Hugo Vieira da Silva adapta Conrad para o século XIX angolano

O realizador Hugo Vieira da Silva questiona os “mal-entendidos” na relação entre angolanos e portugueses no século XIX no seu novo filme, Posto Avançado do Progresso.

Filmada na floresta da província do Zaire, esta adaptação da obra homónima de Joseph Conrad conta a história de dois comerciantes portugueses que vão coordenar um posto de marfim junto ao rio Congo.

Os portugueses Nuno Lopes e Ivo Alexandre são os protagonistas, ao lado do angolano David Caracol, cuja interpretação de Makola lhe valeu o prémio de representação do Festival de Cinema de Las Palmas.

Depois de Body Rice e Swans, longas-metragens com cenários europeus, como surgiu a ideia de filmar numa floresta angolana?

A relação portuguesa com África é algo de profundo e constitutivo. Essa ligação interessa-me desde há muito tempo. Vivemos em sociedades pós-coloniais, tanto em Portugal como Angola, e para mim era importante ir a Angola e repensar os fundamentos do colonialismo. Acho que são questões urgentes que de alguma forma foram esquecidas em Portugal durante as últimas décadas. No fundo, trata-se de pensar um pouco como chegamos a este “mundo” que temos e a partir daqui poder perspectivar qual o “mundo” que desejamos para o futuro. 

Quais foram os desafios para filmar junto ao rio Congo? Teve apoios?

Tivemos o apoio financeiro do ICA (Instituto do Cinema Português) e do Governo Provincial do Zaire. Claro que isto por si só não seria suficiente. O filme foi também possível graças ao empenho do meu produtor, o Paulo Branco, e da forte motivação da equipa técnica mista portuguesa-angolana-argentina. Naturalmente filmar nas províncias tem as suas limitações pela falta de meios técnicos. É preciso improvisar com quase tudo. Provavelmente o mais complicado foi encontrar o local adequado para trabalhar, uma vez que estamos a falar de uma equipa de cinema com vinte e tal pessoas e queríamos definitivamente filmar em plena floresta sub-tropical. Havia permanentes preocupações de segurança, sobretudo nas filmagens nocturnas por causa de animais ou de zonas minadas. No entanto, tudo acabou por correr bem. A aceitação da população local foi muito boa, por vezes até emocionante. Integramos várias pessoas angolanas e congolesas como actores no filme, alguns com papéis secundários muito fortes, para além naturalmente do David Caracol que é um dos actores principais.

Quanto tempo esteve em Angola?

No total, entre a pesquisa e a rodagem, talvez uns cinco meses.

Cena de 'Posto Avançado do Progresso' [DR]Cena de 'Posto Avançado do Progresso' [DR]

O filme está limitado ao posto de comércio e à floresta. Por que optou por mostrar essa África fechada?

Há muitas Áfricas e Angola é muito diferente dentro do seu próprio território em termos geográficos e étnicos. No entanto o filme passa-se na região sub-tropical, algures nas margens do rio Zaire, que é uma zona de floresta densa. Tratou-se de retratar o quotidiano de um posto avançado de comércio de marfim no final do século XIX. Na época, estes “postos” existiam às centenas ao longo dos afluentes e braços do rio Zaire. Eram a linha da frente das casas comerciais estabelecidas no litoral. Estavam isolados e a conexão com a casa-mãe fazia-se muitas vezes apenas por via marítima. Toda a acção dramática está centrada na questão do isolamento. Trata-se de um huis-clos favorecido pela geografia e acentuado pelo clima tropical. Entre outras coisas, pretendia-se reflectir como esses factores influenciavam o comportamento dos colonos e a relação com o locais, os muxicongos.

o realizador Hugo Vieira da Silvao realizador Hugo Vieira da SilvaPor ser tão pouco estudado, teve dificuldades para encontrar informações sobre o Reino do Congo?

