“Uma breve revisitação do cinema angolano” para ver, em junho, no Arquiteturas Film Festival
O Arquiteturas Film Festival vai levar até ao Cinema São Jorge, em Lisboa, uma seleção de onze filmes produzidos em Angola, o país convidado desta oitava edição do festival, que se realiza entre os dias 1 e 6 de junho.
Para além da programação cinematográfica, o café do Cinema São Jorge receberá um ciclo de debates intitulado “África Habitat”, bem como as instalações dos angolanos Lino Damião e Nelo Teixeira. Os cineteatros de Angola estarão também em destaque numa exposição organizada por Afonso Quintã, a partir de material do Cine-estúdio do Namibe, do arquiteto José Botelho Pereira.
Conversámos com Marta Lança, jornalista, escritora e produtora, que fez a seleção dos filmes angolanos, para este festival dedicado à arquitetura e que, sob o tema “Bodies Out of Space”, pretende, nesta edição, “refletir sobre a construção social do espaço conectado a um fio que circula dentro de suas próprias narrativas de dominação.”
Gerador (G.) – Angola é o país convidado desta edição do Arquiteturas Film Festival. Como é que a arquitetura angolana reflete aquela que é a história do país?
Marta Lança (M. L.) – Embora não seja obrigatório o país convidado ter uma relação direta com a arquitetura, ou seja, é um país homenageado para conhecermos um pouco da sua cinematografia, ainda assim, os filmes revelam parcialmente aspetos arquitetónicos. Nomeadamente, na cidade de Luanda, há uma confluência de vários períodos e regimes históricos e políticos do país. Se fizéssemos uma análise só pelo fator arquitetónico, conseguiríamos desbravar um pouco esses vários períodos.
Por exemplo, vestígios de sobrados e quintalões do tempo da escravatura e dos mercadores de escravos, do século XVIII. A Fortaleza de São Miguel, que foi Museu de Angola e Museu das Forças Armadas. Dentro da fortaleza, temos estátuas do Vasco da Gama, do Diogo Cão e da Rainha Ginga, entre outros. Prédios do estilo Português Suave e de arquitetura modernista convivem com os arranha-céus do período do pós-guerra, de 2002 para a frente, de construção asiática e neoliberal. Marcam o período em que circulava muito dinheiro do petrodólar, e isso espelha-se no tipo de construção e no modo como a cidade se foi expandindo para as novas centralidades. Depois, temos a imensa periferia, os musseques labirínticos e a vida nesses bairros. A arquitetura pode ser um binóculo para perceber a História do país. Embora nem todos os filmes reflitam sobre isso, está lá presente. Quando há planos da cidade ou das províncias, percebemos o estilo de vida e o momento que o filme retrata.
G. – Esta edição do festival é dedicada ao tema “Bodies Out of Space”. Aborda, entre outros aspetos, as narrativas de dominação, questões do colonialismo. Este é um tema que é caro a Angola?
M. L. – Não quero, de modo algum, falar por cima da diversidade de perspetivas e pensamento dos realizadores e realizadoras convidados. Em alguns filmes podemos perceber a relação de dominação, de poder, os corpos marginalizados ou os corpos insurgentes que se inscrevem na cidade e a sua tensão com a cidade. Quanto ao colonialismo, sim, faz parte dos debates no país, assim como a relação mal resolvida com um antigo colonizador, neste caso Portugal. Digo mal resolvida, mas uma relação muito próxima. Vivi lá bastante tempo e mantenho uma relação de trabalho e amizade, e sinto que há um grande conhecimento sobre Portugal. Qualquer angolano já esteve ou tem parentes que emigrou para Portugal, ou circula por cá. Para muitas pessoas, há maior proximidade e conhecimento entre Angola-Portugal do que com a Zâmbia, país vizinho, por exemplo. Quando houve muitos portugueses a irem para Angola trabalhar para empresas nas consultorias, eram expatriados; já os angolanos cá são imigrantes africanos. Nesse período de muita presença dos chamados expatriados brancos, reconhecia-se um modo de estar algo semelhante ao dos tempos dos colonos, em termos de mordomias e de estatuto. É forte presenciar o neocolonialismo do século XXI, motivado por razões puramente interesseiras e económicas.
