A vida é um mar de perguntas sem respostas” – Jessemusse Cacinda

Em 2023 dias antes de Jessemusse Cacinda publicar seu primeiro livro de ficção, Kwashala Blues, entrevistei-o para que ele desse o panorama geral da obra. Eu já havia lido o livro e surpreendi-me com o seu formato. São pequenas histórias que se juntaram num corpo maior e deram sentido a um livro de escrita simples, veloz, com personagens que na sua complexidade procuravam simplificar as suas experiências. A paisagem em que ela foi construída, desde Maputo, até e sobretudo Nampula, fazem com que ela pareça, de imediato, uma obra diferente aos olhos de leitores da literatura moçambicana, onde os lugares muitas vezes se transformam entre o rural e urbano.

Fica claro em Kwashala Blues que Jessemusse Cacinda é um escritor que se fez em processos, por etapas, ciente de que é um contador de histórias, mas sem a pressão de se revelar. Felizmente fê-lo através de uma obra que se justifica por si, sem ser refém do futuro.

Conhecemo-nos há mais de 15 anos. E foi pela literatura que se foi fazendo a nossa amizade, até escalar outros patamares. A sua primeira viagem para Maputo, qual caçador de sonhos, caminhando nas estradas do país desde Nampula, para um percurso que diz da sua personalidade e do lugar onde quer chegar. E para onde vai Jessemusse Cacinda? De volta ao lugar onde nasceu. A vida dá tantas voltas. Conheci Nampula a seu convite, em 2016. Eram o fim do caminho, o festival que criou. Era o princípio da utopia, uma editora de livros “africanos”, é o que é a editora Ethale Publishing, sobre a qual falaremos noutra ocasião. Foram horas e horas de serão. Conversas que ao tempo não enganaram. Já lhe havia reconhecido a incaracterística forma de fazer jornalismo, saindo da sua voz na rádio, estórias de despertar. Hoje, entre tantas coisas, filósofo, editor e escritor. Era um caminho incontornável. As tantas estórias que a vida dá. E aí chegamos a este Kwashala Blues que nos confunde “não sei que género é este”, afirma o próprio autor que se estreia no que podemos chamar de novela.

O que é a vida? perguntou Antônio Abujamra aos seus entrevistados e no final ele descobriu: a vida é um abismo, onde ele próprio caiu no final. Veio-me um pouco de tudo depois de ler Kwashala Blues. E esta entrevista é a única forma que encontramos de desanuviar em meio ao frenesim dos enredos.

Sempre soube-o como escritor, repito. Faltava o livro. E o livro chegou. O que fizemos com ele? Lemos. E depois de ler? Conversamos. Porque algumas estórias levam a isso…

Jessemusse CacindaJessemusse Cacinda

Vamos começar do começo do “Kwashala Blues”, a chamada que o narrador recebe sobre a morte do pai. É o início de um romance ou apenas a viagem de um personagem?

Na verdade, é mesmo uma chamada que o narrador recebe para reavivar suas memórias. Um acontecimento trágico como a morte de um pai é uma oportunidade que um ser humano tem de questionar-se sobre tudo. Questionar-se sobre a vida, sobre as decisões que tomou, sobre os erros por si cometidos, e sobre o amor, o futuro. Quem nunca filosofou na vida, seguramente, o faz quando um entequerido seu morre.

Ao falar dessa personagem, a que recebe a chamada, não se identifica. Isto porque quase todas as estórias do livro estão na primeira pessoa. Não resisto a fazer esta pergunta, é uma autobiografia?

Veja, eu tenho dito que vivi e vivo a vida. Neste exercício também conheço pessoas que vivem. Viver a vida é em toda a sua plenitude, assumir os momentos tanto bons como ruis. E a vida é feita disso. O Kwashala Blues é um ponto de encontro, onde através da música e do rítmo, as histórias de vários moçambicanos se cruzam.

Um livro triste, este. Mas uma tristeza estranha que dá vontade de dançar, dá vontade de sorrir com o rosto cheio de lágrimas e o peito apertado. Que angústia é essa?

A vida é uma constante angústia. Veja que em nenhum momento de nossas vidas nos sentimos satisfeitos. A vida é como a filosofia, é um mar de perguntas sem respostas. Se esperarmos que os nossos problemas sejam completamente resolvidos, nunca vamos esperimentar a felicidade. Por isso devemos sorrir enquanto dá, dançar enquanto podemos e quando for necessário, chorar acreditando que ninguém tenha lágrimas suficientes para provocar uma inundação. Este livro é sobre a vida e a vida é isso mesmo.

