Fogo no Lodo
Tenha o público do DocLisboa 2023 por referência o neorrealismo de Alves Redol em Gaibéus, ou de Giuseppe de Santis, em Riso Amaro, e talvez não imagine como é diferente o trabalho coletivo em arrozais gerados para sustento próprio, sem sombras de capataz. É o que primeiro ressalta em Fogo no Lodo, filme-ensaio rodado entre bolanhas do sul da Guiné-Bissau, em estreia no próximo dia 22 de outubro, no Cinema São Jorge.
A longa-metragem de Catarina Laranjeiro e Daniel Barroca resulta de um límpido exercício de presença e atenção às formas de vida de Unal, tabanca orizícola de Tombali, onde o par de realizadores foi interrogar as memórias da luta de libertação anticolonial liderada pelo PAIGC. E não é porque a câmara permanece sobretudo estática que eles nos oferecem um olhar descarnado. Pelo contrário: o olhar vibra em recortes sensíveis do pulsar de conversas e rituais que indagam a cura e a morte, no intervalo dos afazeres quotidianos.
A riqueza orgânica do lodo (ou lama, em kriol guineense) traz textura a um cenário de luta – o fogo – que prevalece no que nos possa ser invisível, para lá dos contornos mais evidentes das insígnias partidárias (e futebolísticas). Fica uma sensação de lugar, como outros carregado de histórias, este um tanto à margem da narrativa política estatal. Sensação essa sublimada pela cuidada sonoplastia, na quietude como nos ritmos musicais que ali coabitam – dos cânticos kyangyang e pentecostais à broska e ao reggae, do funk ao hip-hop contemporâneo.