De um “lugar de dor”, esta curta-metragem resgata as mulheres
“Ressignificar” é o resultado de um projeto criativo que aliou a arte ao desenvolvimento humano. Da autoria de Iolanda Oliveira, esta curta-metragem, selecionada para o Festival Horizontes e para o Lift-OFF Sessions, é um elogio ao universo feminino, sem pretender determiná-lo, porque «uma mulher é pura imensidão»; um trabalho que tenta “trazer consciência para algo muito puro que nos habita e transcende qualquer pressão de imagens ideais e modos de estar em relação, proliferados pelos mass media”.
Iolanda Oliveira, formada em artes plásticas, estuda atualmente psicologia, e este projeto é resultado da sua vontade de fazer a ponte entre estas duas áreas e de, “através da arte, conseguir trabalhar temas sobre o desenvolvimento humano.”
A curta-metragem parte da ideia de “mulher-troféu” – uma expressão que sugere a objetificação da mulher, que tem determinadas qualidades e é estereotipada, tornando-a um objeto de exibição do homem com quem ela se relaciona – para ressignificar e mostrar que, “de uma mulher e da sua natureza criadora, brotam recursos que «brilham no escuro» e que merecem ser partilhados com quem a vê e valoriza”, porque, como afirma a autora, “uma mulher não é um corpo objetificado com uma forma ideal fixa no tempo e do qual se faz uso e se descarta”.
Partindo destes pressupostos, Iolanda procura abordar as formas subtis de objetificação que existem nos relacionamentos e de que não nos damos conta, ressalvando que “o caminho para a consciência de si, do corpo, do que sentimos e dos nossos limites pode ser um pouco mais desafiante do que aparenta.”
Daí a consciencialização ser o principal objetivo deste trabalho. “O ver o vídeo, para mim, já estava a cumprir função”, diz. “Não estou aqui a fazer um trabalho terapêutico. Mas, realmente, o que se quer é tocar consciências, é lembrar que quem somos, de que, realmente, não temos uma forma física específica, não estamos fisicamente determinadas”.
Resgate de um lugar de dor
Nos primeiros segundos da curta-metragem, muito ruído, confusão, um momento em que não sabemos bem o que se passa e, depois, o anúncio de uma vencedora. Veem-se mulheres deitadas no chão e, posteriormente, expostas sobre a rocha como numa espécie de montra ou pódio. “O que traz é um lugar de dor e confusão. Depois, também nos vai trazer a questão da competição. Vamos tentar ser, vamos tentar ocupar, vamos tentar ser a melhor”, explica a autora. Mas, de seguida, uma ressignificação, um resgatar e tentar perceber o que é que se está a passar, em jeito de manifesto narrado por Iolanda.
«Ela sabe que a ostentação consegue ser um pódio oco, vazio e frio».
“A competição não faz sentido num lugar em que procuramos ser quem somos, nesta singularidade que nos habita e que está aqui tanto por explorar. Porque, às vezes, acabamos por, nas nossas inseguranças, tentar ser como alguém, tentar colar-nos a uma espécie de referências externas, estas imagens todas, estas narrativas todas, querer contar a mesma história que alguém, querer ser. E a realidade é que acabamos por nos perder de vista, por querer ser alguém que não somos, por estarmos em esforço. No fundo, acabamos também por perder o nosso ser. É como se nos estivéssemos a asfixiar”, defende Iolanda. “Se nos pusermos no lugar de competição, ou de quem é que aparece mais, ou de quem é que é melhor, acabamos por nos desconectar do momento da vida que estamos a viver”, acrescenta.
«Viver em verdade não é fácil, mas viver uma mentira é perder a vida.»
Com este trabalho, Iolanda procura lembrar todas as mulheres de que uma vida sincera e com franqueza está ao alcance de todos. “É um regresso ao dentro”, refere. Num lugar em que temos tantos estímulos externos, a proposta é viajar dentro, não asfixiar as emoções e permitirmo-nos conhecê-las. “Eu falo muito no lugar de dor, porque acredito que ir lá e não o negar é doorway, é mesmo uma possibilidade de nos resgatarmos, de percebermos o que não ficou tão resolvido em nós para podermos dar um salto dentro da nossa consciência, dentro de nós.”
«A conquista pelo real é maior do que qualquer nomeação.»
Ao longo dos cerca de três minutos de vídeo, a natureza surge, não como pano de fundo, mas em harmonia com tudo o que acontece, se diz e sente. “A natureza para nos lembrar da nossa essência. A mulher é criadora. Nós geramos vida”, sublinha Iolanda. “Foi um lugar com muita rocha, com muita água, mas foi realmente procurar enraizamento, centramento e ter consciência de que nós somos. O nosso corpo é maioritariamente água e nós, mulheres, vivemos numa profundidade emocional que transcende.”
A objetificação da mulher
“É um tema que está muito internalizado na nossa sociedade e dá-me a sensação de que, às vezes, as próprias mulheres sofrem por uma coisa que nem sequer conseguem nomear, que é o desejo de querem ser alguma coisa, de querem cumprir alguma coisa que idealizam. Estão sempre no ideal que é inatingível. Quando, na realidade, o que queremos na vida é sermos quem somos e realmente sermos aceites como somos, com o rosto, a altura, o peso que temos, a nossa maneira de estar. É a nossa liberdade”, partilha Iolanda.
Este projeto contou com a presença de várias mulheres – Ana Oliveira, Ana Rita de Castro, Anica Pait Cortez, Bruna Ferreira, Irene Santos, Maria Cazenave, Sandra Afonso, Vera Marques, Susana Santinho –, mas também de três homens – André Moraes, Vitor Galvão e Oliver Roy – e, por isso, Iolanda ressalva que este tema não é só válido para o universo feminino. “É uma coisa de ser humano. Agora que nós possamos também mostrar aos homens como é que gostávamos de ser dignificadas, honradas, amadas.”
Iolanda conta que já recebeu vários relatos, principalmente, de mulheres mais maduras que viram o vídeo e se identificaram. “Se calhar, já começaram a fazer um caminho de autoconhecimento, se calhar, já começaram a perceber que há limites delas que foram pisados, ou que se deixaram pisar. Também, se calhar, começam a perceber que lugar querem ocupar, que querem ser afetivamente vistas. Também começam a perceber em que tipo de relações se querem colocar”, pressupõe a autora, para quem existe um momento divisor: “A partir do momento em que a pessoa tem consciência de si, também se coloca de uma maneira diferente e, automaticamente, a rede, as pessoas que nos rodeiam, também se alteram”.
«Ela honra o seu corpo como instrumento da alma, sacralizando a sua transformação ao longo do tempo.»
E conclui: “Estas cicatrizes são para ser honradas, são para aprendermos com elas e percebermos que nem a nossa forma física, nem a nossa forma psíquica, nem as nossas torturas emocionais, são estanques e são realmente passivas de serem mudadas.” A mulher tendo consciência disto, acredita Iolanda, tem impacto a nível sociopolítico. “Ela já não está naquele passado em que está ali como servente para um homem. Há consciência de que, apesar de a história ter mudado e da mulher se ter emancipado, ao nível sexual, parece que ela, se calhar, ainda está ali a tapar alguns vazios e, realmente, a mulher não é um corpo objetificado, ela não é estanque, ela é criadora, como o próprio texto diz, ela é pura imensidão, ela tem um potencial criativo.”
Artigo originalmente publicado por Gerador a 15/02/2021