À conversa com Joel Zito Araújo - posicionamento, estéticas e cinematografias.
Joel Zito Araújo é cineasta mineiro, ou baianeiro (como prefere se denominar, por ter nascido na fronteira entre os estados de Minas Gerais e Bahia). É realizador de obras sobre a questão das africanidades no Brasil. Seus filmes receberam os prêmios de maior relevância do cinema brasileiro: A Negação do Brasil (2001) recebeu prêmio de melhor filme no Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade/It’s all true e de melhor roteiro no Festival de Recife em 2001; o ficcional As Filhas do Vento (2005) recebeu 8 kikitos no Festival de Gramado; e o documentário Cinderelas, lobos e um príncipe encantado (2009) recebeu, pela votação do público, prêmios de melhor filme e melhor diretor na 9ª edição do Festival Iberoamericano de Cinema de Sergipe. Joel Zito é também pesquisador, doutor em Ciências da comunicação pela Escola de Comunicações e Arte da Universidade de São Paulo – ECA/USP, Brasil e pós-doutor pelo departamento de rádio, TV e cinema e pelo departamento de antropologia da University of Texas, em Austin, nos Estados Unidos, tendo publicado os livros A Negação do Brasil – o negro na telenovela brasileira (2001), e O negro na TV pública (2010).
Por um lado, seus trabalhos possuem um forte cunho político, em favor de desconstruir a imagem eurocêntrica que a mídia brasileira insiste em construir. Por outro, a temática da afirmação de uma identidade diaspórica dos afrodescendentes é uma constante em suas obras, que contribuem para alicerçar um fenômeno social em expansão: a promoção de ações pelo reconhecimento da diversidade étnica nas culturas dos países latino-americanos, bem como o respeito às suas manifestações. Atualmente ele desenvolve projetos educativos e fílmicos com Angola e Cabo Verde. E produz uma série televisiva chamada “Nas trilhas da afro-diáspora” em parceria com a antropóloga norte-americana Sheila Walker, uma expert no assunto, reconhecida internacionalmente.
Na entrevista a seguir, comenta sua estética, seu posicionamento político e correlaciona o universo acadêmico e o cinematográfico em suas experiências.
De que maneira, ou maneiras, a experiência da investigação acadêmica (você é Doutor em Comunicação pela ECA/USP) se relaciona com as suas atividades de cineasta e roteirista?
O desejo de fazer cinema chegou primeiro na minha vida. Os filmes de cineastas como Frederico Fellini, Michelangelo Antonioni e François Traffaut (entre outros nessa linha autoral) abriram essa janela no meu horizonte, no final da minha adolescência. Na faculdade, começando na psicologia, mas desde aí me encantando pela Antropologia e Ciências Sociais. Eu comecei a me interessar pela investigação. Mas, acabei entrando no cinema pela porta mais investigativa, pelo documentário. Na realidade, a maior diferença entre a investigação acadêmica e o documentário (do jeito que faço) é que um necessita de uma câmera como instrumento principal de trabalho. Portanto, somente o cinema ficcional é que demanda uma atitude diferente. Mas, mesmo assim, me sinto permanentemente investigando para a ficção, quando nos lugares públicos e privados, eu observo as pessoas e escuto conversas alheias, como potenciais personagens ou potenciais diálogos e atitudes para futuros filmes.
Na sequência formada pelas obras A negação do Brasil (2000), As filhas do vento (2005) e De Cinderelas, Lobos e um príncipe encantado (2009), vislumbramos, entre outros aspectos, a abordagem de temas relacionados às interpretações que a sociedade brasileira estabeleceu do sujeito negro e de suas práticas culturais. Esse conjunto de obras nos permite falar da existência de um projeto estético e ideológico articulado pelo criador Joel Zito Araújo?
Totalmente. Uma estética e dramaturgia negras são partes do meu grande objeto. Eu gostaria de evoluir para uma postura menos ideológica, menos comprometida com as bandeiras dos “companheiros de viagem do movimento negro”. Mas ainda sou muito atento às suas queixas e demandas. E elas tendem a refletir ou encontrar acolhida especialmente no meu cinema documental. Mas os meus próximos projetos ficcionais estão mais soltos, longe de pautas ou temas do momento. Na realidade, nunca me inspirei em pauta de ninguém, mas acabei as trazendo para os meus filmes sem nenhuma intenção inicial, sem nenhum planejamento.
O que seriam pautas ou temas do momento?
