adaptados de obras literárias nacionais e internacionais, seguido de um debate. Um dos objetivos é «contribuir para a democratização do conhecimento e na formação de uma consciência crítica; promover conhecimento cinematográfico e literário servindo de base a uma formação cultural diversa, assim como promover discussões filosóficas e estéticas através de ramificações (subprojectos) em torno de questões contemporâneas no panorama artístico nacional e mundial; colocar no mesmo espaço cultural amantes do cinema (“cinéfilos”) e da literatura (“literatus”) e demais disciplinas artísticas no intuito de partilharem perspetivas obedecendo o universo artístico de cada um». O cabeça de listra do projeto é o André Gomes, que muito tem feito para a consagração efetiva das atividades.
A literatura e o cinema são, até certo nível, duas faces da mesma moeda. Justifiquemos. No domínio da narrativa de ficção, há romances que serviram como ponto de partida para boas representações cinematográficas. Também há filmes que deram elementos importantes para a escrita de romances. Foquemo-nos no primeiro caso; particularizando alguns romances da literatura angolana e da literatura moçambicana; embora seja evidente que o projeto Cinéfilos & Literatus dedica atenção também as outras literaturas, bem como a adaptação cinematográfica das mesmas.
Nestas duas literaturas africanas, escritas em português, vários romances foram adaptados. Ou seja, houve um processo de transmutação da literatura ao cinema. Com que recursos? Com os que cada uma exige; principalmente, os da personagem de ficção. Enquadra-se aqui o pressuposto da «sobrevida da personagem»; esta pressuposição teórica faz da literatura um objeto direto do domínio cinematográfico.
No que concerne a adaptação cinematográfica, na literatura angolana destacam-se A vida verdadeira do Domingos Xavier, romance do angolano Luandino Vieira e a longa-metragem Sambizanga, de Sarah Maldoror. Os Senhores do Areal, romance do Henrique Abranches, e o filme A Ilha dos cães, do realizador Jorge António; ambos os filmes se baseiam nos romances apresentados. Ademais, Avó Dezanove e o segredo do soviético, romance do Ondjaki, e o filme, com o mesmo título do romance, do realizador João Ribeiro. Da literatura moçambicana destaca-se O último voo do flamingo, romance de Mia Couto e o filme O último voo do flamingo, do realizador João Ribeiro.
Com estas referências queremos concordar com o discurso do teórico alemão Ingarden (1973:380) “a obra literária vive, na medida que atinge a sua expressão numa multiplicidade de concretizações”. Entretanto, a obra literária não depende apenas do leitor, mas da sua convivência com outras formas artísticas; tal como o cinema, facto que nos encaminha ao âmbito metaléptico e o da sobrevida da personagem.
A sobrevida é uma perspetiva teórica proposta por Carlos Reis no seu Dicionário de Estudos Narrativos (2018). Entretanto, a sobrevida da personagem é o “prolongamento das suas propriedades distintivas, como figura ficcional, permitindo reconhecer estas propriedades noutras figurações, para este efeito designadas como refigurações” Reis (2018:485). Logo, as adaptações cinematográficas são espaços específicos onde ocorre o fenómeno da sobrevida.
O projeto Cinéfilos & Literatus, indiretamente, mostra e prepara o caminho para que mais estudos sobre a sobrevida da personagem sejam realizados no âmbito das literaturas africanas de língua portuguesa; e não só, não fica de lado as questões ligadas à metalepse, transmidiação, refiguração e transposições intermediáticas.
Ao olhar para as questões levantadas no começo desta abordagem, pode inferir-se que com Cinéfilos & Literatus ganha-se “novos olhares” sobre o cinema e a literatura; angolana e não só. Vê-se a literatura a partir do cinema. Alargam-se as competências de leitura e de imagética; elementos fundamentais para análise das transposições cinematográficas.
Especificamente no campo da literatura angolana, o projeto permitirá conhecer, ainda que de maneira reduzida, que obras literárias foram adaptadas e especificar a razão da escolha das mesmas. Esse procedimento é importante, porque tende a possibilitar de (re)pensar a situação do cânone literário; e este é um elemento fundamental para o Plano Nacional de Leitura. Entretanto, quer a curto, quer a longo prazo, o Cinéfilos & Literatus abrirá um horizonte artístico plural, oferecendo aos olhos dos interessados as longa-metragens que foram adaptadas, principalmente, de romances. Portanto, é um abrir-se ao mundo literariamente cinematografado.
No que diz respeito a narrativa de ficção angolana, principalmente, o romance, que novas feições as personagens recebem depois do procedimento da adaptação cinematográfica? Depois de deixarem de ser «seres de papel», elas conseguem realmente chegarem a perfeição existencial? Estudos devidamente orientados permitirão que se olhe atenta e analiticamente para as transposições intermediáticas. Porque, não se deve apenas olhar passivamente para as adaptações, mas perceber como os elementos que as efetivam são tratados e trabalhados, de modos a produzir-se um discurso crítico devidamente orientado.