É possível obter informações sobre o Reino do Congo, embora para tal seja preciso procurar os especialistas e visitar os arquivos. Está tudo um pouco disperso entre vários países. Não existe um livro ou obra decisiva que unifique todo o conhecimento. Existem algumas teses de doutoramento, mas não existe por exemplo grande coisa sobre a cosmologia bantú. Por outro lado se quisermos ter uma outra perspectiva que não a portuguesa, é imperativo consultar alguns sobas, que ainda possuem o conhecimento oral, transmitido pelos seus antepassados. Trata-se de um conhecimento extraordinário ao qual só se pode aceder falando directamente com as pessoas.

O filme mostra a ambiguidade nas relações entre os colonizadores e os colonizados, submissão e amizade. E mostra muitas vezes a ideia antiga de que os sobas respeitavam mais os portugueses do que outros europeus. Este não é também um pensamento de dominadores?

Não é dito em nenhuma parte alguma do filme que os sobas preferem os portugueses. Antes pelo contrário, isso é uma ideia um pouco naif expressa pelas personagens portuguesas, João de Mattos e Sant’Anna, que acham que pelo facto de os locais falarem português isso fá-los preferir os portugueses. E este é precisamente um dos temas fortes do filme: a questão dos “mal-entendidos”. Os muxicongos, que constituem o pessoal do posto, até têm uma atitude muito distanciada dos portugueses, assim como o Makola, o gerente angolano. O soba tem uma visão mais ou menos idealizada dos portugueses, não sabemos bem se talvez até por beneficiar do negócio do marfim ou por pura convicção pessoal, mas rapidamente se desilude com os portugueses e ordena que estes não se aproximem mais da aldeia.

No site de Posto Avançado do Progresso refere numa entrevista que a sua primeira visão era de um filme intemporal que dialogava com o presente. O que o levou a mudar de estratégia e centrar a história no século XIX?

A história escrita por Conrad e adaptada livremente por mim passa-se em finais do século XIX. Era a época que mais me interessava porque se trata do momento do estabelecimento das fundações do capitalismo global. É a altura em que os poderes coloniais começam a “trocar” o escravo pelo agente consumidor (igualmente submisso). Não será difícil fazer uma série de ligações entre este tempo e o presente. Hoje, em 2016, agentes consumidores somos nós todos, já não se trata (mas talvez o colonialismo nunca tenha sido fundamentalmente isso) de uma questão racial entre brancos e negros, mas sim de dinâmicas de poder capitalistas. Neste aspecto, o conto é seminal, sobretudo na forma em como o grande “mal-entendido” entre angolanos e portugueses sobre a venda dos trabalhadores do posto (uma questão económica) se torna o motor da narrativa e o eixo da discórdia. Existem também outras questões que podemos ligar ao presente mas deixo aos espectadores o convite para o fazer…

'Há um medo profundo do isolamento que os faz reagir de forma um pouco agressiva''Há um medo profundo do isolamento que os faz reagir de forma um pouco agressiva'

Ao adaptar o texto de Joseph Conrad teve receio de ser comparado a outros realizadores que fizeram o mesmo com outros textos do mesmo autor?

Não, porque o texto Posto Avançado do Progresso tem qualidades muito diferentes das histórias de Joseph Conrad que já foram adaptadas. No Posto Avançado do Progresso a floresta é um pequeno palco onde os mal-entendidos e a ambiguidade da relação colonial se encena num jogo de esconde-esconde, de permanentes equívocos quase burlescos e onde as personagens africanas ganham finalmente subjectividade, notoriamente a personagem do Makola, ao contrário por exemplo do Coração das Trevas, que, apesar de denunciar o colonialismo, descreve o Congo como uma espécie de espaço mítico, selvagem, insalubre e terrível e pouco investe na subjectividade dos locais. Por outro lado, simplesmente não penso nisso, é a minha adaptação, pessoal, única e subjectiva.

Sant’Anna e João de Mattos primeiro parecem típicos exploradores, que querem sentar e esperar que lhes tragam os produtos, sonham com construções, mas depois deparam-se com questões morais. Como explica essa mudança de atitude?

Em primeiro lugar eles não são exploradores de todo. São os típicos comerciantes da época. Em segundo lugar tenho dúvidas que eles se deparem com grandes questões morais. Há sobretudo a questão do desespero por sentirem que estão nas mãos do Makola, que são impotentes perante a floresta, os muxicongos, o soba e quase tudo. Há um medo profundo do isolamento que os faz reagir de forma um pouco agressiva. Naturalmente havia afectividade entre o Sant’Anna e alguns trabalhadores e por outro lado também estão em jogo questões culturais. Talvez para o Makola essa venda não signifique o mesmo que para os dois comerciantes. Acho que é complexo, e assim quis manter a questão.