As decisões tomadas em Congressos, em reuniões da liderança. Os temas que são consensuais e tornam-se campanhas públicas. Exemplo, a luta com a esterilização de mulheres negras. Mas tenho um projeto estético de criar cada vez mais histórias que estejam, de alguma forma, ligadas à história e à cultura afrodescendente, e à estética e à dramaturgia que se escondem na mitologia dos orixás. Acho que temos um universo rico, pouco trabalhado no cinema brasileiro. Por outro lado, considero que a cultura brasileira traz, dentro de si, especialmente no seu comportamento afetivo e sexual uma enorme herança africana e indígena. Ou se vive da influência ou se vive da recusa, mas consciente ou inconscientemente estamos sempre relacionados a essa herança. Trazer isso para os filmes é uma tarefa que considero fascinante.
O governo brasileiro tem estimulado o estreitamento da relação entre Brasil e África, especialmente com países africanos de língua portuguesa. Como um representante da ABRACI (Associação Brasileira de Cinema) no Rio de Janeiro, você acha que já é possível avaliar esses laços e seus desdobramentos na cinematografia? Isto é, tem havido trocas de nível técnico, intelectual e é possível vislumbrar co-produções?
As minhas avaliações sobre as relações Brasil e África na cinematografia estão mais relacionadas com o meu interesse pela negritude, com a valorização de nossas raízes africanas, que são parte de minha obra, do que com os meus cargos e participação na ABRACI. De um modo geral, os nossos cineastas foram formados pela ideologia, segundo a qual somos uma democracia racial, e pelos subtextos que ela traz, especialmente a idéia que já “superamos” o passado “primitivo” africano, pois somos um povo novo e miscigenado (em direção ao ocidente, ao branqueamento). Portanto, vejo pouco interesse entre meus pares pela África. Com exceção do passado recente, nas lutas pela independência, anti-colonialistas, de Angola, Moçambique, Guiné-Bissau e de Cabo Verde. Houve várias cineastas que foram para lá e filmaram momentos importantes dessa luta. Mas, entendo que esse interesse veio de uma coincidência entre uma plataforma da esquerda mundial com as lutas independentistas. Infelizmente, Karl Marx e Engels, em grande parte de sua obra comum, foram preconceituosos com os povos dito primitivos, atrasados. Eles chegaram a defender a escravidão nos Estados Unidos como uma etapa necessária para o avanço da história em direção ao socialismo. Eles ignoraram as revoltas negras no seu tempo, no Brasil e no Haiti. As consequências desse tipo de pensamento foi provocar o desinteresse da maioria dos nossos historiadores, sociólogos e artistas, com formação de esquerda, pela África, pela população indígena brasileira, pela Amazônia (antes da onda ecológica). Portanto, depois da fase de ajuda aos grupos de esquerda que lideraram a independência, as trocas recomeçaram recentemente, e eu sou um dos poucos que apostam nisso, que se esforça por intercâmbios técnicos para reafirmar nossos laços de herança. A exemplo do curso de especialização em cinema que estou montando com o cineasta e artista plástico cabo-verdiano, Leão Lopes, para começar no segundo semestre deste ano em Mindelo, capital da ilha de São Vicente. As co-produções também estão em curso, e participo deste interesse em realizar filmes na África ou com africanos, em várias frentes, desde 2005.
Pode-se dizer que as críticas à sociedade brasileira, implícitas na análise da exclusão dos afrodescendentes da teledramaturgia (vide o documentário A negação do Brasil), fundamentam o seu modo de selecionar e dirigir os seus filmes?
Elas influenciaram muito diretamente em As filhas do vento, mas não sei o quanto elas estão influenciando os novos projetos. Mas, a questão básica que está no filme e livro A negação do Brasil com certeza sempre fundamentará os meus trabalhos. Ou seja, é um paradigma para o presente e para o futuro, dar visibilidade para a nossa diversidade racial e desconstruir a ideologia do branqueamento. E isso é feito na atitude simples de valorizar o personagem negro como um brasileiro comum, e não como estereótipo de si mesmo.
O documentário A negação do Brasil contribuiu de maneira efetiva para análise de alguns temas tabus da teledramaturgia brasileira, especialmente o tema da subalternidade dos personagens afrodescendentes. Como você avalia o modo de representação desses personagens, levando em conta as novelas brasileiras da última década?
