O cinema na África francófona subsariana: da “mostra” à narrativa contemporânea
O cinema documental em África segue provavelmente o mesmo percurso que o da literatura. As formas e os meios de expressão são naturalmente diferentes, mas o discurso sobre África é o mesmo, evoluindo com a sua história: nos anos vinte, a reportagem colonial e os filmes etnográficos já eram um sucesso. A África e os africanos são os assuntos filmados.
Quando, a partir de 1955, estes se tornaram actores das suas próprias imagens, o desejo de fazer filmes é inicialmente e acima de tudo justificado pelo desejo de reabilitar a imagem dos africanos. Tal como para o movimento da Negritude em literatura em meados do século passado, a passagem dos cineastas africanos para trás das câmaras provinha essencialmente de um desejo de reconhecer os valores e a identidade africana.
Pierre PERRAULT, cineasta canadiano afirmava no mesmo sentido: “Começámos a existir quando deixámos de olhar para nós através do olhar do vizinho”. “Mostra”, demonstração e narrativa contemporânea ou discurso no presente, ritmam os testemunhos sobre a História da África. Antes de abordar as diferentes partes da nossa exposição, detenhamo-nos um instante sobre o que se deve designar por “cinema africano”.
Muitas vezes, a África é considerada como uma unidade, um país. Hoje, falar-se-ia com a mesma facilidade (na mesma escala de valor) do cinema português e africano (em termos de identificação territorial). É verdade que Portugal sozinho produz tantos filmes por ano como a África toda. Mas reduzir um continente à escala de um país desagrada a vários cineastas que fazem questão de falar “ das Áfricas” múltiplas e singulares. Assim, podemos falar da África do Norte ou do Magrebe, da África Ocidental, da África francófona, lusófona ou anglófona.
Algumas definições do cinema africano
a) – Corpus de filmes realizados em África por residentes africanos.
b) – Corpus de filmes realizados sobre África e os africanos (independentemente da origem do realizador)
c) - Corpus de filmes realizados por africanos sem distinção do assunto e do lugar de rodagem.
É tomando como base a consideração destes três tipos de cinema africano que nós vamos ver como, desde a sua origem até hoje, evoluiu o discurso deste jovem cinema na parte subsariana e francófona do continente africano.
I) A MOSTRA
Definiria a “mostra” como a apresentação intuitiva baseada na interpretação ou na leitura que se faz do objecto a apresentar. Ela implica a ideia de descoberta e de novidade.
A “ mostra” no cinema em África foi celebrada pelo feito colonial. À medida que os exploradores como Savorgnan de Brazza, Diego Cao, Livingstone e outros descobriam novos espaços do continente negro, o mundo descobria imagens de homens quase sempre classificados com os nomes de “selvagens, bárbaros, primitivos, indígenas…”.
O cinema colonial e etnográfico conheceu uma verdadeira expansão nos anos de 1920. O negro e as suas paisagens exóticas são assuntos filmados para alimentar as imagens dos cinemas e das televisões europeias. Os seus usos são dissecados pela imagem para se testemunhar o poder civilizador do colonizador, determinado em demonstrar e negar as ancestrais civilizações africanas.
No seu filme “Les statues meurent aussi” (as estátuas também morrem), Chris Marker evoca já a pilhagem da África pelos ocidentais e dá o sinal de alarme para as ameaças de extinção de uma civilização várias vezes milenar.
Em 1950, René Vautier, jovem realizador francês, na altura com 20 anos, assina o primeiro filme anti-colonialista “Áfrique 50” (África 50). Neste filme, ele denuncia o contra-discurso e a barbárie do poder colonial. Nota-se, neste filme, que o negro apresentado, é defendido e evocado com mais humanidade.
Jean Rouch, considerado como o mestre do documentário etnográfico francês, irá mesmo mais longe. Ele deixará ao negro a possibilidade de se contar, nomeadamente com o filme “Moi, un noir” (Eu, um negro).
O negro, assunto filmado, depressa se torna narrador da sua própria história e actor das suas imagens. A necessidade de restabelecer o olhar sobre África e os africanos por eles próprios torna-se, pois, indispensável.
Soleymane Cissé, realizador maliano, a propósito disto declarava no documentário de Rithy Panh “Soleymane Cissé”: Filmaram-nos como animais… Eu faço cinema porque quero filmar-nos como seres humanos”.
II) A NARRATIVA CONTEMPORÂNEA
Em 1955, Paulin S. VEYRA e Mamadou SARR, dois senegaleses realizam em Paris “Afrique sur Seine” (África sobre o Sena). Neste filme, eles evocam a condição dos estudantes africanos em França, e o mundo descobre as primeiras imagens feitas por africanos.
No continente negro, é Sembène OUSMANE (um outro senegalês muitas vezes apresentado como o primeiro cineasta africano) que assina Borom Sareth (bonhomme charrette ou l’homme à la charrette) [o indivíduo carroça ou o homem à carroça]. Na sua ficção, Sembène OUSMANE trata o problema colonial.
“Um dia, África terá uma palavra a dizer, um dia, África escreverá a sua própria história.”, declarava Patrice Lumumba, Primeiro ministro e grande figura da independência do Congo-Kinshasa, assassinado em Janeiro de 1961. Estas palavras reflectem a vontade que leva os africanos a tomarem doravante um lugar atrás da câmara porque se trata acima de tudo de dizerem a sua palavra. Um discurso contra o poder colonial (com a primeira geração de cineastas africanos como Sembène Ousmane do Senegal ou Med Hondo da Mauritânia) ou um discurso sobre os regimes autoritários que se seguiram às independências (com a segunda geração de cineastas como Souleymane Cissé).
Claude Chabrol, relizador francês, afirmava: “existem dois tipos de cineastas: os contadores e os poetas”. Podemos imediatamente associar a imagem iconoclasta do contador aos cineastas africanos a quem se reprova com muita frequência o lado linear da sua narrativa. Hoje, a revolução digital e a acessibilidade à formação permitem produções com uma fibra artística cada vez mais acentuada.
Este impulso “poético” da narrativa explorado muito antes por Djibril Diop Mambety (em ficção) ou Samba Félix Ndiaye (considerado o pai do documentário africano) tornou-se rapidamente “o terreno de jogo” dos cineastas como: Abderrahmane Sissako, Haroun Mahamat Saleh e muitos outros.
Conclusão
Mais de 50 anos após o seu nascimento, o cinema africano ainda é mal conhecido. É verdade que menos que nos anos 30. A sua dependência financeira do Norte, as questões da censura e da auto-censura (muitas vezes mais severa que a censura) obrigam-no a contar-se no passado. A África urbana e contemporânea é ocultada e deixada ao cuidado dos estrangeiros.
É apenas há cerca de dez anos que se assiste à emergência de uma produção africana que associa “conto” (narração) e poesia para se contar no presente.
Podemos citar de forma arbitrária alguns filmes como « Bamako » d’ Abderrahmane Sissako [Mali/Mauritânia], « Conte cruelle de la guerre » (Conto cruel da guerra) de Karim Miské et Ibéa Atondi [Congo], « Un homme qui crie » (Um homem que grita) de Haroun Mahamat Saleh [Tchad], « Une affaire de nègre » (Um problema de negro) de Oswald Lewat [Camarões], « Un pas en avant les dessous de la corruption » (Um passo em frente nos bastidores da corrupção) de Sylvestre Amoussou [Benin], « Rwanda pour mémoire » (Rwanda para memória) de Samba Félix Ndiaye [Senegal]…
Comunicação no Porto, março 2011