Makola é a personagem que é corrompida pela ambição dos comerciantes brancos e aprende a trabalhar de forma isolada. O que ele representa no final do Reino do Congo?

O Makola é duplo: por um lado é uma espécie de funcionário do colonialismo, por outro é um angolano. Está entre dois mundos. Ele usa as armas do colonialismo para seu próprio proveito através de uma espécie de processo mimético, imitando o colono. Desta forma faz uma sabotagem do esquema colonial mas também o reproduz. Penso que em 2016 não é mais possível fazer filmes sobre o colonialismo prosseguindo uma espécie de visão romantizada que insiste em dividir o mundo entre exploradores e explorados. A realidade é uma coisa bem mais ambígua, sem prejuízo do péssimo que são as relações do tipo colonial e das distorções que introduzem nas relações humanas. Interessa-me explorar essa zona cinzenta das pessoas. Por exemplo, todos sabemos que a prática da escravatura, embora globalizada, estimulada e praticada fortemente pelos portugueses, era uma prática comum entre reinos e potentados africanos. Não se pode esquecer que a escravatura foi um negócio que não beneficiou só os portugueses como também africanos. Há que perspectivar as coisas. Por outro lado, no final há um gesto fundamental do Makola que o humaniza profundamente, mas que também é decisivo para a noção de que apesar da presença colonial há uma resistência angolana que manteve muitas vezes o poder nas suas mãos. Não vou dizer qual é o gesto para não estragar a visão do filme

Vemos também o misticismo das religiões africanas, com rituais e fantasmas de figuras históricas. Foi um recurso para abordar a loucura das personagens portuguesas?

A compreensão da cosmologia bantú é algo a que os portugueses não podiam aceder. O filme reflecte muito sobre a impossibilidade de tradução das culturas. Diria que a loucura das minhas personagens é gerada pela impossibilidade de compreensão do outro. Esses delírios são também os delírios provocados pela amnésia portuguesa auto-infligida, amnésia da inquisição nos trópicos, da escravatura, da violência sobre o outro.

Por outro lado o que os congoleses no século XVI entenderam da religião católica foi também um “mal-entendido”. No entanto o confronto cultural pode ser produtivo. Dá origem aos sincretismos. Digamos que os “mal-entendidos” neste sentido são produtivos. Agora o choque cultural, sendo produtivo é sempre doloroso, sobretudo quando acontece em contextos de domínio cultural.

Pode falar sobre a utilização do leopard man a meio do filme?

Os lendários homens-leopardo existiram de facto em várias zonas de África, incluindo no Congo. Eram uma espécie de justiceiros, uma “polícia” congolesa, impondo regras e leis próprias em pleno sistema colonial, por isso, podem e devem ser vistos sob uma perspectiva anti-colonial e de emancipação dos povos congoleses. Era uma forma de as comunidades se auto-regularem, instaurando um sistema coercivo próprio. Eram figuras desconhecidas que atacavam e desapareciam rapidamente. As pessoas acreditavam ser um animal/homem que impunha a justiça. No filme há a sugestão de que o grupo de caçadores possa estar ligado a este movimento, mas não há conclusões seguras. Tudo se dilui numa zona nebulosa entre sonho e realidade…

Durante esse período de gravações no Soyo, teve novas ideias? Haverá outros filmes?

Sim, preparo um novo projecto em volta de questões coloniais, penso que não será em Angola, mas está muito relacionado com alguns tópicos desenvolvidos neste filme. Em todo o caso tenho a maior vontade de voltar a Angola em breve.

Entrevista publicada originalmente no Rede Angola, em 2016. 

por Amarílis Borges
Afroscreen | 10 Agosto 2021 | angola, colonialismo, Congo, História, Joseph Conrad, Lunda, marfim, Portugal, Posto Avançado do Progresso, Reino do Congo, Soyo, Zaire