As novelas estão evoluindo para a incorporação do ator negro em personagens fora das marcas da subalternidade. É uma postura conflituosa, uma vez que os autores e diretores não querem admitir publicamente que estão dando o “braço a torcer”, e eles (ou seus antecedentes) por quase quarenta anos trataram o negro como um ser subalterno, nascido para servir, para representar a feiúra, a inferioridade social e humana. A cada passo positivo que eles dão como, por exemplo, ao criar uma Helena negra, fazem questão de reiterar publicamente, em suas afirmativas para a imprensa que não consideraram a raça da atriz, mas o seu talento, na hora de definir quem seria a escolhida para o papel. Como se Ruth de Souza, Léa Garcia, Zezé Motta e Milton Gonçalves não fossem desde jovens os atores super-talentosos que conhecemos. E, nem por isso, foram escalados para serem protagonistas de qualquer novela ou minissérie.
Considerando a sua atuação nos debates sobre as relações étnico-sociais no Brasil e a repercussão de sua obra junto a uma parcela expressiva de afrodescendentes, de que modo você articula a sua autonomia autoral com a possibilidade de tornar-se o representante de uma coletividade étnica e socialmente reconhecida, ou seja, os afrodescendentes?
Eu nunca tive o desejo de ser representante dos afrodescendentes. Sempre fui um companheiro de viagem. Abraço qualquer causa que me pareça justa e, por razões midiáticas, só aparece o que falo sobre a questão racial. Mas dou minha opinião como cidadão contra aquilo que condeno e que julgo necessitar da atenção pública ou de uma opinião pública favorável. Uso a simpatia e respeito que o público tem pelo meu trabalho como uma forma de auxiliar os movimentos sociais em causas que considero fundamentais. Eu sou e sempre fui uma pessoa engajada no mundo em que vivo. Reajo a injustiças, estupidez e desinformação. Mas, nunca desejei e nem desejo ser representante político, institucional ou de qualquer outra forma da população afrodescendente. Não sou candidato a nada. Os meus filmes também são cheios de críticas dirigidas para dentro da comunidade negra. Por exemplo, as dificuldades do homem negro em respeitar a mulher negra são temas constantemente tratados no meu trabalho. Portanto, a minha autonomia autoral e intelectual vêm em primeiro lugar.
Em As filhas do vento, embora as luzes não estejam projetadas exclusivamente sobre os temas da afrodescendência (questões de etnia) e da experiência social do feminino (questões de gênero), o fato é que temos um enredo no qual as mulheres negras atuam de maneira destacada. Você poderia nos dizer como conjugou estes elementos durante a montagem do filme?
Esses elementos começaram a ser conjugados desde a concepção do filme. Na realidade, eles nasceram de uma convivência muito rica e afetiva com as atrizes que deram os seus depoimentos para A negação do Brasil. Especialmente Ruth de Souza, Léa Garcia e Maria Ceiça. As histórias que ouvi articularam-se com a história da minha mãe (que é um outro elemento de inspiração no filme). A minha mãe está em Ju, e um pouco também na Selminha. Mas, creio que, na montagem, esse processo pesou pouco. Os momentos fundamentais foram no desenvolvimento do argumento e do roteiro, e no trabalho de preparação dos atores. Quando ouvi os diálogos na boca dos atores compreendi melhor os nossos personagens e produzi várias mudanças no texto, e até mesmo no final da história.
Então filhas teria outro desfecho. Qual teria sido?
No tratamento de roteiro que antecedeu a preparação dos atores não existia a cena final dentro da igreja, a conversa entre as duas irmãs no mesmo ambiente de abertura do filme. O desfecho dramático acontecia naquela noite chuvosa dentro da casa do pai. Elas diziam todas as verdades e ressentimentos que guardavam por décadas e, depois de cansadas de tanta briga, Ju tomava a iniciativa de reconciliar chamando a Cida para brincar na água da chuva, da mesma forma que chamou para brincar na lagoa no início do filme. Seria uma passagem mais mágica, mais romântica. Essa cena aparece depois de começar a subir os créditos. No entanto, sentimos que a discussão era muito desgastante, que não dava clima para recomposição. Sentimos que o filme perderia muito se tentássemos introduzir a cena da água bruscamente depois de uma briga muito dura. Esse tipo de briga entre irmãs é como briga de casal, depois da tempestade existe uma pausa, e somente depois surge um momento de conversa tranquila. Ou seja, demanda-se um certo tempo. E é aí que existe a possibilidade do casal ser sensato, e cada um assumir seus erros. Daí foi que decidimos também que o acerto de contas não deveria ser entre todas as mulheres, mas somente entre as duas, e na igreja. Ali, no mesmo ambiente do primeiro reencontro, cena inicial do filme, elas teriam a chance de fazer uma tentativa final de reconciliação, numa conversa sensata, justa. E elas não iriam mais uma vez perder a oportunidade de redenção.
