A resistência da Livraria Ulmeiro
José Antunes Ribeiro é meu avô, para além disso é escritor, editor e fundador da editora e Livraria Ulmeiro, fundada em 1969 que, depois de ter anunciado o seu encerramento em 2019 pela especulação imobiliária, voltou a reabrir na mesma rua - Avenida do Uruguai Nº 19 B em Benfica, em março de 2024.
O espaço foi gerido durante 50 anos (até 2019) por José Ribeiro e Lúcia Ribeiro. Agora na sua nova casa é gerido por José, pela sua filha e artista plástica Ana Sofia Ribeiro, pela sua neta Mariana Ribeiro, eu, que termino a licenciatura em Estudos Africanos na Faculdade de Letras de Lisboa e pela Junta de Freguesia de Benfica.
A Ulmeiro foi e será sempre uma livraria com muita história cultural e política, palco de muitas reuniões, tertúlias e conversas. Foi aqui que José Afonso passou a madrugada de 25 de abril de 1974 e onde essa mesma madrugada será recordada no próximo dia 24 de abril, às 23:59h: “A meia-noite na Cave da liberdade”, 50 anos depois, uma iniciativa pensada pela Junta de Freguesia de Benfica.
Vou ser sincera, nunca pensei que seria possível entrevistar-te, avô. Quero agradecer à BUALA por me esta oportunidade. Em primeiro lugar, gostava que explicasses quando e como foi fundada a Ulmeiro.
Foi fundada a 10 de dezembro de 1969, um pouco na sequência de outras livrarias que também já tinha fundado, na Amadora, nomeadamente a Obelisco. Tinha iniciado, também, as edições Itau em Lisboa e, sobretudo, estava integrado no Movimento das Cooperativas Culturais que vieram a ser extintas ou proibidas pelo governo de Marcelo Caetano, pelo decreto de lei de março de 1971. A Ulmeiro era suporte de algumas das cooperativas livreiras existentes, foi um espaço que estando a funcionar como sociedade comercial, permitiu apoiar o movimento das cooperativas culturais livreiras.
A Ulmeiro é considerada uma livraria de resiliência. Qual a sua importância enquanto livraria, distribuidora e editora?
Bom, a livraria antes de ser da resiliência, é a livraria da resistência, a resiliência está ligada ao facto de nunca termos desistido e de termos continuado com este trabalho. Para além dos 50 anos em que estivemos na Avenida do Uruguai continuámos a efetuar, em Benfica, sobretudo no Palácio Baldaya e em colaboração com a Junta de Freguesia de Benfica, algumas atividades ligadas ao nosso trabalho editorial. A livraria está ainda presente na Fábrica de Braço de Prata, porque entendemos que os livros podem e devem estar em vários sítios ao mesmo tempo.
Penso que uma das atividades mais importantes da Ulmeiro é enquanto distribuidora. Nós éramos distribuidores de duas editoras, também de resistência, uma no Porto, a Afrontamento, outra em Coimbra, a Centelha, e isso permitiu que a Ulmeiro tenha tido um papel enquanto distribuidora muito importante em todo o país. Criámos relações estreitas com a maior parte dos livreiros do país e, por esse motivo, conseguimos estar presentes a tempo e horas com os livros antes de eles serem apreendidos pela PIDE.
E porque é que deixou de ser distribuidora?
Creio que chegámos assim em plena atividade até 2010. Depois, por um lado, envolvemo-nos mais na atividade editorial, e a livraria também evoluiu de outra forma e é assim.
A Ulmeiro foi vítima de perseguições por parte da PIDE?
Sim, claro! A Ulmeiro terá sido uma das livrarias mais atingidas com autos de apreensão, às vezes da totalidade de edições. Os correios a entregarem os livros e o carro da PIDE vinha logo atrás e levavam todos os livros que importávamos, de França, sobretudo de Maspero, muitos de Espanha, também das editoras. A Ulmeiro foi uma editora muito ligada à Península Ibérica: Madrid, Catalunha, Galiza e, também, a França através da Livraria François Maspero.
Lembro-me de me teres falado do livro “Massacres na Guerra Colonial Tete”, que documentava casos conhecidos de atrocidades cometidas pelo exército português na Guerra colonial. Na altura, houve problemas com o tribunal por causa desse livro, certo?
Acabei por ser o único editor processado antes do 25 de Abril e depois do 25 de Abril. Antes do 25 de Abril fui processado como fundador, também, da Assírio e Alvim, pela edição do livro “Portugal sem Salazar” e, depois do 25 de abril, pela edição do livro “Massacres na Guerra Colonial Tete” num processo movido pelo Estado Maior General das Forças Armadas que chegou, depois, ao 5º Tribunal Militar Territorial de Lisboa e o acusador público, o militar que fazia esse papel, pediu que o processo fosse integrado na chamada Lei da Amnistia, a Amnistia dos crimes de abuso de liberdade de imprensa. Reagi violentamente nas entrevistas que dei na altura, dizendo que devia ser condenado ou absolvido, e eu creio que este final teve muito a ver com a imensa repercussão que o caso teve. Na altura na imprensa, os jornais quase todos falaram disso, o Diário de Notícias na primeira página, o semanário o Jornal que ainda existia também.
