EDOUARD GLISSANT: UM MUNDO EM RELAÇÃO estreia mundial do filme de Manthia Diawara
15 de Julho de 2010 em Avignon, no Théâtre du Verbe incarné, que todos os anos acolhe manifestações em colaboração com o Instituto Tout-Monde do pensador martiniquês Edouard Glissant. Depois de ter apresentado o filme, o escritor-cineasta e universitário Manthia Diawara e o célebre jornalista Edwy Plenel conversam um com o outro. Assim, primeiro o filme, a seguir o encontro.
O filme
Como transformar um momento de cinema num momento de pedagogia leve para permitir ao grande público familiarizar-se com um homem e o seu pensamento? E como fazer com que este pensamento complexo caiba numa curta duração e na imagem? “Disse-lhe para me falar como a uma criança de 12 anos para me explicar as suas ideias” diria Manthia Diawara. Com efeito, Glissant permanece simples, límpido até, e o filme acompanha este esforço com uma legendagem e uma sequência adaptada. A câmara de Manthia Diawara e a montagem de Laurence Attali investem em fazer de cada momento uma respiração, embora este filme sem grande originalidade formal, permaneça leve como fragmentos de uma conversa entre amigos.
Tendo partido juntos no Queen Mary, Diawara e Glissant conversam enquanto observam as ondas que tantos escravos atravessaram. “A travessia do Atlântico” é, efectivamente, o primeiro capítulo deste filme destinado a introduzir conferências de Glissant em Nova Iorque, mas também a ser apresentado em instalações de galerias em diferentes cidades.
É paradoxalmente no fim da viagem, no memorial da escravatura de Anse Caffard, erguido por Laurent Valère em 1998 na ponta do Diamante, na Martinica, que se inicia a conversa. Não é um acaso: estes quinze bustos de personagens acabrunhadas, pesando cada um quatro toneladas e com uma altura de 2,50 metros, estão apertadas em triângulos (como referência ao comércio triangular) na direcção da África. Glissant explica que um barco negreiro clandestino ali tinha naufragado, carregado com 300 escravos agrilhoados, clandestino porque era dia 8 de Abril de 1830, já muito depois do tráfico de escravos ter sido declarado ilegal em 1815 pelo tratado de Viena. Por isso, nunca se saberá quem eram estes escravos, nem o comandante, nem mesmo o nome do barco.
Eis porque Glissant e Diawara nos levam imediatamente ao destino: a travessia do Atlântico é um movimento de incerteza. Os escravos deixam a unidade da sua cultura por uma aventura em que serão confrontados com a diversidade. A diáspora é um movimento da unidade para a multiplicidade.
E eis-nos no alto mar, em plena problemática: berço da humanidade, a África tem a deslocação por vocação. Tudo partiu dela. Serão diásporas voluntárias ou forçadas (tráfico de escravos, pobreza), mas das quais os africanos não regressam escravos: ganharam a multiplicidade.
E Glissant revela-se em tantos momentos introduzidos por uma legenda que se inscreve na máquina de escrever sobre as ondas: o jazz, a crioulização, a vaidade das cadeias de filiação, os jardins crioulos, as marcas culturais, a complexidade do mundo e o seu imaginário colectivo, o terrorismo económico, etc.
Glissant estabelece a distinção entre a aparência e a realidade da democracia: os regimes democráticos ocidentais cometeram o maior acto anti-democrático: a colonização. E a África? Nunca se diz, como se faz com a América Latina, que possui as suas riquezas. Só se fala em ajudá-la a sair da situação em que se encontra! E continuam a explorá-la.
A mudança? Passa pela aceitação do Outro na sua opacidade que Gissant reivindica em alto e bom tom, através de uma extraordinária história sobre brócolos de que ele afirma não gostar sem saber porquê! O racista é aquele que recusa o que não compreende. A barbárie é impor ao outro a sua própria transparência.