E por que naquela igreja? Algum outro motivo, além de ter sido o local do reencontro?
A igreja é um lugar altamente simbólico para o contexto racial do filme. Em “Filhas” falo especialmente de uma espécie distinta de grupo étnico negro do Brasil, diferente de Salvador e Rio, os negros mineiros têm seu comportamento baseado no afro-catolicismo. Essa devoção aos santos católicos, especialmente aos santos negros, e o sufocamento sobre a origem e os mitos dos orixás marcaram Minas Gerais e os negros mineiros. Portanto, a igreja é mais que um cenário, ou um retorno que o filme dá em seu final para o seu ponto de partida, é um fechar a estória em um mesmo espaço cultural e religioso que define grande parte dos seus conflitos.
Nota-se um jogo do que é ficção e fato nAs filhas. Poderia comentar o significado desse jogo?
O filme está cheio de fatos misturados ao ficcional. A ladainha inicial cantada na igreja é uma tradição da comunidade para os seus mortos, que ao tomar conhecimento, incorporei rapidamente no filme. Aliás, abre o filme. Existe uma placa de estrada, que vemos na encruzilhada quando Cida está retornando à sua cidade natal, e dá direções para lugares importantes de minha vida em Minas Gerais, especialmente para a vila que nasci, Lagedão, distante cerca de mil quilômetros das duas outras cidades citadas. Ou seja, Cida retorna para o seu torrão natal, e passa por um ponto que indica que o diretor também tem uma possibilidade de voltar ao seu torrão. Há uma placa de sinalização criada pela direção de arte, a meu pedido. Os poemas de Dorinha aparecem como se fossem parte do livro “Cadernos Negros”, criado por um grupo de poetas e escritores de São Paulo, e grandes amigos, que me convidaram para prefaciar uma de suas edições. Dorinha usa as poesias da amiga Elisa Lucinda como se fossem suas. E, por fim, faço vários jogos com a vida real de Ruth de Souza, usando as fotos de sua carreira nas paredes de sua casa, usando trechos de novelas reais que participou, e que são mostradas como se fossem atuações de sua personagem.
Ruth de Souza e Léa Garcia são nomes emblemáticos da dramaturgia brasileira e, particularmente, daquela vertente relacionada às questões da afrodescendência. A participação que ambas tiveram no TEN – Teatro Experimental do Negro, dirigido por Abdias do Nascimento pertence, hoje, à história do teatro brasileiro e da luta contra a discriminação racial e social. A escolha dessas atrizes como protagonistas do filme, para além de sua competência profissional, tem algum outro significado?
A história da Ruth de Souza foi a mais forte fonte de inspiração do filme. No desenvolvimento do argumento cheguei até mesmo a flertar com a possibilidade de fazer um filme autobiográfico, mas acabei desistindo da idéia. Seria muito difícil trazer histórias de pessoas que estão vivas e continuam se relacionando, e mantendo mágoas e resquícios dos amores do passado. A influência da Léa surgiu depois, ao conhecer melhor as duas e observar como se dava a irmandade e o conflito entre elas. Ruth e Léa são duas mulheres fascinantes e quase totalmente diferentes. Elas trocam telefonemas toda semana. Compartilham o mundo e discutem muito entre si, em decorrência de suas diferenças de personalidade. São irmãs de alma e meio antíteses entre si. E, na intimidade que passei a ter com elas, desde que ficaram encantadas com o meu filme e livro A Negação do Brasil, eu pude observar a Cida e a Ju escondidas dentro delas. Digamos que o meu trabalho foi revelar isso.
Se em Ruth de Souza e Léa Garcia temos o reconhecimento da consagração de uma geração de atrizes negras pioneiras, o que se pode considerar a partir do protagonismo de atrizes mais jovens como Taís Araújo, Thalma de Freitas e Daniele Ornellas?
Essas três da nova geração participam de um mundo diferente daquele que Ruth e Léa viveram em suas juventudes. Hoje o Brasil discute a questão racial, diferente da juventude delas, quando o mito de que éramos uma democracia racial e que, portanto, não existia o problema racial era muito mais forte e sufocava tudo. Era uma barreira que negou muitas possibilidades para elas. Taís, Thalma e Daniele vivem em um mundo com barreiras bem menores.
