A Tropa do Indivíduo: Nástio Mosquito e os Ghostbusters

Quem quiser ter uma ideia do que de novo se está a fazer em Angola, está no local certo. A exposição Ghostbusters, patente até dia 1 de Outubro de 2011 na Galeria Savvy em Berlim-Neukölln, trata da metáfora da memória enquanto fantasma na sociedade angolana pós-colonialista, pós-socialista e do pós-guerra. A curadora Nadine Siegert, vice-diretora da Casa Iwalewa/Centro de Estudos Africanos da Universidade de Bayreuth, escolheu para esta exposição – que leva o subtítulo “Do pesadelo à memória” e cuja segunda parte “Da memória à visão” terá lugar em Bayreuth em Abril de 2012 – os jovens artistas Cláudia Cristóvão e Nástio Mosquito.  “Para mim, Ghostbusters é mais do que esta exposição, é um espaço para refletir sobre a ideia de memória”, explica a curadora, especialista em arte e música contemporânea africanas.

A ideia surgiu aquando da sua primeira visita a Angola, inserida numa pesquisa sobre produção de arte. “Eu julgava que com o fim da guerra civil haveria seguramente muitos artistas a tratar o tema da guerra. E contrariamente às minhas expectativas não encontrei praticamente nada que lidasse com isso. Isso levou-me à questão do que deve ser lembrado e por quanto tempo, e se não é por vezes melhor esquecer do que lembrar.” Será forçosamente necessário lembrar, ter pesadelos, para podermos seguir em frente e ir de encontro ao futuro? “Para mim esses fantasmas não são apenas coisas do nosso passado, mas também, na acepção alemã da palavra Geist, uma imaginação que nos pode ajudar a projetar o futuro. Dei-me conta que, artisticamente falando, em Angola há uma preocupação muito grande com o futuro, a projeção do futuro. Nunca vi outro lugar onde as pessoas envolvidas na produção artística estivessem tão empenhadas com o seu papel na nova nação do pós-guerra.” A realidade da produção artística angolana levou-a a mais conclusões. “Apercebi-me do muito que podemos aprender se tivermos controle sobre a memória e se tivermos o poder de esquecer. A memória é construtiva, depende muito de como queremos que a nossa realidade seja.”

A primeira sala da galeria mostra o trabalho “Your Ghost” de Cláudia Cristóvão, radicada em Amsterdão e com trabalhos expostos na Bienal de São Paulo e na China: uma série de fotografias de peças de roupa penduradas em cabides, espécie de mostra do corpo ausente de quem as usou.

'Your Ghost' de Cláudia Cristóvão, na Galeria Savvy em Berlim-Neukölln.'Your Ghost' de Cláudia Cristóvão, na Galeria Savvy em Berlim-Neukölln.

Os outros trabalhos são de Nástio Mosquito. Nascido no Huambo em 1981, pertence a uma geração que já não viveu o colonialismo nem a independência, uma geração que é política sem ser ideológica, consciente sem ser doutrinária, e se preocupa mais com o futuro do que com os fantasmas do passado. “A atitude com a qual eu olho para as coisas é muito prática. O meu ponto de partida nunca é lidar com um fantasma mas sim com uma coisa concreta”, explica. Fala com uma voz grave e sonora, própria de um cantor – o que não é de admirar, já que essa é precisamente uma das suas muitas ocupações, tal como a de fotógrafo, músico, performer, realizador, produtor e editor de livros. Encara a sua atividade multifacetada com normalidade: “Cada angolano é um homem ou mulher de negócios, em Angola toda a gente faz mais do que uma coisa. É normal um advogado vender coca-cola, quem trabalha num grande escritório vender também cartões de telefone ou postais… há a economia oficial, e há a outra”, afirma o artista, que estudou em Lisboa e em Londres e já teve trabalhos expostos na Bienal de Veneza, Bienal de São Paulo, em Nova Iorque, no Dubai, na Alemanha, no Brasil e na Trienal de Luanda, entre outros.

“Eu recordo-me de muitas coisas que se passaram no tempo da guerra. São memórias pessoais, que fazem parte de mim. Mas não vejo isso diretamente refletido no meu trabalho, não é essa a minha abordagem. Provavelmente como contra resposta ao comunismo, eu faço muitas coisas sobre o indivíduo. Talvez seja eu a fugir de tudo isso, tentando não fazer desses fantasmas o ponto de partida.”