As fronteiras? Deviam ser permeáveis para os migrantes, mas não deviam ser abolidas, para preservar o sabor de cada ambiente. Então, arquipélagos de pequenos países podiam voltar as costas ao poder e à força para viverem juntos a complexidade no grande tremor do mundo…
O encontro
Manthia Diawara: A ideia do filme nasceu de uma série de conferências previstas para a universidade de Nova Iorque. Edouard Glissant é conhecido sobretudo nos departamentos de francês: queria apresentar as suas ideias para além do contexto da francofonia, enquanto pensador moderno que passa pela poesia. Pensei em fazer um filme para acompanhar estas conferências. Cada parte do filme fazia uma introdução a cada uma das conferências. Queria ver como é que as ideias de Glissant cabiam na cultura política americana. Não se tratava, pois, de fazer a sua biografia mas antes de o deixar falar.
Edwy Plenel: A política de Edouard é verdadeiramente uma política e a poesia dá-lhe amplitude. Tudo o que está presente na sua obra não é uma maturação progressiva mas, com diferentes declinações, uma permanência do pensamento. No fim do filme, um dos seus estudantes oferece-lhe uma garrafa de rum caseiro. Edouard abrira o Instituto martiniquês de estudos (IME), uma escola que durou até aos anos 80, diferente do sistema escolar centrado em França. A França não fez o que devia ter feito segundo Edouard Glissant e, por isso, é em Nova Iorque que ele ensina.
Mantia Diawara: Esta multiplicidade de que fala Edouard é válida para mim: eu sou soninqué, maliano, guineense, senegalês mas também francês. São os grandes autores franceses que forjaram a minha consciência. Eu conhecia Paris antes de a ver. Fui formado nesta ideia de universalismo, de que se é homem simplesmente, em seguida, recebido nos Estados Unidos pela comunidade negra americana depois de te passado um ano em Vincennes sem futuro. Isso permitiu-me ter uma cátedra em Nova Iorque. Sou um homem normal. “médio” (de acordo com a média) e deixei isso no meu livro Não arredamos pé (título em inglês : “We Won’t Budge: An Exile in the World”, da canção de Salif Keïta, Nou pas bouger). Este pensamento de comunitarismo permitiu-me a abertura, mas Edouard ajuda-me a pô-lo em causa. A poesia e a liberdade de Edouard ensinaram-me tanto! Eu era muito sério na vida e ele ajudou-me a descontrair.
Edwy Plenel: O que acabas de dizer também é válido para mim! A obra de Edouard disse-me aquilo que confusamente sei que sou e que a Martinica me fez. Na altura da entrega do prémio Carbet 2009 a meu pai Alain Plenel pelas suas ideias humanistas e anti-colonialistas, uma carreira, “média”, agradeci dizendo que, por detrás da aparência, do jornalismo, dos negócios, das polémicas, o que era importante para mim era esta pedrinha, esta recusa de se deixar catalogar ou se prender. Ele ajudou-me a não entrar numa identidade espelho, que teria sido jogar uma independência contra outra. E eis que ontem, nós tínhamos o 14 de Julho dos chefes de estado africanos, nem sempre respeitadores dos direitos humanos. O teu comentário?
Manthia Diawara: Nos Estados-Unidos, fizeram imensos estudos identitários. O trabalho de Edouard permite-nos compreender que não é um e o seu outro, mas uma multiplicidade. Ele refere sempre que podemos misturar-nos sem nos perdermos. Nesse 14 de Julho, eu estava desiludido. Edouard diz no filme que há a aparência e a realidade da democracia. Eu estava envergonhado por ver ali o presidente do Mali. Esse desfile lembrava-me o texto de Mitologias de Roland Barthes sobre a gramática africana! Voltamos à contradição da democracia ter sido colonizadora. Esta colonização continuava naquele 14 de Julho.
Pergunta: Apreciei a sensibilidade e ter ouvido o seu filme. As Camoiseuses, essas feiticeiras que dizem as coisas, dizem “que é preciso que transponhas o mar”. Regressar do outro lado. Era assim que aprendíamos o nosso passado, a escravatura. É preciso perder-se e regressar alterado. Há na travessia a ideia do homem atravessado.
Edwy Plenel: Tudo o que nos diz Edouard é o elogio da deslocação. Com o tráfico de escravos, como subverter uma deslocação forçada? É uma prática: deslocar-se não é apenas a deslocação geográfica. Este é o nosso problema neste país: a nossa fixidez, e talvez fosse necessário deslocar algumas pessoas!
Manthia Diawara: Em África, estamos ainda na negritude, na Inglaterra estamos no atlantismo, em França no universalismo. São universos fechados. Eu queria referi-lo.
Artigo original publicado no Africultures