Em As filhas do vento, a passagem do tempo é simbolizada pela inserção de duas novas personagens Dorinha (Danielle Ornella) e Selminha (Maria Ceiça), seguidas das personagens Ju (Léa Garcia) e Cida (Ruth de Souza) em fase adulta. Você poderia comentar a sua intenção nessa sequência, a ordem de aparecimento das personagens, o uso dos filtros e a sua figuração/conotação sexual?
Nós não usamos filtros na cena dos gozos. Aquilo é resultado do cenário, do figurino e da luz. Mas, a intenção quando elaborei essa sequência foi criar uma situação de impacto que levasse o espectador diretamente para aquelas mulheres negras na plenitude de suas vidas adultas. E o que podemos ter com mais plenitude nessa altura de nossas vidas? A sexualidade. A cena dos gozos tentava tirar o espectador daquele universo bucólico e reprimido de uma cidadezinha do interior de Minas e levar para um mundo diferente em que aquelas mulheres tornaram-se donas dos seus gozos, de suas sexualidades e tentavam ser donas de suas vidas afetivas. E desfrutavam disso cada uma à sua maneira. E o jeito de gozar já tentava levar para o público os dramas ou o traço da personalidade de cada uma delas: alegria, angústia, solidão e paz. A alegria de Dorinha, a angústia da Selminha, a solidão de Cida e a paz e maturidade sexual do casal Ju e Marquinhos. Foi, propositalmente, uma cena de impacto para jogar do bucólico para o drama no tempo atual daquelas mulheres. Aqui cabe um parêntese, o roteiro foi um trabalho de quatro mãos, com o Di Moretti, mas essa cena foi uma criação minha.
Seu documentário de 2009, Cinderelas, Lobos e um Príncipe Encantado, revela o imaginário coletivo a respeito do desempenho sexual das mulheres brasileiras, especialmente das mulheres negras. De alguma forma, houve a intenção de representar este imaginário também nesta sequência ficcional?
Sim, creio que até no passado recente tínhamos uma diferença marcante entre o imaginário sexual das mulheres negras e das brancas brasileiras. Tomo como exemplo a minha mãe negra e as minhas tias da linhagem paterna, branca. Quando minha mãe se separou no final dos anos 50, ela teve várias relações amorosas e sexuais. E isto era absolutamente natural para ela. Foi feito sem culpas. As minhas tias se separaram no final dos anos sessenta e nunca mais voltaram a ter relações sexuais. Os únicos homens de suas vidas foram os maridos. Elas bloquearam novas possibilidades, correspondendo às expectativas de suas famílias e de seu grupo social/racial. Acho que este exemplo espelha a moralidade “branca” e a diferença com o universo da mulher negra brasileira, que desde o tempo da escravidão foi até mesmo proibida de ter o “seu homem”. O senhor de escravos não apenas se dava ao direito de dispor do corpo das mulheres negras, como definia se elas podiam ter vínculos familiares ou não, ou com quem deviam procriar. A tudo isso se associa o panteão mitológico das religiões dos orixás que, assim como os tipos psicológicos definidos por algumas correntes da psicologia, enxergam as possibilidades de cada ser humano ter comportamentos muito diferenciados um dos outros. Não somos apenas homem ou mulher. Ou homem, mulher e um “terceiro sexo”. Temos uma possibilidade muito grande de constituir tipos psicológicos, sexuais e afetivos extremamente distintos, a partir dos orixás que determinam a nossa cabeça, ou que influenciam nosso destino. Se você é uma filha de Iansã tende a ser uma pessoa direta no que quer, não esconde sentimentos de ninguém. Tende a ser muito mulher, mãezona e sensual, e também a ter períodos ou ciclos de certa ambivalência sexual, de ser mulher em certas horas e meio masculina em outras. Mas se você for ver as características de Oxum encontrará um jeito humano de ser muito distinto de Iansã ou de Nanã. Enfim, quem nasce ou cresce, mesmo que indiretamente, sobre o manto imaginário dos orixás compreende a si mesmo e sua sexualidade de forma muito distinta do imaginário branco cristão europeu. As cenas dos gozos, que faz a passagem do passado para o presente no filme, é uma intenção de representar essas diferenças humanas e, ao mesmo tempo, mostrar a importância da sexualidade para aquelas mulheres.
