Esculpir a paisagem com o tempo (e os gestos) em "O movimento das coisas"
Realização: Manuela Serra / Fotografia: Gérard Collet / Som: Richard Verthé / Música: José Mário Branco / Montagem: Dominique Rolin / Sonoplastia: Luís Martins / Interpretação: Habitantes de Lanheses.
O olhar mediado pela câmara suspende-se antes de iniciar o movimento pela paisagem. Move-se na transição da noite para o dia, antes da aproximação às pessoas, aos gestos com que se compõe o quotidiano entrosado com o ritmo da natureza.
Ao princípio foi a paisagem. Após deambular pelo país à procura do seu lugar, depois de abandonar um projecto, feminista, de filmar “Mulheres”, Manuela Serra encontrou uma paisagem com um rio “habitado por gente”, no Norte de Portugal. Nessa paisagem, vive-se dia-a-dia – como documenta O movimento das coisas (1979/1985). Isabel, porém, projecta(-se) (n)o futuro. A ficção irrompe, no filme, através dela sobretudo – operária na fábrica que é a afirmação da economia moderna – e também de um tempo “cronometrado” – expressão de Manuela Serra em entrevista dada a Ilda Castro (2012) –, com as recriações do quotidiano rural, em que, na paisagem em transformação, os gestos são os da vida e o tempo é o do cinema.
“O tempo atravessa o nascer e o pôr do sol”, escreve-se na sinopse original. A matéria do filme de Manuela Serra é tanto – é mais – o tempo largo, o das coisas e gestos ancestrais, como menos – mas é também – o tempo em aceleração: o das máquinas ensurdecendo o som da paisagem e os modos de fazer. Se os encontros de dias com noites e noites com dias compõem o ritmo desta obra que fixa “gestos antiquíssimos e pousados” e o “respirar a vida” em Lanheses – só no genérico final o lugar é identificado –, o plano final ensombra o futuro destes gestos (e da respiração) ancestrais. À inspiração com que o filme se anima, antes da pulsação ao ritmo da liturgia das horas tocadas pelo sino, contrapõe-se, no plano de remate, a imagem da fábrica, traço da imposição do tempo de suposto “progresso”, em que os ritmos são determinados pelo relógio da economia moderna, pelo picar do ponto. No fim, é, de novo, a paisagem: a beleza horizontal do rio e das nuvens no céu é ensombrada, verticalmente, pelo fumo da fábrica.
Para filmar a desintegração do “quotidiano de silêncio”, Manuela Serra pára o tempo, corta-o e cola-o através dos/nos planos tomados por Gérard Collet e que fixam, na paisagem, o movimento das coisas entre si – tempo ora em suspensão ora em choque. Fá-lo em alternativa a animar um guião abstracto, desenhado fora do tempo e espaços filmados – o seu olhar mediado pela câmara integra-se e pulsa ao ritmo do “quotidiano de silêncio” entre pessoas, familiarizadas também nos e pelos gestos e movimentos ancestrais que cumprem nos rituais do dia-a-dia. João Bénard da Costa afirmou que a inserção de sequências desta obra singular só aparentemente é arbitrária. Escreveu: “com maior atenção, vamos descobrir que o uso de montagem da cineasta é precisamente uma interrogação à montagem, como se Manuela Serra, a cada momento, pusesse em causa essa própria noção, substituindo-a pela noção de colagem e reunindo num todo os diferentes materiais que vai dando a ver”. A colagem é simbólica. Na paisagem, que é uma das matérias do filme, através dos gestos e do esculpir o quotidiano com o tempo, costuram-se presente, passado e futuro. O movimento das coisas partilha a sensibilidade do cinema feito por Tarkovski: esculpe com o tempo numa montagem transparente, ao ritmo da vida, sem impor um ponto de vista. Partilhando essências, faz o espectador viver a experiência a partir da materialidade das coisas em movimento na paisagem.
Da liturgia (cristã) das horas
O ordenamento da liturgia das horas, que tem como duplo eixo as Laudes como oração da manhã e as Vésperas como oração da tarde, marca profundamente o ritmo da obra. A vida popular organizada pela fé e no entrosamento com os ciclos da natureza entretecem a existência na aldeia.
Fé e natureza marcaram o início da vida da realizadora. Manuela Serra estudou em colégios religiosos. Teve uma primeira vivência de liberdade nas Doroteias, aos cinco anos, quando ainda não tinha idade para estudar mas foi aceite na instituição com as duas irmãs. Esse tempo primordial foi de alegria – deambulava sem constrangimentos pelos corredores e pela quinta do colégio, fruindo o que Jacques Rozier fixou justamente em Rentrée des classes. Quando se tornou aluna, nunca recuperou da perda da liberdade e alegria ao ser constrangida na escola que genericamente formata, uniformiza. O seu filme marca um reencontro. Se nele há sombras, o certo é que traduz a liberdade e a alegria – as suas e de uma comunidade – que subjazem a este movimento para as coisas naturais, para os rituais do habitual, fixados belissimamente nos planos que desenhou com Collet. Acresce que há, também, um filme sensível criado pelos sons captados por Richard Verthé – na paisagem trinam pássaros e ecoam sons de bichos, restolhares de folhagens e rodas de madeira nas calçadas de pedra – e pelas imagens sonoras desenhadas por José Mário Branco, música para flauta em sincronia com a paisagem, sublimando tempos. Além do filme-colagem de quadros que compõem os planos, há um filme que também se “vê” na escuta.
É no ritmo das horas, portanto, que a realizadora se encontra sensivelmente com os habitantes de Lanheses. Se os gestos lhe são estranhos, novos, e por isso os olha com atenção nova, desintegrada do “discurso da ordem”, é pela ordem natural das coisas que o seu olhar se prende.