Recentemente passou uma reportagem sobre isso!
Sim, verdade! Foi, enfim, foi uma história um pouco incompreensível, na medida em que isto só se compreende se os militares que fizeram o 25 de Abril e que estariam, supostamente, à frente do Estado Maior General das Forças Armadas, estivessem a pensar como militares, obedecendo a ordens antes do 25 de Abril, portanto, para mim é um processo completamente inexplicável.
Qual é a tua opinião sobre as livrarias independentes, atualmente, perante os “tubarões” Fnac e Porto Editora?
Bom, eu juntamente com o Professor Daniel Melo, na Universidade Nova e com o meu colega Assírio Bacelar, somos subscritores de uma carta aberta sobre a crise do livro e da cultura, onde abordamos toda a problemática dos problemas que se colocam hoje ao setor do livro e apresentamos uma espécie de diagnóstico da situação que contribuem para o setor atual e, também, nessa mesma carta aberta apresentamos 15 possibilidades de melhorar a situação na nossa opinião. Esta carta aberta foi, depois, transformada em petição pública, teve umas centenas de assinaturas ainda, de muita gente ligada ao setor, mas a verdade é que pouco ou nada se fez.
Que consequências dessa petição?
Foi feito há cerca de 4 anos, fomos recebidos, depois, pelo Ministro da Cultura, entidades ligadas ao setor do livro, debatemos as ideias que a carta expunha, mas a verdade é que hoje creio estar tudo igual.
Agora, falando na reabertura da nova Livraria Ulmeiro, gostaria de saber como te sentes por a livraria ter reaberto nos 50 anos de Abril?
Penso que é uma data histórica e, enfim, sinto-me particularmente feliz por esta possibilidade que não é apenas nossa, é obviamente, também, decisão da Junta de Freguesia de Benfica e o apoio e empenho do Presidente Ricardo Marques, que possibilitou que a Ulmeiro, tenha hoje, uma nova vida. Não será repetição da velha Ulmeiro.
Sim, até porque é impossível fazer igual, por vários motivos.
A velha Ulmeiro está arquivada nas memórias, fazemos uma coisa nova, está muito bonita, temos tido feedback de muita gente, o que não imaginava é que o espírito da Ulmeiro estivesse tão vivo neste momento em Benfica e visitas de pessoas fora de Lisboa.
E ainda nem há um mês reabriu, portanto é mesmo muito bom!
Considero que o livro, como dizia o Federico García Lorca, é a mais importante conquista da civilização. Lorca tem um texto magnífico que é o seu discurso na inauguração da biblioteca com o seu nome na sua aldeia natal, perto de Granada, Fuente Vaqueros, e que é a maior lição que existe sobre o livro e a leitura.
O facto da Ulmeiro aparecer nos 50 anos do 25 de Abril é para mim, enfim, um momento importante, o 25 de Abril é um momento fundador da nossa democracia, nós contribuímos de alguma forma, com um grão de areia, para essa possibilidade também. Não foi outra a atividade que desenvolvemos, apenas procurámos fazer o nosso trabalho, contribuir para que as pessoas pudessem ter acesso aos livros, lê-los, estar em acordo ou desacordo, criarem a sua própria ideia sobre o que lêem e, depois, emitirem a sua própria opinião, não ficarem presas aos slogans, um bocado em voga nestes 50 anos do 25 de Abril e, que só se podem vencer se criarmos nas pessoas e nos jovens o espírito crítico para que eles possam pensar pela sua própria cabeça.
O que podemos esperar da Ulmeiro neste novo espaço, que reabriu a 4 de março?
A Ulmeiro continua como editora, obviamente, aliás estão a sair livros, estão livros em preparação e, a livraria será esse espaço que sempre foi, está à disposição de toda a gente do Bairro de Benfica, de Lisboa, de todas as pessoas que vêm fora de Lisboa. Somos um espaço completamente aberto!
Quero agradecer por me convidares para fazer parte da Ulmeiro, é um enorme privilégio estar contigo nesta nova fase. Obrigada por tudo!
A nova Livraria Ulmeiro está localizada na Avenida do Uruguai Nº19 B em Benfica, aberta de terça-feira a sábado das 10h às 13h e das 14h às 19h.
A Junta de Freguesia de Benfica elabora a programação mensal da livraria. Poderá, também, estar atento a todos os eventos e tertúlias em que a Ulmeiro participa através do instagram: @espacoulmeiro, que é gerido por Mariana Ribeiro.