Nas cenas do velório do pai vemos, em determinado momento, a participação de um Terno de Congada no cortejo fúnebre. Fale-nos sobre o processo de inserção dessa experiência religiosa popular no contexto do filme. Você tinha, ou tem alguma expectativa especial em relação à recepção desse processo?
Eu acredito que, à medida que assumimos nossas raízes, nossas heranças familiares, comunitárias e históricas, tendemos a ser mais seguros e resolvidos. O personagem do Zé das Bicicletas é de um negro correto, mas angustiado com o seu papel de demonstrar o tempo todo que não vai ameaçar as relações raciais, que vai cumprir o que é esperado para ele na sociedade mineira e brasileira. No entanto, suas filhas o fazem pensar. Tem um hiato de tempo que não sabemos o que aconteceu com ele. Mas ele envelhece e torna-se mais doce. E a sua participação na Congada é a experiência que ajuda no processo de ter orgulho de sua negritude. A incorporação daquele ritual típico da Congada no enterro de uma pessoa com uma posição destacada em sua hierarquia tenta passar para o público essa mudança na história do pai. Eu me preocupei também em trazer para a ficção o universo do afrocatolicismo que é a marca da experiência negra diaspórica de Minas Gerais e da região oeste do país. O negro baiano do recôncavo é ligado aos orixás. O negro carioca é ligado também aos orixás e ao panteão mais miscigenado da Umbanda. O cinema ficcional brasileiro nunca prestou atenção ao universo do afrocatolicismo. Com As filhas do vento, tive a chance de trazer um pouquinho dessa percepção para os espectadores.
A inclusão de um texto poético no discurso da personagem, ao final de As filhas do vento, aponta para algo mais que um diálogo entre o seu filme e a tendência politicamente engajada da Literatura Afro-brasileira contemporânea? Por que você selecionou estes poemas para ecoarem na voz da personagem?
Os poetas negros paulistanos, especialmente Arnaldo Xavier, foram importantes na minha formação intelectual. E amo as poesias modernas da Elisa Lucinda, amiga de quase duas décadas. Como já disse, sua poesia está na boca da personagem Dorinha, Elisa me inspirou na criação dessa personagem. Eu até mesmo tentei trazê-la para o filme, mas sua agenda com a Rede Globo não permitiu.
A cena em que Ju aparece salvando as crianças, é uma das partes mais dinâmicas do filme, considerando a música e a movimentação de câmeras. Por não ser um filme blockbuster dá a impressão de que foi algo um pouco difícil de fazer e de montar. Além disso, pareceu extraordinário que uma mulher daquela idade salvasse tantas crianças sozinha. Poderia comentar a construção desta sequência e a opção por inseri-la?
Realmente, o meu filme é um melodrama. Não é um thriller, e não tinha orçamento para ser rodado como um filme de ação que demanda mais câmeras, mais filmagens, mais aparatos, mais dinheiro. Mas a minha inexperiência me fez tentar. O resultado é pobre, é a parte que menos gosto do filme, do ponto de vista da realização. No entanto, a inspiração da cena é uma história familiar muito marcante no meu segmento paterno. A irmã do meu pai, a querida tia Dulce, enfartou e morreu depois de salvar os seus netos do afogamento, assim como Ju faz no filme. Esse drama real surgiu, quando eu tentava criar uma cena que mostrasse as diferenças de personalidade da personagem Ju, no segundo momento do filme. Na primeira parte, o público conheceu uma garota mimada, coquete, meio irresponsável. E eu queria levar o filme para o confronto de duas irmãs, de duas mulheres na terceira idade, que aprenderam com a vida, que se tornaram mulheres interessantes. Uma, mãezona e a outra, uma artista famosa, reconhecida nacionalmente. O seu heroísmo, ao salvar os seus netos do afogamento, teve a intenção de mostrar essa mulher mãezona responsável, comprometida com sua prole e com traços de culpa em relação ao incidente que levou à “expulsão” de sua irmã querida. É por isso que na mesma sequência ela tem aquele diálogo sobre a sua decisão de não casar-se com Marquinhos. A história real caiu, portanto, como uma luva para buscar transformar os sentimentos do espectador em relação àquela jovem coquete do passado.
Entrevista realizada por Sumaya Lima, no Rio de Janeiro, janeiro de 2010.
Publicada em Afro-Hispanic Review, vol 29, nº 2. 2010.