Numa das instalações vídeo, “A Tropa do Indivíduo” (2008), vêm-se imagens de arquivo  do exército cubano aquando da guerra da independência de Angola, na qual os cubanos, do lado do MPLA, lutaram contra os soldados sul-africanos, apoiantes da UNITA, após o exército português ter abandonado o país no seguimento da Revolução de Abril de 1974. Sobre estas imagens ouve-se a voz de Nástio Mosquito, numa faixa extraída do seu CD “Saindo do Armário (My Blue Print)”: “Quando olho à minha volta, vejo soldados que não são malabaristas. Vejo o cidadão na incessante procura do artista. Vejo minha Angola de cócoras, de pernas escancaradas. E ainda por cima me pedem que a penetre. Em nome de Angola sou africano. Em nome de Angola sou tribalista. Em nome de Angola sou emigrante. Em nome de Angola, tudo o que sou é bandeira. Que se foda Angola! Viva o Angolano! Eu represento se quiserem a Tropa do Indivíduo”.

Excerto de 'Mutilado' de Nástio Mosquito e Bofa da Cara. Foto de Nástio Mosquito e Bofa da Cara.Excerto de 'Mutilado' de Nástio Mosquito e Bofa da Cara. Foto de Nástio Mosquito e Bofa da Cara.

Em “Mutilado” (2010, em parceria com o coletivo Bofa da Cara) vê-se um manequim sem pernas nem braços a percorrer uma paisagem de subúrbios urbanos. De vez em quando há um papel onde está escrita uma palavra – “love”, “fuck”, “fear”. “Este trabalho vem de uma certa ironia. Eu estou a olhar para Angola e sim, há pessoas que sofreram muitíssimo e sim, foi  muito difícil, mas agora não há outra solução que não seja trabalhar, fazer coisas. Eu senti que este fantasma da guerra, dos combates e do tanto que ficou por dizer, se ele for o ponto de partida para a ação será muito difícil de lidar com tudo isso. Mas se a ideia for construir coisas, inevitavelmente haverá uma consequência, algo que nasce. Eu não me preocupo muito com estes fantasmas. Na realidade, tendo a fugir deles.”

Outra instalação é “My african mind”, igualmente realizada com o coletivo Bofa da Cara, que alterna imagens e gravuras de arquivo relacionadas com o colonialismo com comentários do próprio autor, como se do outro lado da moeda se tratasse, justapondo assim a visão dada pelo colonizador com a do colonizado. “Eu penso que é a nossa tarefa, dos artistas africanos, fazer obras de arte e mostrá-las ao mundo. Temos de trabalhar! A minha reação [ao ver sistematicamente África retratada apenas da perspetiva ocidental] é: então tenho de ser eu a fazer fotografias e a encontrar estruturas para as expor. Estas pessoas vêm a África desde há séculos dizer-nos como é que nós somos. Mas bom, eu tenho uma câmara fotográfica, posso imprimir, tenho internet… é preciso começarmos a pensar que somos importantes, tomar as rédeas, fazer coisas e mostrá-las. É o nosso mundo. Eu penso que é legítimo outras pessoas darem a sua visão das coisas. Mas nós temos de fazer o nosso trabalho com a nossa visão, não para ripostar, mas sim para podermos nós mostrar o nosso lado, contar as nossas histórias. Há espaço para os artistas angolanos fazerem isto.”

Excertos de “My african mind”, de Nástio Mosquito e Bofa da Cara. (c) Nástio Mosquito, Bofa da Cara e Galeria Savvy.Excertos de “My african mind”, de Nástio Mosquito e Bofa da Cara. (c) Nástio Mosquito, Bofa da Cara e Galeria Savvy.

A questão das perspetivas foi aliás uma das razões que o levou a sair do Reino Unido, onde trabalhava em Televisão, e regressar a Angola. “Quando eu estava em Londres houve um episódio curioso. Estavam a decorrer os Jogos Paraolímpicos em Atenas. Neles participava o atleta angolano [José Armando] Sayovo, um antigo soldado que tinha ficado cego com a explosão de uma mina. Eu queria ver os resultados dos Jogos, mas em Londres só passavam os dos atletas britânicos. Um amigo enviou-me uma mensagem a dizer que Sayovo tinha ganho três medalhas de ouro e batido o recorde mundial nos 200 metros. Era uma excelente história! Um homem vai para a guerra, fica cego, está num país sem qualquer tradição nos jogos paraolímpicos, quebra o recorde mundial em Atenas e ainda ganha três medalhas de ouro. E em Londres não houve nenhuma notícia, nada. Uns meses depois houve em Angola um vírus chamado Marburg, as pessoas morriam com diarreia e era tudo horrível… e essas histórias estavam em todos os jornais. Isto foi muito violento para mim, fiquei irritadíssimo. Eu não conseguia fazer passar a história do Sayovo – que é uma história que também vende, as pessoas gostam dessas coisas – mas a do vírus estava por toda a parte. Esta diferença na representação marcou-me, a discrepância entre aquilo que acontecia e o que as pessoas queriam saber. Quando a paz voltou a Angola, eu decidi regressar e estou lá até hoje.”