Trazer a(o) público O movimento das coisas
Este é um filme de restituição. Um dos legados de António Ferro e da sua “política do espírito” foi a estetização e aportuguesamento do mundo rural – dos gestos, dos modos de vestir e habitar e mesmo da paisagem, com uma tentativa de definição estrita da “casa portuguesa”. O modelo, nacionalista, eliminou a crónica da pobreza, abstraiu-se dos caminhos de mau piso, alagados; escondeu o estrume e as lenhas, escamoteou que pessoas e animais partilhavam espaços.
O movimento das coisas integrou-se numa nova aproximação ao campo, em que participaram António Reis com Margarida Cordeiro e Noémia Delgado. Na sua singularidade, exime-se tanto da abordagem militante como da determinação por um género, afirmando-se tanto pelo registo documental das vivências como pela encenação subjacente ao processo fílmico. No seu filme, Manuela Serra restitui os gestos aos trabalhadores; se enquadra belamente a paisagem que escolheu e o seu “quotidiano de silêncios” tal não corresponde a uma estilização. A obra é íntima sem devassar; particulariza e não generaliza; encena acrescentando dignidade.
Com luz – coada nas folhas das videiras e árvores – e sombras, enquadra o pulsar nas rotinas. Releva o fazer juntos – no semear a lanço como nas refeições; fazer como respiração comum, um corpo-família. O fazer em silêncio, apoiado no conhecimento ancestral, ao som da roda a girar no caminho, mas também neste tempo novo, com o carro que avança no asfalto – os pássaros em toda a parte além dos cães, gatos e animais domésticos na casa.
Mostram-se em especial os gestos das mulheres – a casa e a horta como seu mundo. Se os homens se reúnem à noite no café, delas é o gosto do vinho bebido na malga após o pão amassado e antes de semear a lanço. O ritmo delas é amparado no da terra enquanto a vida de todos se vive ao toque do sino da igreja. Manuela Serra oferece-nos a cor da janela-quadro em que secam pimentos e abóboras. As galinhas de canto suspenso no pescoço. O açucareiro de esmalte. O asseio da modéstia. As brincadeiras de uma menina e o seu cão. Às imagens do mundo das mulheres, cola o corte do pinheiro pelos homens, com a motosserra. A rotina do gasolineiro, a quem a mulher leva a sopa. Entretanto, no tanque de pedra, actualiza-se o ritual: a menina aprende a coreografia da lavagem da roupa, a fórmula da água, sabão, sol e ar. Mais belas que em qualquer estetização fascista da casa, as réstias de cebolas suspendem-se sobre as barbas de milho. Há jogos de crianças num quintal que não é o jardim idealizado pelos arquitectos do Estado Novo. Uma constelação de moinha filtrada pelo sol brilha enquanto os grãos do milho são separados.
Muda-se o tempo (mudam-se os espaços), mudam-se as vontades? Na fábrica de confecção, a operária cumpre o ritmo imposto pelas máquinas que soam alto. Os homens trabalham na construção, erguida ruidosamente a ferro e betão. A sirene da fábrica substitui-se ao toque do sino. O pôr do sol leva as conversas para a rua. Fazem-se por géneros: homens falam com homens; mulheres com mulheres.
A sucessão dos três dias encenados pelo filme integra a feira de sábado, onde se compra desde a criação ao enxoval – a jovem operária Isabel guarda o futuro numa arca sob o olhar da boneca do seu passado-presente –, e a das estações e das colheitas. A colheita do milho e subsequente desfolhada é um ritual comunitário fundamental de partilha. Não é só a repetição dos gestos ou o canto em rancho que actualiza a pertença. Nesta festa de trabalho partilham-se a broa e o vinho além de histórias de vida. O ritual rural articula-se com a fixação do ritual, místico, da comunhão da fé ao domingo. A placidez do rio, com as névoas suspensas sob o movimento dos barqueiros, é mostrada alternadamente à liturgia cristã, que enche a igreja. O sineiro desenha a coreografia com que cria os sons com sentidos precisos nessa liturgia partilhada. A morte integra-se no movimento das coisas. Como o tempo, a água flui no rio atravessado por barqueiros-metáfora poética da travessia que também é a vida. A fábrica, essa, passou a marcar a paisagem, atravessada, verticalmente, pelo fumo.
Após um longo sono, O movimento das coisas estreia comercialmente em Portugal, num gesto de restituição da The Stone and the Plot e na sequência do restauro feito pela Cinemateca Portuguesa. Talvez o filme ganhe hoje em sentidos – quando foi filmado contrariava o espírito da época, mais focado nos processos revolucionários e na construção do país por vir. Se é certo que surgiu no contexto das cooperativas de cinema – foi produzido pela Virver – criadas após o 25 de Abril de 1974, com a reposição da democracia, é um filme que questiona a via traçada para avançar no sentido de um certo “progresso” e que a entrada – em 1985, ano em que a obra ficou acabada – de Portugal na Comunidade Económica Europeia torna inevitável.
Este é um filme que fixa uma paisagem, poética, da abundância – de gestos e do desejo – por contraposição à escassez da economia (e das políticas para o cinema). Faz desejar que Manuela Serra tivesse podido fazer o seu Movimento das ondas, que teria a cidade como espaço-tempo. Se este O movimento das coisas foi invisibilizado (com excepção dos festivais por onde circulou), perturba perceber o desamor pelo cinema que determinou que lhe/nos fosse subtraído o cinema que Manuela Serra trazia dentro de si. Esculpido com o tempo e numa paisagem em recuo, O movimento das coisas desvela-se em cada um de nós em função dos quadros e sons que conseguirmos ver, ouvir e sentir. O cinema quando é vida e pensamento.