Lugar de mulher é no cinema... uma reflexão sobre a “retomada” no Brasil
Neste artigo, brevemente, aponta-se que há um aumento da presença de mulheres brasileiras cineastas, em comparação a períodos anteriores (Cinema Novo, Cinema Marginal, Cinédia). Além disso, há mais filmes relacionados com temáticas femininas, dirigidos por mulheres e homens. Observa-se um panorama da narrativa ficcional de longa-metragem desses últimos 15 anos, no período conhecido como Retomada (1995-2010). Muito brevemente, comenta-se sobre a retomada e sua relação com o gênero para fazer um panorama da trajetória da presença feminina no cinema brasileiro.
A retomada e o feminino
A busca para reocupar o mercado perdido na era Collor, causou uma corrida a incentivos de leis do audiovisual, direcionando os investimentos não apenas para a produção cinematográfica, mas também para o aparato tecnológico, e salas de exibição, tornando a produção brasileira competitiva em festivais internacionais e tão interessante no Brasil, quanto uma produção estrangeira de qualidade.
A força da retomada nasce nos filmes autorais. Talvez este seja um dos fatores que tenha estimulado um maior protagonismo feminino à frente e atrás das câmeras.
Verifica-se que os filmes autorais do início da retomada evitaram a mistura explosiva: sexo, violência e picardia gratuitas e frequentes em muitos filmes dos anos 70 e 80. Assim, existem claras mudanças no cinema brasileiro.
Retomada e o cinema feminino
Acredita-se que, não por acaso, essas cenas, muitas vezes associadas à reificação da figura feminina, foram reduzidas nessa nova fase do cinema. Ou apenas repaginadas… Se assim for, somente em alguns anos poderemos identificar significativamente as “novas” reificações. Além dessa mudança, é notável que mais atrizes tenham passado a atuar como personagem central nas narrativas.
Qualidade temática
Com pouco esforço de memória, é possível elencar vários exemplos dessas mudanças, isto é, cujo protagonismo é feminino. Aliás, o filme marco do cinema da retomada, Carlota Joaquina (1995), é um bom exemplo.
Tem também Nina (2004); O Quatrilho (1994); Vida de Menina (2005); A Partilha (2001); Amazônia Caruana (2010), A Ostra e o Vento (1998), Casa de Areia (2005); Domésticas, o filme (2001); Uma Vida em Segredo (2002); Amélia (2000); Garotas do ABC (2003); O Céu de Suely (2006); Zuzu Angel (2006); As Filhas do Vento (2005) e mesmo Verônica (2009).
Quantidade de cineastas brasileiras
A quantidade de mulheres cineastas brasileiras cresceu muito desde o século passado até aos anos recentes, mas cresceu principalmente no cinema da retomada. Tracemos um panorama para compreender melhor.
No Brasil, somente em 1930, aparece a primeira diretora: Cléo Verberena, com o filme O mistério do dominó preto. Nos anos 40, surgem os filmes de Gilda Abreu, que fez um dos maiores sucessos da Cinédia com O ébrio (1946), e também dirigiu Um pinguinho de gente (1949) e Coração Materno (1951)
Além de Gilda, houve Carmem Santos, grande defensora do cinema brasileiro, que dirigiu Inconfidência Mineira (1948), mas atuou, produziu e roteirizou vários outros. Nos anos 50, não tivemos nenhuma nova cineasta brasileira, mas duas italianas que produziram aqui: Maria Basaglia com o Pão que o Diabo Amassou (1957), Macumba na Alta (1958); e Carla Civelli com Um Caso de Polícia (1959). Já na década de 60, apenas uma: Zélia Costa com o filme As Testemunhas não Condenam (1962). Logo, nesses primeiros 30 anos de cinema, seis mulheres somente dirigiram 9 longas-metragens (Cf. MARCELINO, 2010; ANCINE, 2010; FILME B, 2010).
Se se fizer um paralelo entre a produção fílmica e o histórico do feminismo no Brasil, para buscar possíveis justificativas a este fenômeno, deve-se considerar tanto o aumento da educação entre o sexo feminino, quanto importantes lutas no campo da política e do direito, que corroboraram para a livre expressão da mulher no Brasil a partir dos anos 30. Dentre essas, o movimento sufragista, liderado por Bertha Lutz, que é um grande exemplo de ativismo feminino organizado. Este, por sua natureza, certamente, incentivou outras frentes de ação e de liderança das mulheres na vida pública e encorajou iniciativas como a direção de um filme.
Não foi por acaso que a década de 60 tenha sido desfavorável para as cineastas brasileiras, tendo apenas uma produção. Se se continuar com o paralelo, vê-se que a grande onda do feminismo (1960) chegou como tímida marola por aqui… Chega num período em que se inicia o arrocho da política ditatorial e um grande número de brasileiros partem para o exílio. Segundo Céli Regina Jardim Pinto (2003), havia entre eles um grande número de mulheres, não só de militantes, mas também de companheiras de homens que atuavam em organizações de esquerda.
