Um mundo que não tenha nada daquilo que está representado no filme, entrevista com Welket Bungué
’Arriaga’ de Welket Bungué estreou no IndieLisboa - 16.º Festival Internacional de Cinema a 4 de Maio no Cinema São Jorge, o filme esteve na Competição Nacional de Curtas-Metragens e recentemente foi anunciado a sua nomeação como finalista ao Prémio António Loja Neves a decorrer em setembro deste ano.
‘ARRIAGA’ é o novo filme de Welket Bungué, depois de BASTIEN o realizador continua a explorar o universo expandido gerado num bairro ficcional onde o filme explora as virtudes da diáspora africana que transita nas áreas limítrofes de Lisboa. Com Gio Lourenço, Isabél Martins Zuaa Mutange Cleo Tavares Mauro Hermínio Paulo Pascoal Nádia Yracema Miguel Valle, Bruno Mateus e Michael Sani. A produção está a cargo da Arranca Produções e KUSSA. Em 2018 o realizador e argumentista Welket Bungué lançou a websérie #VãAlma, série de 4 episódios na qual apresenta as personagen e o bairro onde se desenvolve a estória de ‘Arriaga’, eis uma boa dica para quem quiser saber os motivos que levam a nossa personagem principal a pretender uma vida de riscos.
Quem é Arriaga?
Arriaga é filho de imigrantes, nascido em Portugal, de classe média emergente. É um jovem com condições a quem é proporcionada uma perspectiva diferenciada face às possibilidades de escolha. Faz parte de uma geração de afrodescendentes com grande necessidade de afirmação. Arriaga procura um lugar próprio onde se possa expressar, fazer-se ouvir e criar sentido naquilo que acredita ser e também aquilo que pode alcançar, tendo em conta os seus saberes que absorveu da sociedade que o circunda. O bairro fictício de Nossa Senhora é onde ele convive com os seus pares, com os quais não consegue dialogar e acaba por agir de forma imprudente para poder ser aceite, para que possa ser reconhecido como indivíduo pertencente àquele microestado.
Que tipo de perguntas tentas responder com a personagem principal?
Não sei, mas sei as questões que sinto necessárias nesta altura em que as políticas sociais em Portugal estão fragilizadas por conta do comportamento de algumas instituições dedicadas ao serviço público. Arriaga vem de um bairro que resulta de uma desapropriação, marginalização e exclusão. Não somente em termos geográficos, mas por se situar em zonas limítrofes, não tem acesso aos centros de produção de cultura e arte, dos lugares onde a fala daqueles que as manifestam têm de facto eco na sociedade. Estas são algumas das questões que o filme se propõe a fazer. O que é o Negro não vindo de África, mas sim um afro-europeu? Um Negro nascido em Portugal, mas que ainda assim, segundo os protocolos de cá, não o identificam automaticamente como cidadão português. Algo que é bizarro a meu ver. Essa geração fica, de alguma medida, perdida do ponto de vista da identidade porque são permanentemente vistos como estrangeiros. Não só pela questão da legalidade da documentação, mas por conta da forma como a estrutura social está desenhada. Saindo das periferias e indo para os centros, esses jovens (indivíduos) sentem-se deslocados por não pertenceram às lógicas do pensamento maioritariamente capitalistas. A intenção de trazer um filme com essa temática é a importância de se criar uma lógica de pensamento determinante para a autoestima do indivíduo afrodescendente. Gostaria que aquelas pessoas que estão na iminência de cometer algum delito, entendessem que há outras maneiras de se autoafirmar, que há um diálogo, não só consigo mesmos, mas também com as referências que se tem, quer da ascendência, quer de onde se vive. Temos de discutir mais aprofundadamente quais as necessidades de determinados lugares que moldam o pensamento das pessoas que aí vivem. Isso passa também pela afirmação das línguas expressas, como o português rudimentar, que são formas de expressão e manifestação. A lógica epistémica impede esses indivíduos de se pronunciarem da maneira que acreditam ser a sua forma libertadora.
O que é que o filme diz sobre o mundo em que vivemos hoje?
Não sei se pode abarcar uma espécie de síntese a respeito do mundo actual. Pode até sugerir alguma desilusão face à conjuntura actual. O filme fixa-se no crime, na marginalidade e em todas as suas questões do ponto de vista da vontade das personagens. É uma condição bastante distante para a realidade de muitas pessoas, mas foi a forma que encontrei, por meio da acção que se desenrola no filme, para colocar estas personagens em confronto de pensamentos, acções e de realidades.
