A outra face do jornalismo moçambicano - Guerra Manuel
Fernando Guerra Manuel Laranjeira, ou simplesmente Guerra Manuel, foi um dos primeiros jornalistas negros em Moçambique. Continuou na actividade até meados da década de noventa quando se retirou de forma definitiva. Actualmente está reformado e dedica grande parte do seu tempo aos netos. É recordado como o primeiro jornalista moçambicano que entrevistou Malagantana, Ricardo Chibanga e Lindo Lhongo na década de 60. Todos eles jovens no início das suas carreiras. De acordo com ele, ao entrevistar estes jovens pretendia dar a conhecer ao mundo o talento e a capacidade artística dos moçambicanos numa época em que estes não eram valorizados e nem havia espaço na imprensa colonial.
Malangatana, aquando da entrevista, em princípios de 1960, ía fazer a sua primeira exposição em Moçambique. Mais tarde tornou-se um artista plástico de renome internacional através das suas pinturas inspiradas nos espirítos dos seus antepassados, enquanto que Ricardo Chibanga ficou conhecido como ‘El Negro’, o toureiro negro, de origem moçambicana, que encantou nas Plazas de Touro de Portugal e Espanha de tal forma que levou Picasso a dizer olés em sua honra e a oferecer-lhe um dos seus quadros. A entrevista aconteceu na véspera da sua ida para Portugal. Lindo Lhongo, apesar de nunca ter saído de Moçambique, foi celebrado como o primeiro dramaturgo negro moçambicano com a peça A Conferência Dramática sobre o Lobolo encenada por Norberto Barroca. A peça foi um êxito pois abordava um tema que é parte da cultura moçambicana e que era representado pela primeira vez em teatro, daí o seu sucesso. Guerra Manuel recorda este momentos com nostalgia e orgulho por ter ajudado a promover artistas de moçambicanos de reconhecido valor.
O seu gosto pelo desporto, a imitação dos relatos desportivos e depois a forma como as reportagens desportivas eram escritas nos jornais ‘A Bola’ e o ‘Mundo Deportivo’ vão lhe valer a entrada para o jornalismo através de um amigo de infância de nome Abissínia Aly que já escrevia para o jornal Diário de Lourenço Marques na página desportiva. Assim, começa a fazer reportagens sobre futebol africano, uma vez que, no período colonial, as equipas africanas não faziam parte da Associação de Futebol de Lourenço Marques (AFLM) reservada às equipas europeias, mas sim da Associação de Futebol Africana (AFA). Realça que a página desportiva no Diário de Lourenço Marques foi criada com a entrada do seu amigo para o jornal. Pois, antes esta não existia.
Portanto, o ‘Diário de Lourenço Marques’ foi o ponto de entrada para o jornalismo. Conta que a partir dali começa a colaborar também com o ‘Brado Africano’ a convite do chefe da redacção desportiva do Diário que tinha gostado do seu trabalho. No ‘Brado Africano’ escreve sobre os mais diversificados assuntos não se limitando ao desporto. O ‘Brado Africano’ era um jornal da causa Africana e tinha sido fundado na década de 1920 pelos irmãos Albasine, pais do jornalismo africano em Moçambique. É neste jornal que entrevista Malagantana, Ricardo Chibanga e Lindo Lhongo. Assim, reportagens sobre a sociedade e a cultura africana ou a condição do negro passam a ser tema dos seus artigos.
Paralelamente assina, no mesmo jornal, uma coluna entitulada ‘Cortina de Capulana’ aonde expõem as suas reflexões. Estas são de tal modo incisivas que é interprelado pelo adido de imprensa do consulado americano, dado que era bastante crítico sobre a Guerra do Vietname e a sociedade americana. Outro episódio interessante de que se lembra, ocorreu em 1967 aquando da conferência de imprensa concedida por um dissidente da FRELIMO chamado Murrupa organizada pelo exército português. Conta que quando o General Kaúlza de Arriaga entra na sala, dirige-se a ele perguntando se era do Malawi News? Isto porque era o único jornalista negro presente e o General assumiu que ele fosse malawiano e não moçambicano. Portanto, durante a década de 1960, apesar das mudanças, entre elas a abolição do regime do Indigenato e adopção do multiculturalismo, tal não se fazia sentir em termos práticos pois jornalistas negros naquele tempo eram poucos. Dentre estes destacavam-se José Craveirinha que tinha passado pelo ‘Brado Africano’ e depois pelo Notícias, Ricardo Rangel, que também trabalhou no ‘Notícias’ como repórter fotográfico. Mais tarde surge Luís Bernardo Honwana, jovem escritor negro, após publicação do seu livro Nós Matámos o Cão Tinhoso que passa a fazer parte do projecto ‘A Tribuna’. Em 1963, abraça o projecto ‘A Tribuna’ na página desportiva. Este jornal representava uma posição nova no contexto do jornalismo português, com ideias renovadas, muito virado para a questão africana a situação dos subúrbios africanos. Era um jornal de oposição ao regime e ao status quo. Era um jornal patrocinado pela esquerda moçambicana que incluía figuras como Rui Knopfil e Rui Nogar, só para citar alguns.
Os jornalistas já tinham consciência política, porque nos anos 60 dá-se a viragem em África com as independências africanas e os movimentos de libertação. Devorava-se avidamente toda a informação que chegasse sobre figuras africanas independentistas, Patrice Lumumba, Sekou Touré e os outros que se batiam… o Nkwame Nkrumah eram ideias independentistas novas que surgiam. Eram uma lufada de ar fresco sobre a situação do africano. É um assumir da africanidade. Este movimento leva a que haja um reforço da censura, caso do artigo sobre o Malagantana que levou mais tempo a ser publicado porque a censura não tinha deliberado e só duas semanas depois é que a entrevista foi publicada. Havia várias formas de contornar a censura. Para tal fazia-se uso da linguagem metafórica.
Nunca abraçou a carreira jornalística como uma activiadade principal era um hobbie pois, paralelamente, desenvolvia outras actividades. Portanto, nas horas vagas era o jornalismo desportivo aos fins de semana e o ‘Brado Africano’ publicava-se aos sábados, de modo que tinha tempo para reportar esses asssuntos. Por convicção também nunca quis dedicar-se ao jornalismo como actividade principal. Considera ainda que, presentemente, o jornalismo moçambicano tem qualidade. E que se for a considerar os períodos áureos do jornalismo em Moçambique apenas encontra dois. Nomeadamente, o período anterior à independência e o período democrático iniciado em 1994.
No período pré-independência José Craveirinha encabeça a lista, pois o seu trabalho nesta área foi notório, quase que Craveirinha-jornalista supera o poeta, na sua óptica. Pois a poesia é limitada, ela exige uma certa preparação, é preciso ler nas entrelinhas, enquanto que no jornalismo está tudo ali preto no branco. O período da independência marca o surgimento de um novo tipo de jornalismo que se caracteriza como pró-governamental e, com isso, perde e limita a veia criativa e a liberdade dos jornalistas, dado que estes estavam proibidos de criticar o governo no seu esforço de criar uma sociedade nova e revolucionária. O que era típico de uma sociedade autoritária. Em contrapartida, no período democrático assiste-se ao desenvolvimento de um jornalismo de alguma qualidade, com a liberdade de expressão e a imprensa independente. Aqui destacam-se tanto a imprensa escrita como a audiovisual. Actualmente alguma imprensa em Moçambique desempenha o papel da oposição, visto que a mesma é practicamente inexistente. Ainda assim o jornalismo ainda não oferece segurança como profissão devido aos salários que se pagam e outras questões.