Desse modo, ao se imaginar as circunstâncias em que o filme de Zélia Costa foi realizado, vê-se um ato de muita determinação e coragem.
Apesar da repressão, o período dos anos 60 também foi de criação de espaços institucionais de ensino de cinema como a Escola de Cinema da Universidade Católica de Minas Gerais (atual PUC-MG), a UFF, a UnB e a USP (Cf PESSOA, 2010), o que, certamente, favoreceu a formação de profissionais e de ideias que eclodiram nas telas nas décadas de 70 e 80. Logo, a produção de cinema dirigido por mulheres nessas décadas salta para mais outras 24 películas. Algo surpreendente, se comparado às décadas anteriores (9 peliculas).
No entanto, é no cinema da retomada, no período de 1995 a 2008 (em treze anos; portanto, em menos tempo) que esse número quadriplicou, pois 109 longas de ficção e documentários estão relacionados a 69 diretoras, sendo que, destas, 60 são estreantes.
Além disso, o protagonismo feminino de agora é resultante também de uma crescente organização de pessoas em torno da questão: “mulher no cinema”. Inserida no contexto mundial, a retomada tem, direta ou indiretamente, uma influência do movimento feminista mundial e nacional. Nesse contexto, é interessante lembrar a influência de alguns frutos da discussão teórica feminista sobre as contribuições conceituais e polêmicas das obras de Laura Mulvey (texto e filmes) a respeito da representação da mulher no cinema, principalmente o seu artigo Visual Pleasure and Narrative Cinema (1975)1.
No Brasil, nos anos 70 e 80, embora o sujeito feminino fosse, geralmente, representado em papéis secundários e, muitas vezes, desveladamente coisificado, alguns filmes procuraram ser uma exceção: como Feminino Plural (1983) de Vera Figueiredo, A hora da Estrela (1985) de Suzana Amaral, Vera (1986) de Sérgio Toledo ou Romance da Empregada, de Bruno Barreto (1988).
A propósito, é importante ressaltar que, apesar daquela tendência, a figura feminina se sobressaiu no Cinema Novo, por exemplo, de Paulo Cézar Saraceni, com Porto das caixas (1962/3), ou de Leon Hirzchman em A falecida (1965), ou de David Neves, com Memória de Helena (1968/9). E após o Cinema Novo, surge uma figura importante na cinematografia brasileira, a cineasta Ana Carolina, nos anos 70, com uma série de filmes que não só recolocam a figura feminina no centro da narrativa fílmica, como também instauram um olhar diferenciado e uma outra estética.
Ana Carolina estende seu nome no cinema de autoria com a trilogia Mar de Rosas (1977), Das tripas coração (1982) e Sonho de Valsa (1987)2. Os três filmes abordam explicitamente a condição feminina. Lembre-se que, nesta época, os estudos feministas intensificavam as discussões sobre women’s cinema na Inglaterra e nos Estados Unidos, importantes para se pensar a representação da mulher no cinema desde então.
Não se quer dizer com isso que foi a partir do cinema da retomada que se fez filmes no Brasil sobre mulheres e suas questões inerentes. Na verdade, elas se intensificaram. A produção de Ana Carolina, sem dúvida, mostra um precedente riquíssimo, com a sua trilogia.
Todavia não haja uma classificação em que se possa dizer que há um cinema de/para mulheres no Brasil, é notável o aumento de argumentos que abordam claramente o universo feminino atualmente. Filmes que misturam dados não-ficcionais e ficção, colocam papéis femininos no foco da narrativa e concedem espaço para interpretarem, a seu modo, lacunas da História sobre a participação das mulheres na vida social e política, bem como sobre a cultura dos costumes na vida privada. Desde Carlota Joaquina (1995) a Desmundo (2003) de Alain Fresnot, passando por As filhas do vento (2005), de Joel Zito Araújo, e O céu de Suely (2006) de Karim Aïnuoz.
Finalmente, já é possível apontar, talvez, não um novo perfil do cinema brasileiro, mas algumas de suas particularidades que apontam tendências que se consolidarão em um futuro próximo.