Não posso deixar de percorrer o Este de África lendo estas estórias. Vou confessar que de lá li poucas estórias e o ápice seria Ngugi. Mas veio-me de repente a África Ocidental, numa estranha sensação das linguagens, da música e até da dinâmica territorial. A pergunta que me ocorre é sobre as viagens do escritor até chegarmos a este Kwashala Blues.

Todo mundo que nasceu e cresceu no norte de Moçambique na década 90 do século passado sabe que Dar-es-salam era mais perto que Maputo. E isso se notou pela influência que a África Oriental e Ocidental tinham no nosso estilo de vida. Quando cheguei a Maputo notei pouca ligação com essa África com a qual eu havia crescido e, como bom cidadão, senti necessidade de trazer essas todas Áfricas para a nossa capital. O Kwashala é uma moçambicanização da rumba congolesa.

Deve ser um caminho pouco percorrido pelos escritores. A forte ligação da narrativa com o seu lugar de origem. Escrever o lugar, as paisagens, as gentes, os sons e até, estranhamente, dá para sentir os cheiros. Nampula é o seu lugar de partida ou de chegada?

Nampula é o meu ponto de partida e o lugar de chegada é o infinito. Uma das coisas que tento fazer é mostrar às pessoas que todos nós conhecemos um pouco de Nampula, mesmo sem ter lá estado e sem ter ouvido nada a respeito da província e da cidade.

Voltemos ao livro. Os processos de escrita. Nota-se que são estórias escritas em momentos separados. Mas elas têm um fio condutor. A figura do pai quase que é a linha que cose a narrativa. O que aconteceu aos textos para terem essa linhagem que roça o romance?

Os textos foram escritos em momentos diferentes, mas havia um fio condutor. Cronicar os acontecimentos contemporâneos de Moçambique com um pendor filosófico. E precisava de uma imagem para nos levar a este exercício, a morte de um pai. O pai é aquele nosso amigo e inimigo ao mesmo tempo. O amamos e, às vezes, o adiamos. E na vida somos assim. Mas a ideia de fazer este quase romance ou quase novela (na verdade nem sei que género de livro é este) veio das conversas e discussões que tive com o Sérgio Raimundo que disse-me que estes textos não eram contos quaisquer, eram capítulos de uma novela.

E, já agora, em que momentos da sua vida se reescreveram essas estórias? Num ato de reflexão, releitura de um percurso (não podemos ignorar que Jessemusse tem a vida toda quase feita em Nampula e parte para Maputo já formado e até a trabalhar)?

Existem sim, alguns episódios que podem ser ligados à minha vida e outros e à vida de amigos e pessoas que conheço. Não vou denunciar-lhes. Preciso que me contem suas histórias para próximos livros. Mas posso partilhar consigo que meu pai faleceu e senti-me de certa forma culpado por não ter aproveitado quando ele estava vivo. Na minha própria vida já também agarrei-me a coisas que me impediam de ser feliz em nome de um conforto. E a filosofia, este exercicio de questionar-se, reflectir, tentar encontrar as várias respostas sobre um problema, tem me ajudado a encarar a vida com sabor. E provavelmente, há pessoas que tem todas ferramentas para ser feliz, mas falta-lhes esta vontade de filosofar em torno da sua própria experiência.

A música, Jessemusse, não queria me referir a ela porque já é óbvio pelo título do livro. Mas é inevitável. Fale-me dela, como a música roubou protagonismo à literatura?

A música é o bálsamo da alma. Há uma música do Murara Jazz, banda de Kwashala de Cabo Delgado, com o título Adelina, em que o poeta fica desapontado porque a Adelina não conseguiu guardar-lhe os seus segredos mais íntimos enquanto foram namorados. E quantas vezes na vida não nos desapontamos quando a nossa intimidade é exposta? A música começa um pouco lenta e chega uma altura em que o rítmo aumenta. Nessa parte, chamada “Okoroxeliya”, mesmo que a música fale de coisas tristes, é mesmo para dançar. E voce sabe que na África, a dança é nossa vida e quando a gente dança, é  como se expíritos nos estivessem a puxar de um lado para outro. E a literatura é um registo da vida. Logo, um protagonista que vive a vida, vai seguramente ter a musica consigo. Se alguém me dizer que nunca ouviu música eu lhe diria que está morto.