“Eu comecei a fazer arte só em Angola. Comecei a fazer fotografia porque achei que era um bom desafio, e na televisão não conseguia fazer o tipo de trabalho que eu queria. Deixei o meu emprego e decidi fazer fotografias para falar sobre mulheres.” Daqui resultou, em colaboração com o fotógrafo Matt Tali Massalo, a publicação do livro “Massalo”, que introduziu em Angola um debate sobre a nudez feminina.

Entretanto criou a sua própria empresa, a Dzzzz dedicada à produção e consultoria na área cultural, incluindo realização de filmes, escrita de guiões e edição de livros, entre outros. Uma das coisas de que mais se orgulha é o livro para crianças “Pai Natal – A Viagem”. “É um dos trabalhos mais políticos que eu alguma vez já fiz. Eu tenho uma constante necessidade de procurar que as coisas façam sentido e concentro-me sempre em coisas pequenas, por exemplo tornar o Pai Natal útil. O Pai Natal baseia-se no São Nicolau, uma tradição europeia. Em termos práticos, estar em Angola na época mais quente do ano e ver os Pais Natal vestidos com aquelas roupas pesadas… eu até cheguei a usar essas roupas para a televisão, e não fazia sentido nenhum. Quando eu era pequeno eu via o Pai Natal e sonhava com a neve, e se não houvesse neve era como não haver Natal, porque o Natal tinha de ser só daquela maneira. Era como ter grades para os próprios sonhos: se sonhares, tem de ser com isto ou com aquilo. Essa figura do Pai Natal não nos está a ajudar nada. É muito difícil acabar com ela, do ponto de vista económico. Se o Natal acabasse, toda a indústria a ele associada - as comidas, os postais, as árvores, as compras de presentes etc. - as nossas sociedades iriam implodir. A indústria do Natal é um negócio de biliões de dólares. Então eu quis transferir, migrar o Pai Natal, fazê-lo adaptar-se à outra parte do mundo e torná-lo útil para as crianças africanas. Pu-lo no deserto africano, é tão difícil de encontrar como outro sítio qualquer. O sul do Equador como ponto de partida para o imaginário”, diz o angolano.

Ilustração do livro 'Pai Natal - A Viagem' de Nastio Mosquito. Foto Nástio Mosquito.

Esta migração pretende ter uma consequência prática. “Pense-se por exemplo numa empresa de postais que usasse o imaginário africano neste contexto particular: poderia assim produzir e vender postais, em vez de os importar como até aqui. Esta é uma grande diferença em relação a ter por exemplo um Pai Natal negro, que viria do facto de as pessoas estarem a abordar o fantasma em vez de abordarem a solução ou a construção de alguma coisa, e isso é superficial. Talvez esses fantasmas sejam demasiado grandes para mim, eu tendo a fazer as coisas tão pequenas quanto possível, por forma a poder abordá-las.”

No entanto, rejeita liminarmente a ideia de fazer um trabalho político. “Não há uma linha direta entre o meu trabalho e uma ação política. A arte para mim é um veículo para eu ser politicamente ativo, mas isso não é a arte e sim eu próprio. Não vejo a arte como política.”

“A arte cria um ambiente que é propício ao desenvolvimento de novas ideias, por isso é que é tão controlada. O que se quer controlar não é a arte em si, mas sim esse ambiente onde se pode pensar livremente. Por exemplo em Angola ninguém proíbe o artista de fazer o que quer que seja, mas depois não há um lugar onde se possa expor as obras nem um público que as compre, e por isso é difícil o artista manter-se. Uma grande dificuldade para um artista angolano é poder usar a frase: eu fiz obras de arte e o mundo viu-as.”

Apesar das dificuldades, vê o futuro de Angola com expetativa e entusiasmo. “Eu tenho a sensação de que alguma coisa se está a passar em Angola. Há muita coisa a acontecer, não é ainda tempo de fazer conclusões. As coisas estão a mudar, o sistema político não é o mesmo de há alguns anos. Aquilo que eu faço agora não teria sido possível há quinze anos. Tenho começado coisas, iniciado espaços e estabelecido uma relação com a minha perspetiva e posição enquanto profissional. Acho que agora é tempo de trabalhar. As coisas estão a mudar, estamos a ganhar muito espaço e eu estou muito entusiasmado com isso. Angola está a mover-se, não sei o que vai sair daqui, mas está a mover-se.”

E de indivíduos como este, acrescentamos, precisará certamente de um batalhão.

 

Artigo originalmente publicado na Berlinda (Magazine cultural de Berlim e o mundo de língua portuguesa).

por Inês Thomas Almeida
Cara a cara | 23 Setembro 2011 | angola, Bofa da Cara, Cláudia Cristovão, exposição, ghostbusters, Nástio Mosquito, pos-colonialismo, sociedade angolana