O que esperas que as pessoas retirem dessa curta-metragem?
Quero que as pessoas se sintam ligadas. Que o realismo ficcional do filme lhes seja credível, que consigam não só ver uma realidade que se pode encaixar em muitos lugares do mundo, mas sobretudo que sintam que se trata de um filme com validade e pertinência. Quero que haja uma construção por parte de quem o vê. É um filme que retrata uma violência altamente mediatizada pela televisão ou o cinema, e com a qual lidamos diariamente, mas que precisa ser dialogado, conversado para se entender a origem dessas atitudes violentas. A nossa passividade, a nossa inatividade face à violência, deve ser atacada principalmente pelos cidadãos conscientes. É um dever de todos. Temos de agir para desconstruir essa lógica de sociedade tendenciosa e preconceituosa. Espero que este filme desperte a consciência de todos nós para que possamos contribuir para um mundo que não tenha nada daquilo que está representado no filme.
O que mais te surprendeu ao fazer o filme?
É um filme que se passa num lugar com uma atmosfera muito própria e cujos actores, apesar de serem afrodescendentes, não fazem parte da realidade nele retratada. Acho que é um grande acto de generosidade, do ponto de vista criativo, esses artistas confiarem na minha proposta e, juntos, contarmos esta história e conseguir levá-la a cabo. Há aqui um grande desejo de fazer com que essas personagens vivam e sobrevivam. Surpreendeu-me a forma como os corpos dos intérpretes transitam no espaço e como eles se apropriaram desse último. Os atores foram bastante credíveis nas suas interpretações e na sua entrega para nos trazer uma possibilidade de confronto entre a realidade idealizada e a realidade concreta que se fundem e geram esta ficção. As realidades fundiram-se a tal ponto que assim que começámos as gravações no Rio de Janeiro, fomos assaltados em Botafogo. Houve um momento engraçado onde tivemos uma segurança privada e armada a vir ter connosco no último dia de gravações porque tinham recebido uma denúncia dizendo que havia alguém a sofrer agressões físicas, quando na realidade tratava-se de uma cena do filme. Um verdadeiro e único momento onde a ficção e a realidade andaram de mãos dadas.
Que barreiras enfrentaste ao começar a rodagem?
Uma das barreiras foi ter novamente o corpo negro no lugar do marginal, decidir construir a personagem Arriaga à volta da delinquência. Foi uma decisão difícil. Difícil por também eu ser Negro. Difícil por estar a entrar no campo do estereótipo. É difícil contornar a necessidade que tenho de escrever para atores negros e nesse caso trata-se de uma faca de dois gumes. Querer dar protagonismo a uma personagem que, do ponto de vista moral, vive na margem de decisões incautas. Em termos de produção, houve alguns empecilhos devido ao roteiro ser bem mais longo e complexo. A produção em si, foi muito mais exigente. Algumas cenas foram cortadas devido a limitações orçamentais e de tempo. A concretização do filme foi, em si, também problemática porque tínhamos os colaboradores espalhados entre Alemanha, Portugal e Brasil. Tive de delegar muitas funções à distância indiciando um lapso entre a comunicação e perca de energia e tempo. No final, acredito profundamente que nos saímos todos muito bem.
Até que ponto o espaço envolvente impactou na performance dos atores?
“Arriaga” foi inspirado no “Drive” de Nicolas Winding Refn, com uma ideia romantizada daquilo que são os filmes de acção americanos. Foi inspirado no “Tropa de Elite” e na “Cidade de Deus”, com alguns resquícios de “La Haine”. Esta curta-metragem foi filmada no bairro Angola onde moro com os meus pais. Um bairro cujas especificidades conheço bem. Para mim foi impactante e ao mesmo tempo um grande contributo dos actores, o facto de estarem deslocados do seu círculo de conforto. Não se tratava de um palco convencional, mas sim de um lugar com características específicas no seu ambiente e nas pessoas com quem ali conviveram.
Como te sentes no dia da estreia de uma obra tua?
Já há relativamente 15 anos que faço isso. Comecei no teatro. É sempre muito diferente, mas o que há em comum é uma excitação a cada estreia. Cada uma é mais um passo para dar a conhecer o nosso trabalho ao grande público, às pessoas que valorizam e atribuem crédito, validade e pertinência ao trabalho que fazemos quer como autores ou intérpretes. São esses os momentos que, quer o público goste ou não,, determinam o nosso amadurecimento artístico e é sempre construtiva a relação com a experiência.
Websérie ‘Vã Alma’ (Prod. KUSSA Productions)