De certa forma encontramos muito de memorial e da cultura popular. Conheço um pouco Nampula, mas bastava-me ler o seu livro para entrar nos ambientes. O que me leva a querer saber da sua infância, os chãos que você pisou em pequeno, as pessoas que fizeram parte desse momento que parece descobrirmos já adulto, que é a infância? Fale da sua casa, dos seus parentes, da rua, do bairro…

Cresci entre Cuamba, Nampula e Memba. Este nomadismo é normal no norte de Moçambique. Em Cuamba vivia no bairro do aeroporto e via os aviões a cairem todos todos, em Memba vivia no bairro do Muaco, há 1Km da praia da Costa do Sol e do campo de futebol da vila e em Nampula, no bairro de Muatala, mais conhecido por Matadouro. No Matadouro vivia com os meus pais, e quando se divorciaram, passei a partilhar entre Cuamba (onde estava o meu pai) e Memba (para onde foi a minha mãe).

Conhecemo-nos há vários anos e nunca lhe perguntei sobre os seus pais. Nesse sentido também é interessante para mim ler o Kwashala porque parte do desconhecimento. Sei, porém, que a sua mãe é uma professora, e o seu pai?

Sim, a minha mãe professora e meu pai, chefe de cozinha. Hoje o meu pai faleceu e a minha mãe é funcionária administrativa. Cada um deles exerceu determinada influência em mim, talvez seja por isso que enquanto gosto de aprender, gosto também de comer. 

Trabalhou na rádio Moçambique a partir de uma adolescência. Já o ouvia nos programas infantis e juvenis da Rádio com uma forte expressão na palavra. O que significou esse parte da sua vida?

Eu tenho dito que não tenho motivos para não ser feliz. Meu sonho era falar na rádio e consegui. Isso significou tudo para mim. Sai da rádio porque tive vontade de experimentar muitas coisas. Foi para preencher uma série de curiosidades, mas voltaria a trabalhar na rádio sem nenhum problema. Um radialista é um artista e um artista nunca abandona a sua arte.

Os primeiros livros que leu, as primeiras estórias, a primeira ficção onde encontrou?

Os livros apanhei com a minha mãe e na escola. Primeiro foram os textos do livro de Português do ensino primário (tenho comigo o livro de Português da Sétima Clásse, onde leio e releio Crónica de Carteira de N. Marimbique que fui descobrir mais tarde que era Nelson Saúte) e depois vieram os poemas, Os Lusiadas de Camões foi o primeiro livro que livro.

E hoje o livro virou um trabalho, com a Ethale Publishing. Recordo-me das conversas em Nampula a volta deste projecto, como se fosse uma miragem. E hoje, onde estamos?

Hoje estamos onde a vida nos leva. Essa curiosidade está a levar-me a Coimbra para fazer o meu doutoramento e continuar nessa coisa de trabalhar como investigador, autor e editor.

Jessemusse, tem leituras de invejar. Deve conhecer as narrativas deste vasto continente como poucos de nós conhecemos. Que caminhos para chegarmos a essa literatura mais próxima da nossa realidade, mas tão distante em termos de acesso?

Como sabes, sempre fui um “puto curioso”. A minha ligação com a África Oriental e Ocidental veio da música que escutamos no norte de Moçambique, depois, quando aprendi a ler, fui eu mesmo procurar. Aproveitei-me bastante da evolução tecnológica e viajei pelo continente africano de carro. Para teres uma ideia, eu sai de Harare a Nampula, via Lusaka e Blantyre. Vamos ser mais aventureiros e curtir este continente sem chiliques.

Quantas rumbas e kwashalas dançou até decidirem o destino do seu primeiro livro de ficção?

Cresci com muita rumba e kwashala. Tenho várias no meu computador e toco nos fim-de-semana para dançar. Eu, o Gércio Alexandre da Rádio Moçambique e o Peter, apresentador da TVM, somos amigos e temos dançado essas coisas nos fim-de-semana. Quero que as pessoas que leiam o livro tenham vontade também de dançar.

Agora que experimenta a escrita descomprometida, digamos assim, da ficção. De que lado da história ficaria se houvesse um só lado?

Pergunta difícil. Eu quis escrever justamente para não estar num só lado. A literatura não tem lado. A literatura é o respeito pela diversidade que faz o nosso país e o nosso continente. Este Kwashala Blues é uma oportunidade para os moçambicanos conhecerem-se a si mesmos. Mas também para celebrar as dores e alegrias das pessoas deste país e deste continente.

 

Entrevista publicada originalmente aqui. 

por Eduardo Quive
Cara a cara | 7 Novembro 2024 | Jessemusse Cacinda, Kwashala Blues, moçambique, Nampula