Com a crise da queda do petróleo, a crise da pandemia, o mundo todo neste estado meio catastrófico, muita gente se foi embora, então isso terá proporcionado o repensar de estratégias. Parece-me que, numa grande crise de desemprego, esperemos que venha a haver mais oportunidades de trabalho e de condições para as pessoas que lá vivem. O dinheiro tem sido mal distribuído e provocando desigualdades imensas. A contemporaneidade ainda tem algo dessas relações de poder, com outras cores, outras figuras, com algum autoritarismo, a cultura do chefe. As gerações mais novas e, sobretudo os criativos e criadores, na área da literatura e do cinema têm trazido outras narrativas. Não são filmes ativistas, o que interessa é mostrar as vivências ali, que são muito interessantes.
G. – O que faz com que Angola tenha tão pouca produção cinematográfica? Tem a ver com falta de apoio às artes?
M.L. – Sim. Há poucas políticas culturais e apoio para a área do audiovisual e do cinema. No audiovisual, várias produtoras nacionais e estrangeiras, de Portugal e do Brasil, produziram muitas séries e telenovelas angolanas. Isso alavancou para haver mais técnicos, mais atores, mais pessoas do setor com capacidade de trabalho. Alguns amigos até referem que, precisamente, com a pandemia e a crise, e com o facto de terem ido embora muitos quadros estrangeiros, isso propiciou mais trabalho. Vão tendo algumas coisas para fazer de publicidade, curtas-metragens, etc.
Já na área do cinema, filmes de ficção ou mesmo documentários, é mais difícil. Não há uma lei do cinema, não há política cultural concertada de atribuição de dinheiros públicos. Acaba por ser um pouco redutor. Por sua vez, as empresas também estão com dificuldades, não é prioritário, na sua ótica, apoiar o cinema. Mesmo quando havia mais dinheiro, não havia muita sensibilização para esta área. Talvez haja uma falta de visão nesse sentido, do Governo perceber que o cinema pode ser um modo muito impactante do país se inscrever no mundo. Se o cinema angolano se expandir pelo mundo e, se houver mais produção nacional, traria bastantes benefícios para o país em termos simbólicos e de outra ordem. Apesar de tentativas de iniciativas de produtoras como a Geração 80, de pessoas que fizeram o Festival Internacional de Cinema de Luanda, e outros agentes culturais, que tentaram que se debatesse o apoio ao cinema, não há medidas muito concretas. Quer dizer, está em negociação há muito tempo, mas não se avançou muito. O que acaba por acontecer é que as produtoras têm de equilibrar trabalhos comerciais e de publicidade, para depois poderem fazer um cinema mais de autor. Também se investe em coproduções, com a África do Sul, com a Europa, enfim, para tentar financiar os filmes.
G. – Que filmes selecionaste para integrar esta mostra?
M. L. – São onze filmes. Pretendi, somente, propor uma breve revisitação do cinema angolano. Obviamente que fica muita coisa de fora, mas vamos mostrar vários tipos de abordagens cinematográficas, de épocas e de questões.
Vamos começar com um filme de 1975, de Ruy Duarte Carvalho, Uma Festa para Viver. É uma curta-metragem filmada a preto e branco, quando na televisão se trabalhava com película, e é o retrato daqueles dias um pouco angustiantes e esperançosos que antecedem a proclamação da Independência, em novembro de 1975, entre a alegria e a angústia da guerra a despontar. Carvalho vai entrevistando pessoas no bairro do Cazenga, e observa-se as ruas nesse período de expetativa. Na própria cerimónia da mudança de bandeira, há ali uma alegria meio contida.
Do Zézé Gamboa, realizador angolano que mora em Portugal há já muitos anos, projetamos O Herói, que nos reativa as memórias da guerra civil, os danos colaterais de um país em guerra durante tantos anos, a partir da história da cidade, de um homem, da humanidade no meio do caos.
Também quis mostrar o lado vibrante da cidade e da cultura musical e urbana, com Luanda: A Fábrica da Música, de Inês Gonçalves e Kiluange Liberdade. Passa-se no Sambizanga, um bairro onde muitos kuduristas fizeram música, informalmente, nos seus estúdios improvisados. Os realizadores filmam o DJ Buda e a composição no seu computador. O kuduro, com uma forte originalidade, é uma espécie de reflexo de um país em guerra e no pós-guerra, de uma vontade meio transe de exprimir aquela loucura , tipo corpo sem órgãos. Tem algo de catártico dançar e ouvir kuduro. O kuduro tem um lado imediato e impulsivo, que é muito interessante, e acho que fazia todo o sentido ligá-lo às questões do corpo fora do espaço, num festival com essa temática.