Consulta filmográfica:
A falecida (1965) de Leon Hirzchman; A hora da Estrela (1985) de Suzana Amaral; Amazônia Caruana (2010), Tizuka Yamasaki, Amélia (2000), de Ana Carolina; A mulher invisível (2009), de Cláudio Torres; Amy! And Frida Kahlo and Tina Modotti (1983) de Laura Mulvey e Peter Wollen; A Ostra e o Vento (1998), de Waler Lima Jr.; A Partilha (2001) de Daniel Filho; As Filhas do Vento (2005), de Joel Zito Araújo; As Testemunhas não Condenam (1962) de Zélia Costa; Carlota Joaquina (1995), de Carla Camurati; Casa de Areia (2005), de Andrucha Waddington; Cidade Baixa (2005) de Sérgio Machado; Coração Materno (1949/1951) de Gilda de Abreu; Das tripas coração (1982) de Ana Carolina; Desmundo (2003) de Alain Fresnot; Dois filhos de Francisco (2005) de Breno Silveira; Domésticas, o filme (2001), de Fernando Meirelles; Feminismo Plural (1983) de Vera Figueiredo; Garotas do ABC: Aurélia Shwarzenega (2003), de Carlos Reichenbach; Inconfidência (1948) de Carmem Santos; Macumba na Alta (1958) de Maria Basaglia; Mar de Rosas (1977) de Ana Carolina; Memória de Helena (1968/9) de David Neves; Menino da Porteira (2009) de Jeremias Moreira Filho; Meu tio matou um cara (2004) de Jorge Furtado; Nina (2004), de Heitor Dhalia; O Céu de Suely (2006), de Karim Aïnouz; O divã (2009), de José Alvarenga Jr.; O ébrio (1946) de Gilda de Abreu; O mistério do dominó preto (1930) de Cléo Verberena; O Pão que o Diabo Amassou (1957) de Maria Basaglia, O Quatrilho (1994) de Fábio Barreto; Os normais 2 (2009), de José Alvarenga Jr; Porto das caixas (1962/3) de Paulo Cézar Saraceni; Riddler of the sphinx (1975) de Laura Mulvey e Peter Wollen; Romance da Empregada (1988) de Bruno Barreto; Se eu fosse você 2 (2009), de Daniel Filho, Sonho de Valsa (1987) de Ana Carolina; Um Caso de Polícia (1959) de Carla Civelli; Um Pinguinho de Gente (1949) de Gilda de Abreu; Uma Vida em Segredo (2002), de Suzana Amaral; Vera (1986) de Sérgio Toledo; Verônica (2008), de Maurício Farias; Vida de Menina (2005) de Helena Solberg; Xuxa e o mistério da feiurinha (2009) de Tisuka Yamasaki; Zuzu Angel (2006), de Sérgio Rezende.
Consulta bibliográfica
ANCINE, disponível aqui, acesso em 25/06/10.
BENTES, Ivana. Sertões e Favelas no cinema brasileiro contemporâneo: estética e cosmética da fome. Revista ALCEU, 2007. Disponível aqui. Acesso: 08 dez. 2008.
CINEDIA, disponível aqui, acesso em: 25/06/10.
FILME B, disponível aqui, acesso em: 25/06/2010.
JORNAL DA USP, 2009, disponível em, acesso em: 25/06/2010.
LAURETIS, Teresa di. Figures of resistence: essays in feminist theory, with an introduction by Patricia White, US: Patrícia White, 2007. Disponível aqui, acesso em: 16 de julho de 2009.
LIMA, S. & PARIS, A. Aparecida. Cidade Baixa, amor em alta: três vidas num paradoxo, in: SOUZA, Edileuza Penha de. Negritude, cinema e educação – caminhos para a implementação da Lei 10.639/203, Belo Horizonte: Mazza Edições, volume 3, 2010. (No prelo)
MALUF, Sonia. Entrevista com Laura Mulvey. Rev. Estud. Fem., Florianópolis, v. 13, n. 2, Aug. 2005. Disponível aqui. Acesso em 15 de junho de 2009. doi: 10.1590/S0104-026X2005000200008.
MARCELINO, Adilson. Mulheres do Cinema Brasileiro, Disponível aqui, acesso em 25 junho 2010.
MULVEY, Laura. Visual Pleasure and Narrative Cinema. Original Published – Screen, v.16 , n. 3, p. 6-27, Autumn, 1975. Disponível aqui, acesso em: 8 de julho de 2009.
ORICCHIO, Luiz Zanin. Cinema de Novo: Um Balanço Crítico da Retomada, São Paulo: Estação Liberdade, 2003, 255 p.
PESSOA, Ana. Por trás das câmeras, disponível aqui, acesso em: 04 de março de 2010.
- 1. Neste artigo, a autora faz uma crítica da imagem no cinema de estúdio hollywoodiano, do ponto de vista psicanalítico, estético, estrutural e semiótico, mas principalmente sugere o rompimento com o prazer visual para que se rompesse com o regime narrativo, e despertasse a atenção para representações sobre as mulheres, que não lhes interessam como elementos de formação de sua identidade, mas que acabam sendo naturalizadas na tela e reproduzidas cultural e socialmente.
- 2. Apesar de tratarem de personagens em cronologias diferentes. Enquanto Mar de Rosas mergulha na infância, Das Tripas Coração disseca a adolescência e Sonho de Valsa saboreia os prazeres da maturidade.