Outro filme que vale muito a pena é o Elinga Teatro, que conta a história do edifício do Elinga, que já foi o Colégio das Beiras, que era um edifício colonial e que, desde há bastantes anos, é uma espécie de ponto de encontro de artistas da Baixa, de artistas visuais, estilistas, músicos, atores. Tem uma companhia de teatro das mais consistentes da cidade. No entanto, o edifício está constantemente a ser ameaçado de demolição, apesar de ser um edifício qualificado, com património. Depois de várias ameaças de que vão chegar os caterpillars persiste até hoje. O filme retrata também a dinâmica de sobrevivência deste lugar.
Em Afectos de Betão, do Kiluanji Kia Henda, vemos a cidade esvaziada numa narração meio onírica. A partir do livro do jornalista Kapuściński, Mais um Dia de Vida - Angola 1975. Há uma sobreposição de tempo da partida de Angola, dos chamados “retornados” , mas o que estamos a ver é uma cidade vazia, Luanda de hoje em dia, do ponto de vista formal, das ruas, das casas e dos prédios, sem ninguém. É também um ensaio sobre as formas visuais modernistas, mostradas em planos do filme.
O filme de abertura é o Para Lá dos Meus Passos, de Kamy Lara, da Geração 80 (em competição) que retrata a preparação da temporada de 2017, da Companhia de Dança Contemporânea de Angola. Ao longo dos ensaios, vamos vendo e ouvindo as histórias de cada bailarino da companhia. Alguns vêm de várias províncias do país. Então, é também este movimento do interior para a grande capital, que tudo absorve. Eles vêm de Cabinda ou de vários lugares de Angola, com uma ruralidade e tradição acentuadas. E vêm para a capital de Luanda, onde há pessoas de todo o lado, como em Lisboa, Nova Iorque, Tóquio, onde todos se misturam. Eles contam os embates do que é chegar a Luanda. Junta o trabalho de grandes mulheres. O filme está muito bem realizado, e a Companhia de Dança, dirigida por Ana Clara Guerra Marques, tem um trabalho excecional. Para o público português irá ser interessante perceber os vários tipos de histórias que existem dentro do país. Sendo um filme ligado à dança contemporânea, também fazia muito sentido no contexto deste festival.
Ainda filmes que desvelam algo das relações geopolíticas de Angola, com dois países muito presentes. As Cartas de Angola, de Dulce Fernandes, sobre a relação Angola-Cuba, é a história de uma portuguesa que nasceu em Angola, e a história dos cubanos que combateram na guerra em Angola. Portanto, o diálogo, a travessia que mostra uma Cuba de 2011, em relação a essas memórias de Angola.
Outro país muito presente em Angola é a China. Do Outro Lado do Mundo, de Sérgio Afonso, é um filme sobre duas histórias de amor de duas mulheres, angolana e chinesa. É a história de Paulina, uma angolana que conhece um chinês que veio para Angola construir uma estrada, e a de Sofia, que chega a Angola com o seu marido, que foi bolseiro angolano na China. Mostra a cooperação com a China e a realidade de muitos chineses em Angola na reconstrução do país. O que isto implica na vida das pessoas, as histórias de amor e de relações, nas entrelinhas da grande história, e como é que se cruzam culturas diferentes.
Ainda da Geração 80, o filme Ar Condicionado, de 2020, também em competição, realizado por Fradique, que fez o documentário Independência (2015). Acontece um fenómeno estranho: os ares-condicionados começam a cair dos prédios. O fenómeno é abordado, do ponto de vista de um guarda, da empregada doméstica. É um filme curioso em termos estéticos, do elenco e de guião. Fico muito contente que seja visto numa grande sala de Lisboa.
O Sílvio Nascimento é um produtor e também apresentador da RTP África e, de sua produção, mostramos o Mulheres, de 2020. Aqui aborda-se os dilemas das poligamias, a sua difícil gestão numa cidade. Um homem negligencia as demandas da esposa e filhas e vai gastando o seu salário, ao longo do dia, sempre com várias amantes. Elas depois organizam-se e emancipam-se perante esta figura do “patriarca”. Acaba por se contar a precariedade das famílias, e é um filme que mostra a vida no musseque.
Por fim, A Ilha do Cães, do Jorge António, um realizador português que vive em Angola há muitos anos e que adapta o romance Os Senhores do Areal, de Henrique Abranches. Num resort, os trabalhadores fazem greve, param os trabalhos e acontece algo misterioso: uns cães selvagens reclamam aquela ilha. É um filme mais de ação.
Era uma forma de resgatar vários universos de assuntos e géneros. A mostra de onze filmes será acompanhada do ciclo de debates “África Habitat”, organizado em parceria com a Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa. Alguns realizadores e realizadoras estarão no fim da sessão, para apresentação e Q&A.
Artigo originalmente publicado por Gerador a 25.05.2021